Sobre corruptos, sonegadores e hipocrisias
Michelle reivindica uma suposta coerência moral e mobiliza bases conservadoras. Os filhos defendem acordos e buscam reter o capital político do pai. Centrão mira Tarcísio. No momento, há uma direita tensionada, sem liderança definida e dividida entre o ethos extremista e o cálculo eleitoral
Publicado 03/12/2025 às 17:17 - Atualizado 03/12/2025 às 17:18

Título original:
O País das Operações e das Sombras
Até meados de 2025, a crítica dominante ao governo Lula orbitava sempre o mesmo ponto: faltava movimento, falta embate. A sensação de imobilismo se espalhava com rapidez, impulsionada por uma oposição estridente, lacradora e por uma imprensa que, há anos, se acostumou a narrar o país pelo brilho das conveniências de classe. Esse quadro só começou a se equilibrar quando a tentativa de rearticulação golpista — estimulada por Eduardo Bolsonaro e respaldada por Donald Trump — produziu um choque político capaz de reorganizar tensões internas e deslocar prioridades. Os algozes abriram um caminho.
A mudança ficou evidente quando a Polícia Federal começou a iluminar os bastidores financeiros onde se acumulam fraudes bilionárias, sonegação em escala industrial, lavagem de dinheiro e conexões silenciosas entre empresários, operadores políticos e grupos criminosos. As operações revelaram ainda redes de auditorias privadas usadas para mascarar desvios estruturais, consultorias internacionais contratadas para deslocar ativos ao exterior e sistemas paralelos de logística que funcionavam como corredores de escoamento para produtos sem lastro fiscal. Vieram à tona também vínculos com plataformas digitais de pagamento que serviam de ponte para ocultar transações, além de protocolos internos em grandes grupos econômicos criados especificamente para dificultar o rastreamento contábil. O que antes parecia fragmentado passou a compor um mapa coerente de interesses articulados, capaz de atravessar fronteiras setoriais e instituições com a mesma fluidez.
À medida que avançam, as investigações colocam em xeque a ladainha confortável que reduz o problema nacional à corrupção política. O moralismo anticorrupção prosperou porque oferece inimigos claros, cenas fotográficas, gabinetes revirados — um drama fácil de consumir. Mas ao ocupar o centro da explicação, desviou o olhar de onde o impacto realmente se produz: nos arranjos que combinam evasão fiscal, manobras financeiras, engenharia contábil e mecanismos de lavagem preparados para drenar recursos antes mesmo de chegarem ao orçamento. A engrenagem que desidrata o país não age na explosão do escândalo; opera com discrição, movida pela habilidade dos grandes agentes econômicos de se manterem sempre alguns passos adiante do Estado.
A malha que a PF vem desfiando revela a lógica desses grupos. Empresas surgem e desaparecem em semanas; refinarias improvisadas criam fluxos paralelos de combustível; redes interestaduais embaralham trajetos e origens; offshores abertas em cascata ocultam patrimônio; escritórios jurídicos transformam fraudes fiscais em disputas administrativas; doleiros e consultorias funcionam como corredores para limpar valores e recolocá-los no circuito formal. A lavagem é o eixo que sustenta tudo isso: absorve recursos, apaga rastros, devolve liquidez e expande a influência desses agentes sobre a economia e a política.
O contraste entre essa engenharia e a indulgência institucional que a cerca também se impõe. Enquanto o discurso anticorrupção desperta indignação imediata, a evasão bilionária e a lavagem são empurradas para o terreno asséptico das tecnicalidades. A pedagogia pública se inverteu: as pessoas aprendem a responsabilizar o Estado pelo posto de saúde sem gaze, pela escola que cai aos pedaços, pelo ônibus lotado — mas raramente conectam esse cotidiano à sangria que antecede qualquer discussão sobre orçamento. A precariedade que marca a vida brasileira nasce ali, no momento em que o dinheiro público é desviado de sua própria possibilidade.
No sistema jurídico, o contraste é ainda mais evidente. Um pequeno comerciante que atrasa impostos enfrenta consequências imediatas; grandes devedores prolongam litígios por anos, num rosário de recursos projetados para travar qualquer tentativa de cobrança. Quando os riscos aumentam, entram em cena os mecanismos de lavagem: compra de ativos, contratos fictícios, consultorias que funcionam como caixas de passagem, laranjas usados como escudo. O direito não opera com a mesma intensidade para todos — e essa assimetria define o terreno sobre o qual a vida social se organiza.
No setor empresarial, o padrão se repete com crescente sofisticação: triangulações interestaduais calculadas para não deixar rastro, cadeias logísticas paralelas, notas fiscais produzidas como névoa, estruturas feitas para viver pouco e circular muito. A lavagem é o instrumento que permite que esse movimento ganhe escala, oferecendo circulação a valores que não sobreviveriam a um exame público. Operações como Poço de Lobato, Carbono Oculto e Cadeias de Delaware apenas tornaram visível um funcionamento que, até então, habitava a penumbra.
Os efeitos sobre o cotidiano são diretos. O dinheiro que falta para merenda, transporte, infraestrutura escolar, segurança pública ou política cultural não se dissolve em Brasília: ele é capturado antes. A desigualdade se alimenta desse desvio inicial, no ponto exato em que o recurso público deixa de existir. A vida precária da maioria nasce da subtração que antecede o debate político.
Nesse ambiente distorcido, a antipolítica floresce. O Estado vira inimigo, o setor privado aparece como vítima virtuosa, e a ação coletiva perde legitimidade. A extrema direita se alimenta desse vácuo, oferecendo indignação pronta e desviando a fúria dos agentes que realmente esvaziam o orçamento. A raiva é canalizada para onde há espetáculo, não para onde há impacto.
Essa história é antiga. Desde o período colonial, a elite econômica brasileira desenvolveu meios para contornar regras, influenciar autoridades, preservar e capilarizar privilégios. A modernização apenas ampliou o repertório e fortaleceu vínculos com circuitos financeiros internacionais. As operações recentes da PF expõem de maneira inédita essa herança sólida, que atravessou séculos com notável capacidade de adaptação.
Essa oposição simplificada entre o “corrupto” visível e o “sonegador” invisível também empobrece o debate público. O corrupto ocupa o papel de vilão porque deixa rastros, protagoniza cenas e fornece narrativa; já o sonegador (do crime, da lavagem) aparece como herói produtivo porque atua protegido por linguagem técnica, intermediários jurídicos e dispositivos de legitimidade econômica. Mas, na prática, essas figuras não são opostas: coexistem, se alimentam e, muitas vezes, dependem uma da outra. A engrenagem que desidrata o Estado funciona justamente quando esses papéis se embaralham, dissolvendo qualquer fronteira moral entre o crime político e o crime econômico.
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