Quem joga os PMs contra a sociedade

Em Oficiais do crime, um sargento esmiúça a corrupção estrutural e os desvios de conduta na corporação. A formação e perfil dos instrutores, muitos deles afastados da rua por atos criminosos. A saudação à ditadura, violência e tortura. E as razões para o fracasso das UPPs

Foto: Governo do Ceará
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Num recente artigo para este site, Luiz Eduardo Soares – antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de Segurança Pública – lembrou que, no Rio, há alguns anos, certo coronel disse que a polícia era um inseticida social.

A declaração insólita demonstra uma visão distorcida da função policial. Visões semelhantes vão se solidificando com o passar do tempo. E tudo começa na própria formação, nos treinamentos e aulas teóricas.

O livro Oficiais do Crime – como funciona a corrupção estrutural e sistêmica da elite da PM do Rio – Editora Matrix, do sargento Silva, que entrou para a PM como soldado e saiu como suboficial, tendo como coautor o experiente repórter investigativo Sérgio Ramalho, é o testemunho de um ex-policial que relata o que viu e ouviu, ou seja: inúmeros casos de corrupção que não são devidamente apurados, e sim, abafados, fato que gera a impunidade e corrói, ano a ano, a credibilidade da corporação.

São relatos verídicos, pessoais, compartilhados pelo ex-policial – e por outros colegas de farda – durante os anos que trabalhou como policial militar no Rio de Janeiro. Ressalte-se que, “por questão de segurança do autor e dos demais policiais, nomes, eventos, lugares, situações, fatos, instituições, datas e personagens foram alterados”.

No curso de formação de novos policiais, os instrutores são policiais veteranos, saudosistas do período ditatorial militar.

De acordo com o depoimento do ex-PM, um dos instrutores – um sargento – orgulhoso dos seus mais de 20 anos prestados à Polícia Militar, começa a instrução de um jeito que não deixa dúvidas do seu perfil. “É, alunos, eu já fui como vocês, já fui recruta. Vocês são sortudos, estão no maior emprego do mundo: são polícia porra!”.

Empolgado, prossegue no seu relato: “A saliva escorre da boca e, em meio à gritaria proferida, a instrução continua. Vocês só deram azar de entrar na época errada, na época do celular, da Globo, da câmera, do x-9. No meu tempo é que era bom; a gente matava, espancava, dava o pela-porco (ato de tomar à força tudo que está na posse de alguém, furto ou roubo) e não acontecia nada. Ninguém ficava sabendo. Época boa. Escutem os antigos aqui, que vocês vão se dar bem”.

O ex-policial frisa que no decorrer do curso de formação “descobrimos que a grande maioria que estava no batalhão-escola foi mandada para lá como forma de punição. Eram policiais desonestos e indisciplinados, que respondiam a inquéritos policiais e, por isso, foram afastados das ruas. Eles carregam uma máxima: só os safos sobrevivem. Todo golpe é válido, desde que não seja descoberto.”

Há também canções militares que exaltam “a violência, tortura e a morte; estimulam a destruição do inimigo a qualquer custo. São entoadas diariamente no curso de formação. Em diversas ocasiões, a escola da PM se assemelha muito mais como uma mini Coreia do Norte do que uma academia de polícia. O principal objetivo é doutrinar o aluno, e não instruí-lo. Perversão, corrupção, assédio físico e moral estão entranhados no processo de formação. Um estado delinquente forma mais delinquentes, e já nos bancos escolares ensinam o errado e cobram o certo, embora todos saibam que o que começa errado termina errado. Quando entramos na PM, ainda na escola, diversas vezes somos humilhados, assediados, incentivados a cometer crimes, a ser serviçais de oficiais, a servi-los e atender seus caprichos. Muitos deles utilizam a polícia em proveito próprio”.

Terminado o curso de formação, com todas as suas incongruências, o policial recém-formado vai para um batalhão para exercer o seu trabalho e passa a conhecer toda a infraestrutura da corporação, com problemas de toda ordem, entre eles a corrupção, além de um tratamento autoritário e antiético por parte dos seus superiores.

O livro possui um capítulo sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a primeira delas inaugurada em dezembro de 2018, na favela Dona Marta, no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio. Passado um tempo, por causa da falta de uma estrutura adequada para o trabalho dos policiais, entre outros problemas, denúncias contra comandantes e casos de corrupção, as UPPs foram pouco a pouco se desgastando, se descaracterizando perante a opinião pública. Na verdade, as UPPs faliram.

Diante do que o livro expõe, não é difícil concluir por que a questão da segurança pública é o principal problema do Rio de Janeiro, cuja história registra o afastamento de seis governadores do cargo por problemas com a Justiça.

Ao terminar a leitura, lembrei de uma frase lapidar de Lúcio Flávio Villar Lírio (1944-1975), bandido que marcou época e virou tema de filme: “Bandido é bandido; polícia é polícia; como água e azeite, não se misturam”.

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