O desmonte silencioso do piso da Educação
Há consistência na narrativa de “justiça social” do governo? Um exame da MP 1.303 sugere que não. A pretexto de adotar o programa Pé de Meia, cortam-se 11% dos recursos de uma pasta essencial para superar o atraso do país – e abre-se caminho para mais privatização
Publicado 30/06/2025 às 19:15 - Atualizado 30/06/2025 às 19:20

O artigo 65 da Medida Provisória nº 1.303/2025 introduz uma mudança profunda — e devastadora — no financiamento da educação pública brasileira. Em vez de cortar abertamente recursos da área, a medida altera o conceito do que pode ser considerado gasto educacional. Ao permitir que o programa Pé-de-Meia, uma política de transferência de renda a estudantes pobres do ensino médio, seja contabilizado como despesa de “manutenção e desenvolvimento do ensino” (MDE), o governo rebaixa, na prática, o piso constitucional obrigatório da educação pública, sem precisar alterar a Constituição nem enfrentar os custos políticos de uma medida frontal.
A Constituição Federal, no artigo 212, determina que a União deve aplicar no mínimo 18% da receita líquida de impostos em MDE. Historicamente, esse conceito foi protegido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que lista como MDE apenas despesas vinculadas ao processo pedagógico — como remuneração de professores, formação docente, infraestrutura escolar, material didático, pesquisa e bolsas acadêmicas. O artigo 65 da MP 1.303/2025 rompe essa lógica, ao inserir no art. 70 da LDB uma despesa assistencial que não incide sobre o funcionamento direto da estrutura educacional.
O impacto é substancial. O programa Pé-de-Meia tem orçamento estimado em aproximadamente R$ 12,5 bilhões anuais. Ao permitir que esse valor seja contabilizado como gasto com manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), a medida não altera o valor total do piso constitucional — que continuará sendo calculado como 18% da receita líquida de impostos —, mas reduz o volume de recursos que precisa ser aplicado diretamente em políticas educacionais estruturantes. Para se ter dimensão: em 2024, o piso federal foi de R$ 108,6 bilhões. Com a inclusão do Pé-de-Meia nessa conta, o governo poderá considerar esse piso como cumprido com cerca de R$ 96 bilhões efetivamente investidos em educação pública — uma compressão real de mais de 11% no financiamento da rede federal de ensino, pesquisa e formação.
Esse não é um corte qualquer. É uma mudança estrutural, de caráter permanente e cumulativo. Embora o Tesouro Nacional estime um impacto inicial menor — da ordem de R$ 4,8 bilhões em 2026 —, a incorporação assistencial ao conceito de MDE altera a base de cálculo do mínimo constitucional de forma definitiva. Inclusive, em 2026, o corte poderá atingir o teto máximo estimado, de R$ 12,5 bilhões, a depender da velocidade de execução e expansão do Pé-de-Meia. Nos anos seguintes, esse patamar de investimento em universidades, institutos federais, pesquisa e estrutura pedagógica poderá ser comprimido legalmente, sem qualquer violação explícita à Constituição — e até mesmo com cortes superiores, caso novos programas sejam incorporados à lógica de substituição.
A justificativa apresentada pelo governo — de que a medida serviria para compensar a perda de arrecadação com a redução do IOF — é absolutamente falsa. Trata-se de uma cortina de fumaça, construída para justificar um ataque deliberado ao financiamento da educação pública. A renúncia do IOF tem natureza temporária e efeito limitado: foi adotada para fins de recomposição momentânea do espaço fiscal diante de frustração de receitas previstas nas reavaliações bimestrais de arrecadação, conforme determina a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É, portanto, uma medida de curto prazo, voltada ao cumprimento das metas fiscais ao longo do exercício. Já a mudança promovida pelo artigo 65 da MP 1.303 é de natureza completamente distinta: trata-se de uma alteração estrutural, com efeitos permanentes sobre a composição do piso constitucional da educação, cujo objetivo real é reduzir de forma estável e contínua o espaço orçamentário destinado ao financiamento público da educação — mesmo em cenários de recuperação da receita. A falsa equivalência entre uma compensação transitória e um rebaixamento definitivo é parte do artifício retórico que tenta apresentar um corte permanente como simples realocação técnica.
Essa estratégia não nasce do acaso, tampouco pode ser examinada isoladamente. Ela é produto direto de uma incompatibilidade matemática instaurada pelo próprio Novo Arcabouço Fiscal (LC 200/2023), que limita o crescimento das despesas primárias a, no máximo, 70 % da variação real da receita, com um teto anual de 2,5 p.p. acima da inflação. Já os pisos constitucionais de saúde e educação têm de acompanhar 100 % desse crescimento. Se a receita avançar 10 % em termos reais, os pisos precisam subir os mesmos 10 %, enquanto o gasto primário total poderá crescer apenas 2,5 %. Consolida-se um impasse estrutural no orçamento público: os pisos disputam um espaço que não cresce na mesma proporção, estrangulando todas as áreas sem proteção legal. Daí surge uma pressão permanente por artifícios que diluam ou esvaziem os próprios pisos. O artigo 65 inaugura esse ciclo — e dificilmente será o último; ataques semelhantes já se anteveem, inclusive contra a saúde.
O expediente da vez é contábil: altera-se o que se registra como gasto educacional não para preservar o piso, mas porque atacá-lo abertamente ainda impõe alto custo político e legal. Enquanto não se viabiliza uma ofensiva direta, a estratégia é corroê-lo por dentro — mantendo o número no papel, enquanto a base material da política pública desaparece. Ganha-se tempo até que se acumulem as condições para o ataque definitivo, já cogitado por membros do governo para 2027, como admitiu publicamente a ministra Simone Tebet.
O problema se estende para além da esfera federal. Ao alterar a definição de MDE na LDB — norma de aplicação nacional —, a MP cria um precedente perigoso: estados e municípios, igualmente pressionados por suas próprias metas fiscais e regras de responsabilidade, passarão a contabilizar gastos assistenciais ou paralelos como cumprimento do piso educacional de 25% (ou 27,5% no caso de parte dos municípios). Abre-se, assim, uma disputa por recursos dentro do próprio orçamento da educação: profissionais da educação, estrutura física das escolas e investimentos pedagógicos competirão diretamente com ações de impacto político imediato, mas estruturalmente desconectadas do direito à educação.
Esse debate exige atenção técnica e política. Há quem defenda que políticas como o Pé-de-Meia favorecem a permanência estudantil e, por isso, deveriam ser reconhecidas como parte do esforço educacional. O problema é que isso só faz sentido se esses gastos forem adicionais — e não substitutivos. Se o Pé-de-Meia estivesse inserido no orçamento como reforço, sem ser contabilizado dentro do piso, seria uma ação legítima. Mas o que se vê é o inverso: transfere-se diretamente à família um valor mensal, ao mesmo tempo em que se desmonta, por dentro, a capacidade do Estado de manter a escola pública funcionando com dignidade.
Na prática, constrói-se um novo modelo de financiamento educacional. Em vez de universidades com laboratórios, bibliotecas e professores valorizados, aposta-se em um modelo individualizado de política pública, baseado em transferências monetárias e baixa capacidade instalada. O custo per capita é menor — e a eficácia do direito, também. Mantém-se a aparência de compromisso social, enquanto a infraestrutura que sustenta esse compromisso é sistematicamente corroída.
O orçamento não é neutro. Ele revela, todos os dias, a hierarquia dos interesses que o Estado decide proteger. A alteração do piso educacional atende a um imperativo fiscal autorreferido: manter o superávit primário, preservar a confiança dos mercados, satisfazer a âncora fiscal — mesmo que isso comprometa o futuro educacional do país. É uma escolha política — e, como tal, deve ser denunciada como escolha de classe.
O que está em jogo aqui não é uma mera disputa por fatias do orçamento, mas o destino do fundo público e da própria política educacional. A manobra que esvazia o piso da educação integra um projeto mais amplo: precarizar deliberadamente o que é público para justificar sua substituição por mecanismos privados. Ao asfixiar estruturalmente o financiamento da educação pública, abre-se espaço para a mercantilização do ensino por meio de parcerias, compras de vagas, terceirizações e subsídios ao setor privado. Mais do que isso: o desmonte do financiamento direto favorece a financeirização da política social, transformando direitos em ativos negociáveis, com fluxo de recursos mediado por fundos, bancos e instrumentos de crédito. O fundo público deixa de servir à universalização dos direitos e passa a operar como plataforma para novos mercados. É isso que está em curso.
Reverter esse ataque exige muito mais do que suprimir um artigo de medida provisória. Significa enfrentar o próprio Novo Arcabouço Fiscal — hoje cristalizado na Lei Complementar nº 200 — que transformou a educação pública em alvo recorrente de ajuste, tratada como inimiga da responsabilidade fiscal sempre que o orçamento aperta. Enquanto essa estrutura vigorar, qualquer vitória contra cortes será frágil, sempre sob risco de novos contingenciamentos.
Por isso, ainda que a aprovação da Emenda nº 195, da deputada Fernanda Melchionna (PSOL), que suprime o artigo 65, seja uma medida urgente e indispensável, ela não basta. É apenas o primeiro passo de uma disputa estrutural muito mais ampla. Para enfrentar a raiz do problema, é preciso derrubar o teto de gastos e, com a mesma ousadia com que os defensores da austeridade e inimigos da educação propõem cortes, colocar na agenda a ampliação do piso constitucional da educação. Se cogitam rebaixá-lo, devemos exigir sua elevação.
Hoje, os 18% da receita líquida de impostos já são manifestamente insuficientes para garantir o funcionamento básico das universidades, dos institutos federais, da pesquisa científica e das políticas de permanência estudantil. A precariedade cotidiana dessas instituições — com orçamentos estrangulados, laboratórios paralisados, bolsas congeladas e infraestrutura em colapso — revela que a luta não é apenas por preservar o que existe, mas por construir um novo patamar de financiamento, à altura de um projeto nacional de educação pública, gratuita e de qualidade.
Mas a disputa decisiva ocorrerá fora do plenário. Será preciso mobilizar sociedade civil, movimentos educacionais, sindicatos, estudantes e comunidade acadêmica numa frente ampla que não apenas defenda o piso, mas lute por sua elevação a patamares compatíveis com um projeto de futuro para o país. A batalha é política: ou o fundo público financia direitos e conhecimento, ou continuará servindo à lógica de cortes e mecanismos privados. O que se arma hoje é o desmonte silencioso de um direito — e isso não se negocia. Denuncia-se, enfrenta-se e, por fim, revoga-se.
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