A Petrobrás e os “rinocerontes” do financismo

Nas últimas décadas, a estatal mostrou resiliência à onda privatista no governo FHC, desmonte da Lava Jato… Tensão entre Lula e acionistas expõe a nova batalha: combater os tentáculos da Faria Lima na empresa, decisiva para a reconstrução nacional

Imagem: Albrecht Dürer
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A polêmica mais recente em torno do pagamento de dividendos pela Petrobrás aos seus acionistas joga um pouco mais de luz no debate a respeito da natureza mesma da maior empresa brasileira em nossa sociedade e importante peça no mundo capitalista globalizado. A petrolífera foi criada em outubro de 1953 por Getúlio Vargas e iniciou suas atividades no ano seguinte. Assim, no período em que comemora seu aniversário de 70 anos, a empresa se consolida como um relevante conglomerado estatal nesse ramo estratégico de nossa economia. Na verdade, a derrota de Bolsonaro colocou um fim à política de tentativa de privatização e dilapidação da mesma, tal como idealizado por Paulo Guedes na condição de banqueiro investido no cargo de superministro da economia.

A estratégia de redução da importância da Petrobrás envolveu ações da quadrilha da Lava Jato em Curitiba, que operava em sintonia e sob o comando do Departamento de Estado do governo norte-americano. E a privatização da mesma ganhou reforço com o êxito do golpeachment perpetrado contra Dilma Rousseff e a entrada em cena de Michel Temer com Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda e Pedro Parente no comando do conglomerado petrolífero. É dessa época a esdrúxula diretriz de atrelar o preço interno dos derivados às oscilações do petróleo no mercado internacional. Além disso, a direção da empresa orientou a área operacional para reduzir o processo de refino nas destilarias. O Brasil voltou a exportar óleo bruto e a importar os derivados de maior valor agregado. Uma loucura!

Imaginava-se que esse ciclo liberal e privatista fosse revertido com a vitória de Lula nas eleições de 2022. No entanto, a disputa em torno da orientação da política econômica do terceiro mandato termina por provocar sérias consequências também para os aspectos operacionais e estratégicos da Petrobrás. Para além das tensões de acomodação de interesses distintos no comando da empresa e na direção do Ministério de Minas e Energia, o fato é que o governo não assumiu de maneira efetiva uma vontade política de alterar a rota que havia sido imposta à estatal desde 2016. Jean Paul Prates, o presidente indicado por Lula, tem exibido suas desavenças com o ministro da área, Henrique Silveira (PSD-MG). Este havia sido nomeado para o cargo na composição do novo governo com as forças ligadas ao Centrão. Mas ninguém bate o martelo em questões relevantes.

PetroBrax: tentativa criminosa e fracassada

O complexo processo de indicações de membros dos Conselhos da empresa e de sua diretoria permite reforçar a indagação do título do artigo. Afinal, a cada instante e a cada nova conjuntura parece que a empresa obedece a interesses distintos. Esse processo de indefinição já vem de longa data. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), teve início um processo de adequação da empresa ao universo das grandes corporações multinacionais. A intenção era justamente promover mudanças que facilitassem o próprio processo futuro de privatização. Entre 1999 e 2000 foram realizadas gestões e ações de abertura do capital da Petrobrás na Bolsa de Nova Iorque. Entre o Natal e o Ano Novo de 2000 foi anunciado, inclusive, a proposta iminente de alteração do nome e da marca do grupo para PetroBrax, com o claro intuito de aprofundar o processo de internacionalização da empresa e de perda de sua referência da nacionalidade brasileira. Felizmente, a proposta foi amplamente criticada e o governo à época foi obrigado a recuar de tal intento entreguista.

No entanto, a abertura de capital para investidores no mercado acionário global foi mantida e a empresa passou a ficar sujeita às regras do mercado mobiliário norte-americano. Com isso, todas as inciativas do conglomerado passaram a sofrer risco jurídico de questionamento pelos investidores privados, na condição de acionistas minoritários. O ponto a reter é que processo de inserção no mercado financeiro internacional da Petrobrás teve continuidade mesmo com a chegada de Lula a Presidência da República. Em setembro de 2010, o governo articulou, a exemplo do que havia feito FHC, o lançamento de ações do grupo brasileiro simultaneamente na Bolsa de Nova Iorque e na Bovespa em São Paulo. O evento foi comemorado como tendo sido a maior emissão acionária da história jamais ocorrida até aquele momento.

Um dos principais argumentos para tal capitalização inédita seria a busca de recursos para financiar o esforço de investimento da exploração das reservas petrolíferas do Pré-sal. O movimento foi considerado um sucesso, tendo em vista a resposta positiva apresentada pelos investidores nacionais e internacionais ao chamamento realizado pelo governo brasileiro. No entanto, a contrapartida de tal iniciativa viria posteriormente, na forma de processos judiciais levados à frente pelos acionistas minoritários. Na esteira dos processos ilegais forjados pela Operação Lava Jato, a empresa foi obrigada a selar acordos bilionários na justiça norte-americana, com o intuito de indenizar os acionistas minoritários. Os argumentos eram todos baseados nas denúncias de corrupção e supostas perdas provocadas por tais casos no balanço da Petrobrás.

Lava Jato quis destruir a Petrobrás

Mas o fato concreto é que a conduta criminosa e ilegal levada à frente pelos inimigos da democracia e do Estado brasileiro foi condenada nos anos seguintes. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu todas as ilegalidades cometidas contra Lula e os processos fraudulentos foram todos anulados. O procurador Deltan Dallagnol, que assumiu o protagonismo político a partir de sua atuação midiática no processo, teve seu mandato de deputado federal cassado. Sérgio Moro está no mesmo caminho no que se refere ao mandato de senador. No entanto, as perdas patrimoniais e financeiras bilionárias sofridas pelas empresas nacionais de construção civil e pela Petrobrás ficaram para História.

Ocorre que a importância estratégica assumida desde sempre pela empresa estatal do petróleo permitiu que a mesma sobrevivesse a todo esse período de trevas e de ataques a que foi submetida. Como fênix, ela praticamente renasceu das próprias cinzas. E, assim, remando contra interesses poderosos, ela tem recuperado aos poucos sua capacidade econômica, financeira e operacional. Apesar de todo o esforço do grande capital e do financismo em promover sua dilapidação, apequenamento ou eliminação, o fato é que o processo histórico tem demonstrado que a Petrobrás não pertence a eles. De alguma forma, o sonho de Getúlio Vargas permanece mais do que vivo: o petróleo é nosso!

No entanto, as tentativas de liberalização e privatização deixaram suas marcas na vida da empresa. Sua gestão cotidiana e estratégica ainda depende de serem atendidos uma série de dispositivos introduzidos na legislação ao longo das últimas décadas. Dentre os muitos aspectos alinhados com os interesses dos grandes investidores destaca-se a questão dos lucros e dividendos. Fosse a Petrobrás uma empresa pública no sentido estrito da palavra, 100% de suas ações pertenceriam à União, assim como ocorre com a Caixa Econômica Federal ou com os Correios. Nesse caso, os resultados positivos dos balanços seriam apropriados totalmente pelo Tesouro Nacional ou reinvestidos na própria empresa. Porém, na condição de empresa de economia mista e com ações negociadas no exterior, a distribuição de lucros e dividendos é aguardada, a cada semestre, com a conhecida voracidade dos detentores de seus papéis.

Lucros e dividendos para o financismo

Para os investidores que operam dentro do espaço nacional, inclusive, a distribuição desse volume bilionário de recursos ainda ocorre sem o recolhimento de imposto de renda na fonte, como ocorre com qualquer cidadão considerado “normal”. Trata-se da mesma isenção introduzida na legislação por FHC no primeiro de seu mandato em 1995, alguns anos antes do lançamento dos títulos da Petrobrás nos Estados Unidos. A força do financismo nos circuitos paralelos das tomadas de decisões da tecnocracia estatal termina por assegurar que os lucros auferidos pela empresa estatal sejam rigorosa e pontualmente distribuídos ao capital privado. Durante os últimos três anos, os lucros registrados e os lucros/dividendos têm sido recordes.

Pois então é perfeitamente compreensível a indignação do presidente da República esse respeito. Afinal, se a maioria da população passa por dificuldades e o governo se vê amarrado em suas políticas de investimento público por conta da política fiscal do próprio Ministério da Fazenda, não faz o menor sentido a Petrobrás promover a distribuição de tais benesses sem nenhuma contrapartida. Lula afirmou:

(…) “Se eu for atender apenas à choradeira do mercado, você não faz nada, porque o mercado, vou contar uma coisa para vocês, o mercado é um rinoceronte, um dinossauro voraz, ele quer tudo para ele e nada para o povo” (…)

É claro que pode haver algum detalhe operacional que não era totalmente transparente e que com toda a certeza foi introduzido nas regras e na legislação em algum momento passado justamente para beneficiar o capital privado. Este parece ser o caso da proibição de se reinvestir na própria Petrobrás os dividendos considerados “extraordinários”.

Mas, afinal, de quem é a Petrobrás? Ela pertence ao povo brasileiro ou à minoria detentora de uma parcela minoritária de suas ações nas Bolsas de Valores em São Paulo e Nova Iorque? Que esse caso emblemático sirva de exemplo para que sejam promovidas as mudanças necessárias. Lula está correto e precisa assumir claramente que uma empresa estatal tão importante como ela não pode estará apenas a serviço de interesses encastelados no universo do financismo. Os lucros da Petrobrás precisam ser investidos para aumentar sua capacidade produtiva e também colaborar para o aumento tão urgente e necessário dos investimentos do conjunto de nossa economia.

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