O Agro e a força… dos castelos de cartas
Quebra de uma grande empresa do setor revela: empréstimos privados aos produtores rurais acumulam-se e podem ter se tornado tóxicos, com a queda dos preços das commodities. Mídia silencia, mas já há quem queira ganhar com o drama alheio
Publicado 15/10/2024 às 19:09
Por Lucas Trentin Rech1
MAIS:
Nesta quarta-feria (16/10), celebra-se o Dia Mundial da Agricultura e Soberania Alimentar. Outras Palavras publicará, ao longo da semana, textos que propõem, como alternativa à captura da terra pelos rentistas, um novo modelo agrícola, baseado na redistribuição da propriedade fundiária, na produção de alimentos saudáveis e em tecnologias que dispensem o envenenamento da comida.
Título Original:
A crise da Agrogalaxy e o desnudar do ‘subprime’ agrícola brasileiro
Há 16 anos, em 2008, vimos eclodir a maior crise financeira desde a Grande Depressão. Rapidamente essa crise foi batizada pela imprensa burguesa como a “Crise do Subprime”2. Esse nome pouco sugestivo, levou a população a entender que a crise se deu devido à complexidade do sistema financeiro, pois tal sistema teria sido desenhado por “cientistas de foguetes”3. As causas da crise não repousavam, portanto, nas pulsões imanentes ao modo de produção capitalista, mas num mero desvio no caminho desse virtuoso sistema que conduz a humanidade ao progresso, sempre confundido pelos entusiastas burgueses com o mero avanço das forças produtivas.
Entretanto, a “crise do subprime’ não foi nem de um mecanismo incompreensível para a população, nem um desvio do capitalismo. Comecemos pela explicação mais simples possível do que são os CDO (Obrigações de dívida com garantia), os títulos vinculados à crise do subprime. No geral, essa categoria de ativos combinava um conjunto de dívidas, emitidas por diferentes devedores – com diferentes riscos associados –, com lastros imobiliários. Isto é, as dívidas eram emitidas sobre o valor de determinada propriedade imobiliária e essa propriedade era a garantia do credor caso os compromissos não fosse honrados pelo devedor. Ou seja, tratava-se de títulos de dívida com mais de um emissor. A ideia da emissão de um título que incorporasse a dívida de devedores distintos era que caso um devedor não pagasse, o título como um todo não estaria comprometido. Diluindo o crédito mais arriscado com crédito menos arriscado o risco total do título, supostamente, diminuiria e, assim, seria possível oferecer crédito a taxas mais baixas a pessoas e/ou empresas que dificilmente teriam acesso a essas taxas nos mercados convencionais.
Logo, longe de uma “ciência de foguetes” ou um desvio do “bom capitalismo”, o que temos é um mecanismo de expansão do crédito, justamente em um momento de estagnação do processo de acumulação do capital. Essas dívidas, reunidas nos CDOs, eram coordenadas por instituições financeiras – bancárias e não bancárias – e posteriormente vendidas a investidores individuais, institucionais e fundos de investimento. Isto é, a instituição que coordenava a emissão do título repassava o risco a terceiros e abocanhava para si as gordas comissões envolvidas na emissão e comercialização dos títulos.
Na última metade do último mês, a partir do pedido da Recuperação Judicial da Agrogalaxy – tema de artigo4 e entrevista5 publicados pelo Outras Palavras – o “subprime agrícola” brasileiro começou a vir à tona. Isto é, num momento em que, nas palavras de Jonatas Pulquerio, titular de uma das diretorias do ministério da Agricultura, “o produtor [rural] está com problemas”6, passa-se a conhecer o castelo de dívidas erigido ao longo dos últimos anos. Ainda segundo o diretor do ministério “atualmente, os produtores buscam crédito no mercado de capitais, e o pequeno agricultor, em especial, nas revendas. Com isso, as revendas, que estão fora do sistema, atuam como se fossem um banco, liberando crédito através de insumos.”
Isto é, o tão propagandeado agronegócio, hoje, funciona na base de dívidas. Endivida-se para plantar, endivida-se para envenenar o ar, o solo e os grãos para, ao final da safra, pagar esse endividamento. Embora seja esse um elemento importante, seria ingênuo atribuirmos a utilização intensiva do crédito apenas a esse setor, dado que tal prática é inerente ao próprio modo de produção capitalista. O que chama a atenção é o tipo de crédito. A Agrogalaxy tinha por característica, justamente, o adiantamento de recursos aos produtores que chegavam as suas lojas em busca de insumos. Entretanto, essas dívidas de produtores, no geral, eram vendidas ao Fundo de Investimentos Agrícolas (Fiagro) Agrogalaxy, por meio do qual pessoas distantes do negócio compravam cotas que correspondiam a uma parcela das distintas dívidas – emitidas na forma de Letras de Crédito Agrícola (LCAs) e Certificados de Recebíveis Agrícolas (CRAs) – contidas no fundo. Isto é, o Fiagro Agrogalaxy já é, por si só, uma espécie de subprime, não só porque continha uma série de dívidas de diferentes emissores, mas sobretudo porque está dirigido aos devedores com maior risco, que não se endividam nos mercados de capitais, mas sim na loja de insumos. Tal como em 2008, é pelos mais vulneráveis na base que o castelo de cartas desaba.
O que pouco se sabe é que, em 2019 foi fundada uma empresa, nomeada Agrolend7 que atua, precisamente, da mesma forma que as instituições financeiras norte-americanas durante o subprime. Veja o que diz a empresa sobre si mesma:
“A Agrolend financia produtores rurais de pequeno e médio porte, em parceria com revendas, cooperativas e indústrias de insumos e equipamentos agrícolas, de forma rápida, fácil e sem burocracia […] A Agrolend capta recursos através da emissão de LCAs (Letras de Crédito do Agronegócio) que são adquiridas por investidores de pequeno e médio porte em plataformas de investimentos digitais. As LCAs Agrolend têm isenção de imposto de renda [IR] e são garantidas pelo FGC até os limites definidos.”8
Estamos diante da descrição mais precisa possível do “subprime agrícola”. Trata-se de uma instituição financeira não bancária que coordena a emissão de dívidas de diferentes pessoas com perfil arriscado, mistura-as em uma Letra de Crédito Agrícola (LCA) – que é isenta de isenta de IR –, embolsa as comissões e repassa o risco aos “investidores de pequeno e médio porte em plataformas de investimentos digitais”, um eufemismo para pequenos poupadores que não entendem os riscos da renda fixa atrelada ao crédito privado.
E se o resultado dessa expansão leviana do crédito for a mesma do subprime? Bom, o diretor do ministério da Agricultura tem a resposta: “quando isso acontece no sistema bancário, o governo entra e renegocia, porque há um instrumento para tal. Com isso, não há risco para os bancos”. Ainda, caso haja terras em garantias, essas vão para leilão e a quase homônima da Agrolend, a Agroland, estará lá, disposta a comprar terras com capital de terceiros para especular e embolsar as comissões9.
1 Agradeço ao meu colega de departamento, Nuno Teles, pelos comentários e correções sugeridas ao texto que, sem dúvidas, melhoraram sua qualidade e compreensão. Por outro lado, eventuais erros são de minha exclusiva responsabilidade.
2 https://www.nytimes.com/2007/12/18/business/18subprime.html; http://news.bbc.co.uk/2/hi/business/7073131.stm;
3 https://www.france24.com/en/20080613-did-rocket-scientists-destroy-world-markets-subprime-crisis
4 https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-financeirizacao-do-agro-e-sua-crise/;
5 https://www.youtube.com/watch?v=vqMuf64qGBQ
6 https://www.moneytimes.com.br/ha-uma-crise-no-agro-e-podemos-ver-recuperacao-judicial-de-outras-empresas-da-bolsa-ve-diretor-do-ministerio-da-agricultura-pads/
7 O mal gosto e falta de criatividade para nomes, que caem sempre em um estrangeirismo servil diz muito sobre as pessoas que coordenam essas empresas.
9 https://agrolandcapital.com.br “Conte com nossa equipe de especialistas em leilões de imóveis rurais para adquirir propriedades extraordinárias com descontos de até 80% no preço de mercado. Desde a fase inicial de pesquisa até a efetiva posse do imóvel.”