Petrobrás: Caminhos para outro projeto de Brasil

Abertura ao capital privado transformou a estatal numa máquina de gerar dividendos, com gestão curto-prazista. Resultado: baixo investimento em tecnologia, refino e transição energética. Soberania, inovação e resiliência a crises passam por retomar vínculo a um projeto nacional

Manifestação de petroleiros na sede da Petrobras, no Rio. Foto: Brenno Carvalho
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A trajetória da Petrobras se confunde, em grande medida, com os rumos e os anseios do povo brasileiro. A campanha de sua criação, nos anos 1950, “O Petróleo é Nosso!”, capturou o sentimento nacional à época. Já nos anos 90, o governo FHC abriu espaço à iniciativa privada, redesenhou incentivos e diluiu o comando público. Duas décadas mais tarde, a fotografia societária refletia essa inflexão: em 2021, investidores estrangeiros detinham 39,28% das ações ordinárias, com influência direta sobre a orientação estratégica. Nesse intervalo, a missão de coordenar ciência, indústria e abastecimento foi gradualmente substituída por metas financeiras de curto prazo.

Reestatizar integralmente a Petrobras não é nostalgia nem retorno ao passado, é recuperar capacidade de planejamento em um setor estratégico da indústria brasileira. Quando uma empresa desse porte passa a ser guiada por dividendos à iniciativa privada, tende a exportar óleo cru quando a arbitragem paga mais, reduzir risco tecnológico e comprimir investimentos em refino e petroquímica. O caixa melhora, mas o país perde desenvolvimento industrial, empregos qualificados e resiliência a choques cambiais e geopolíticos. O resultado é conhecido: volatilidade repassada ao consumidor, importação de derivados em fases de alta e desorganização de cadeias produtivas locais.

O Brasil já demonstrou que coordenação pública transforma conhecimento em soberania. O CENPES (Centro de Pesquisas Leopoldo Américo Miguez de Mello) integrou universidades, empresas nacionais e fornecedores em missões tecnológicas, desenvolvendo pesquisa e inovação em solo brasileiro no campo da energia. O ecossistema no entorno da UFRJ aproximou laboratório e plataforma, encurtando o caminho entre protótipo e produção. Essa vizinhança organizada elevou a produtividade, formou quadros e consolidou ciência onde havia dependência tecnológica. Esse é o papel de uma empresa como a Petrobras: servir aos interesses do povo brasileiro e atuar como alavanca do desenvolvimento nacional.

Há, ainda, o componente macroeconômico. Em setores-chave da indústria, repassar quase integralmente a volatilidade internacional para a bomba de combustível transfere incerteza aos orçamentos domésticos e às planilhas das empresas. Uma política de preços anticíclica, sustentada por estoques reguladores com metas de cobertura e gatilhos transparentes, suaviza picos, dá previsibilidade a famílias e negócios e reduz o custo financeiro de operar no Brasil. Com comando estatal e visão de longo prazo voltada ao consumidor brasileiro, e não a lucros internacionais, a Petrobras tem condições de amortecer choques externos em território nacional.

A objeção mais recorrente à reestatização é a governança. A concorrência privada, argumenta-se, impõe disciplina, atrai capital e melhora a eficiência. É um ponto relevante, e a resposta não é ignorá-lo, e sim estruturar salvaguardas. A experiência recente expõe o trade-off: com ênfase no curto prazo, P&D vira custo a cortar, o refino perde prioridade e a empresa passa a se comportar como exportadora de óleo e importadora de volatilidade. Eficiência de firma não substitui coerência de sistema em um setor intensivo em capital, repleto de interdependências e impactos macroeconômicos. Nessa lógica, o Brasil perde a função de alavanca da Petrobras no desenvolvimento nacional, trocada por uma busca de eficiência nos dividendos dos acionistas, em detrimento do propósito fundacional e do interesse público.

A pergunta central, portanto, é “como” e “para quê”. Reestatizar o capital votante recompõe a capacidade de definir uma estratégia integrada de exploração, refino, petroquímica e logística, alinhada a objetivos nacionais e ambientais. Revisar o arranjo institucional pós-1997 é passo necessário para que o Conselho Nacional de Política Energética fixe diretrizes, a Agência Nacional do Petróleo regulamente e fiscalize, e a Petrobras execute com metas de investimento e desempenho de longo prazo.

Há também um horizonte tecnológico em disputa. O país pode utilizar o poder de compra da Petrobras para induzir conteúdo local e inovação em descarbonização, de combustíveis de baixo carbono à captura e uso de CO₂, com metas, cronogramas e avaliação pública. Parcerias regionais com universidades e fornecedores reduzem custos de transação e aceleram a difusão tecnológica. A coordenação estatal compartilha risco onde a incerteza é elevada demais para o capital privado, diminuindo o custo do aprendizado e evitando gargalos estratégicos.

No fim, energia não é um ativo financeiro qualquer: é base material de um projeto nacional. Tratar a Petrobras como instrumento de política pública responsável não nega a eficiência, reconecta eficiência a propósito. O Brasil tem escala, reservas, quadro técnico e memória institucional para liderar uma estratégia que ofereça previsibilidade ao investidor, preço justo ao consumidor e horizonte tecnológico ao país. Reestatizar é a chave para recolocar a empresa onde mais rendeu ao Brasil: coordenando, com visão e responsabilidade, a ponte entre recursos naturais e desenvolvimento.

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