O rombo de 1 trilhão de reais

Brasil pagou este valor, em doze meses, ao parasitismo financista. Mas insiste em cortes nos gastos sociais que podem aprofundar desigualdades e abrir espaço para a privatização de serviços públicos. Se 2026 já começou, como diz Lula, é hora de reorientar a política econômica

Imagem: depositphotos.com
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A maioria dos alunos matriculados na quarta ou na quinta série do ensino fundamental já começou a tomar os primeiros contatos com números decimais nas aulas de matemática. Assim, ali percebem nas salas com seus professores que o número 0,95 pode ser arredondado para 1,00. Por dedução, também o número 950 pode ser aproximado para 1.000. Pois, então, são essas regras que nos permitem afirmar que as despesas com juros realizadas pelo governo federal ao longo de 2024 alcançaram a trágica marca de um trilhão de reais. Uma tragédia!

O Banco Central (BC) divulgou há poucos dias o seu relatório mensal com a atualização das informações de política fiscal. Com a publicação deste boletim mais recente, é possível realizarmos a consolidação das informações para os 12 meses do ano passado. Em dezembro foram gastos R$ 96 bilhões com a rubrica de juros da dívida pública. Ainda que não tenha sido um recorde na série histórica mensal, o montante é muito alto e ocupa o segundo lugar no quesito, só sendo ultrapassado pelos R$ 111 bi ocorridos dois meses antes, em outubro. Esse valor representa um crescimento de 51% em relação ao realizado em dezembro de 2023.

Juros: nunca antes na História deste país

Para não ficarmos apenas nas variações comparativas entre períodos de apenas 30 dias, talvez seja interessante ampliar o espaço analisado. Se considerarmos o último trimestre, por exemplo, percebemos que as despesas com juros atingiram o total de R$ 300 bi apenas para o período entre outubro e dezembro do ano passado. Esse total representa uma elevação de 77% na comparação com os R$ 169 bi que ocorreram para o mesmo período de 2023. Não existe nenhum outro tipo de variável de gasto público federal que tenha alcançado tal majoração.

Brasil – Despesa com Juros – Comparação 2023 e 2024
(em R$ bilhões)

Fonte: BC

Caso a comparação seja entre os valores do segundo semestre dos dois exercícios considerados, a diferença também é expressiva. Para o período julho/dezembro de 2024, o total de despesas com juros alcançou R$ 496 bi. Esse montante representou um crescimento de 30% em relação aos R$ 381 bi verificados no mesmo período de 2023.

Finalmente, pois para os 12 meses de 2024 o montante total de despesas com pagamento de juros da dívida pública foi de R$ 950 bi, que arredondados nos levam ao trilhão. Este valor significa uma elevação de 32% sobre os R$ 718 bi que foram transferidos do Orçamento da União para mesma função associada o parasitismo financista. Infelizmente esta parece ser a prioridade na agenda da área econômica do governo. Nada de limite, de corte ou de contingenciamento nesse item dos gastos.

O gráfico abaixo exibe, de forma bem cristalina, o crescimento acentuado que ocorreu na dimensão das despesas financeiras ao longo da primeira metade do terceiro mandato de Lula. Para usar uma expressão bem ao gosto do presidente, nunca antes na História deste país o governo federal realizou tamanho volume de despesas com o pagamento de juros da dívida.

Brasil – Despesa com Juros – 2021/2024
(em R$ bilhões)

Fonte: BC

O montante alocado para o pagamento das despesas financeiras no interior do Orçamento da União tem sido significativo ano após ano. De acordo com as informações apuradas e divulgadas pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) a série começou a ser elaborada em 1997. Assim, ao longo destes 28 anos, até o encerramento do exercício de 2024, o governo federal destinou o total de R$ 10,5 trilhões para o pagamento de juros da dívida pública. Para quem se preocupa de forma sincera com a “gastança” ou com a “qualidade do gasto público”, este deveria ser o objeto de análise e de crítica. Mas os escribas a soldo do financismo preferem esquecer este fenômeno.

Rigor da austeridade fiscal não mexe com juros

Tais números desmontam o falso argumento a respeito das causas de suposto desequilíbrio estrutural das contas orçamentárias. As vozes que sempre saem em defesa dos interesses do financismo – e mesmo setores encastelados na alta tecnocracia estatal – sempre procuram responsabilizar as rubricas de natureza social como sendo as principais responsáveis pelo déficit fiscal. Para tanto, se agarram como podem na metodologia das “contas primárias”, que se arrasta de forma prolongada desde a década de 1980, como a técnica oficial de apuração do resultado fiscal para nosso país.

Assim, o problema reside na circularidade tautológica inerente ao modelo adotado. Como a definição do conceito de “primário” significa a exclusão das contas financeiras para fins de apuração do resultado consolidado entre receitas e despesas, o fato concreto é que o monstruoso volume de pagamento de gastos com juros da dívida pública fica de fora da contabilidade. Desta forma, o discurso oportunista do financismo e das forças conservadoras acaba por se concentrar nas contas mais expressivas de natureza social, ou seja, as chamadas contas primárias. E assim tem sido desde há muito tempo: o bombardeio contra as despesas com saúde, assistência social, educação, previdência social, salários de servidores, segurança pública e outros.

Um dos aspectos mais dramáticos desse processo é o esmagamento da capacidade orçamentária nestas áreas de natureza social, abrindo espaço para uma crescente privatização da oferta de tais serviços públicos. Com isso, observamos uma participação cada vez maior do capital privado em hospitais, planos de saúde, gestão de organizações sociais (OS) de saúde, escolas de ensino fundamental e médio, faculdades e universidades, empresas de segurança privada, serviços pagos de assistência social e outros.

Governo se orgulha de “robustez fiscal”

Apesar das críticas generalizadas na sociedade à continuidade do modelo austericida proposto por Fernando Haddad, o governo continua encampando o conservadorismo na política econômica. Na verdade, o próprio presidente Lula deixa escapar em vários momentos uma visão equivocada a respeito das características da dinâmica da economia, buscando associar o tratamento das contas públicas ao orçamento doméstico ou familiar. A manifestação mais recente ocorreu em entrevista coletiva concedida em 30 de janeiro, quando ele mais uma vez afirmou que tudo o que sabe de economia teria aprendido com sua mãe, Dina Lindu. Disse Lula aos jornalistas:

(…) “eu aprendi a estabilidade com a dona Lindu – é assim que eu governo esse país. Não se pode gastar mais do que a gente tem capacidade de arrecadar” (…)

Além disso, na mensagem enviada ao Congresso Nacional para marcar a abertura do ano legislativo de 2025, o governo faz uma extensa menção a seu compromisso com a austeridade. Tanto que o documento recebeu, de forma inédita, um capítulo dedicado exclusivamente ao tema, com o significativo título de “Compromisso com a robustez fiscal”. Uma loucura! E dentre as inúmeras referências positivas à austeridade fiscal, pode-se destacar no texto:

(…) “Em 2024, o Governo Federal manteve seu compromisso com o equilíbrio das contas públicas. Fizemos o sexto maior ajuste fiscal do mundo e o terceiro maior entre os países emergentes, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O déficit primário está estimado em 0,1%, o menor da década.
Em 2025, continuaremos a pautar nossa gestão pelo compromisso com o equilíbrio fiscal. Isso está expresso na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), assim como no conjunto de medidas fiscais enviadas em novembro de 2024 ao Congresso Nacional, que permitirão economizar R$ 70 bilhões em 2025 e 2026.” (…) [GN]

Apesar de todo esse autoelogio, que contradiz frontalmente qualquer perspectiva de um governo progressista e voltado para um projeto de desenvolvimento, não existe nenhuma referência à marca simbólica de um trilhão de reais para o cumprimento das obrigações com os detentores de títulos da dívida pública. Talvez a verdadeira razão para tal esquecimento carregado de significado esteja no fato de que essa cifra envergonha o Partido dos Trabalhadores e todos os grupos políticos, entidades e setores que apostam em um processo de mudança efetiva nos rumos do terceiro mandato.

O tempo avança rapidamente e, como o próprio Lula tem expressado, 2026 já começou. As pesquisas de opinião apontam para uma arriscada queda de popularidade do presidente e de seu governo. Faz-se urgente a tomada de decisões para promover uma reorientação dos rumos da política econômica. Insistir na receita de juros elevados e cortes orçamentários a rodo não parece ser a melhor forma de se preparar para uma disputa que promete ser acirrada.

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