Politizar
A politização que se exige hoje não pode ser apenas tática. Exige reorganizar o campo de forças, assumir os antagonismos e propor direção. Exige escuta, confronto, mudança de postura. É saber que ou mudamos as escolhas, ou o caminho vai ser o óbvio
Publicado 30/06/2025 às 19:19 - Atualizado 30/06/2025 às 19:22

Logo após cada derrota do governo Lula no Congresso — e elas têm sido muitas — reaparece o velho bordão: é preciso politizar o debate. Ladainha. A frase circula com ares de lucidez tardia, como se nomear o problema bastasse para resolvê-lo. Mas é justamente aí que começa o engodo.
Politizar não acontece como mágica. Não basta dizer “isso é político” como se fosse uma senha. Politização real não é grito, não é estética, não é reação automática. Ela exige conflito real, projeto claro, disputa concreta. Politizar é interrogar estruturas, nomear interesses, abrir o jogo que querem manter fechado. E isso tem custo.
O que se vê no lugar disso é a coreografia do engajamento. Um jogo de cena que fala em politização, mas foge da política. Porque politizar de verdade implicaria escolher lado, tensionar alianças, romper com pactos que já não entregam nada. Isso poucos querem fazer. Preferem repetir a fórmula e seguir na encenação.
A falsa politização se espalha como verniz. Assume a forma de colunas bem-intencionadas, diagnósticos apressados e apelos por “diálogo”. Mas não há diálogo real sem disputa de projeto. E o que temos hoje é o uso da palavra política para evitar que se faça política. É antipolítica vestida de crítica.
Um dos sintomas disso é o argumento recorrente de que “falta comunicação”. É um discurso fácil, que sempre volta quando o conteúdo da política desagrada. A comunicação vira bode expiatório: se o governo perdeu, foi porque não soube explicar. Não porque fez um recuo estratégico, cedeu ao mercado ou se rendeu ao Centrão. Esse argumento é perigoso, porque desloca o problema da política para a forma, e transforma erro de escolha em falha de marketing, de divulgação ou do “modo de falar com o povo (seja lá o diabo que for). Serve para mascarar a realidade, não para enfrentá-la.
Dito isso, não se trata aqui de fingir que é simples enfrentar um Congresso atravessado por práticas fisiológicas e controlado por lobbies poderosos — do mercado financeiro ao agronegócio, passando por setores que há anos acumulam privilégios, isenções e canais diretos com o Estado. É evidente que há uma correlação de forças difícil. Mas politizar é justamente expor esse jogo, em vez de camuflá-lo com frases de efeito. É disputar as interpretações, não só administrar o dano.
Autoengano é talvez a forma mais aguda de despolitização que existe. Porque ao invés de enfrentar a realidade, prefere distorcê-la até que ela se torne tolerável. Ao invés de fazer balanço, cria álibis. Ao invés de pensar estratégia, se contenta com manobras táticas para salvar o dia. É o tipo de erro que se acumula — e que cobra seu preço mais à frente.
Por isso mesmo, a politização que se exige hoje não pode ser apenas tática — um discurso reativo para justificar uma derrota pontual. Ela precisa ser estratégica: capaz de ler a conjuntura, reorganizar o campo de forças, assumir os antagonismos e propor direção. Politizar é reabrir o tempo da política, não apenas sobreviver à próxima votação.
E mais: politizar é olhar para os interesses populares como eles são — não como eu desejaria que fossem. Isso significa encarar as contradições reais das classes subalternas, as ambiguidades do pragmatismo popular, os efeitos duradouros de uma educação política precária, o peso das derrotas simbólicas acumuladas e as vitórias cognitivas e culturais do liberalismo. Politizar, nesse sentido, exige não só coragem, mas método. Exige escuta, autocrítica e a recusa de idealizações preguiçosas que só servem para alimentar bolhas e reafirmar certezas.
Em tempos de paralisia, quando domina a sensação de derrota ou imobilismo, esse tipo de discurso ganha ainda mais tração. Promete saídas rápidas, explicações fáceis, soluções sem conflito. Mas não há saída sem disputa. E politização não é remédio para mágoa, é ferramenta de reorganização da luta. É confronto, e como tal exige uma mudança de postura.
Politizar, portanto, é implicar-se. É sustentar a tensão. É não aceitar a derrota como natural, nem a conciliação como solução automática. É saber que há momentos em que só resta dizer: ou mudamos as escolhas — ou o caminho vai ser o óbvio.
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