Notas sobre um cenário em desarranjo

Quanto mais segue a cartilha neoliberal, mais Lula se enfraquece e amplia os riscos de derrota em 2026. O diálogo pode ser um primeiro antídoto. Governo deve expor quem bloqueia as mudanças. E o conjunto da esquerda pode servir-se da palavra para escapar de três tendências desastrosas

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Título original:
Notas sobre a conjuntura

Difícil escapar dos temas que nos angustiam, sobretudo quando nos desafiam tanto intelectual quanto politicamente. Em retrospecto, parece que foi mais fácil compreender o golpe de 1964 e a transição democrática -com suas virtudes, seus limites, suas contradições- do que os revezes que precipitaram o impeachment golpista de Dilma Rousseff, marcando a ruptura do pacto celebrado em 1988, e culminaram com a ascensão do neofascismo bolsonarista -derrotado por um triz, em 2022, mas ainda um espectro no horizonte a nos assombrar, sobretudo após a vitória de Trump. Mais fácil compreender talvez porque o contemporâneo seja sempre mais desafiador, ou talvez porque nossas categorias estivessem mais ajustadas àquele mundo. O fato é que o quadro geopolítico é dramaticamente complexo, especialmente depois do genocídio em Gaza.

O cenário interno é crítico: o governo Lula acuado, chantageado, implementa programa econômico alheio. A economia sempre foi política, mas este seu caráter (mascarado pela aparente autonomia dos mercados) se hipertrofiou na conjuntura pós-2008, ao mesmo tempo que se despolitizou, no Brasil, na medida em que foi subtraída da agenda submetida a decisões populares -e não há exemplo mais eloquente e despudorado da hiperpolitização despolitizante da política econômica do que a “autonomia do Banco Central”. A consequência desse arranjo, incompatível com qualquer definição consistente de soberania, nós a testemunhamos: quanto mais segue a cartilha neoliberal, para contornar pressões e chantagens das elites e de seus representantes, incansáveis no Congresso e na mídia corporativa, mais Lula se enfraquece, politicamente, e amplia as chances de derrota eleitoral em 2026.

No início de 2025, após a derrota nas eleições municipais, as atenções se voltam para 2026 com crescente ansiedade. Não faltam motivos: (1) perda de popularidade do governo, corroída pelo misto de inflação dos alimentos e o sentimento generalizado de falta de rumo estratégico (enquanto a inflação puxa o tapete sob os pés dos trabalhadores, o vazio de perspectivas turva o horizonte, inverte expectativas, esteriliza a esperança); (2) trajetória declinante da atividade econômica, freada pelo aumento de juros, que rouba do governo o pulso, o impulso e o discurso; (3) identificação do arcabouço fiscal como eixo estruturante de toda a política governamental, o que mantém sob tensão permanente e grave ameaça as garantias orçamentárias constitucionais da saúde e da educação, um dos últimos bastiões do pacto social-democrata firmado em 1988 ainda vigentes; (4) recusa sistemática a assumir posições favoráveis aos trabalhadores, cujo exemplo mais significativo talvez seja o silêncio sobre a proposta de redução da escala 6 x 1; (5) falta de iniciativa significativa na condução do debate público sobre a regulamentação das redes sociais e, mais que isso, sobre a renúncia à soberania, implicada na recusa a disputar -com ciência, tecnologia, investimentos, geração de alternativas- o controle dos mecanismos algorítmicos matriciais; (6) indisposição a travar o que no passado se chamou luta ideológica por hegemonia moral e política, e que, hoje, talvez merecesse denominação diversa, como, por exemplo: imersão nos debates culturais, relativos a valores e projetos de sociedade; (7) timidez no enfrentamento da insegurança pública, complexo de problemas que envolvem o sistema penitenciário, a política de drogas, a violência policial e o avanço da milicianização e da criminalidade organizada; (8) permanente dubiedade da postura que prometia ser incisiva no enfrentamento da emergência climática; (9) ambiguidades da política externa -por exemplo, quanto aos BRICS-, as quais vêm promovendo e expressando perda de protagonismo no cenário internacional; (10) tibieza no trato das Forças Armadas e na reafirmação de compromissos com a verdade histórica e a reparação das vítimas de violação dos direitos humanos; (11) sinais de fragilização física do presidente, que suscitam incerteza quanto a sua candidatura à reeleição, no ambiente marcado pela ausência de opções no campo democrático e progressista (esperemos que se recupere, plenamente); (12) elevação de tom das oposições e a turbulência incessante nas redes sociais, animadas pela estridência da ultra-direita e a ascensão do trumpismo pós-Milei e Gaza.

Sabemos que a maior parte das deficiências apontadas é atribuída aos limites impostos pela correlação de forças, visivelmente desfavorável às pautas progressistas, em todos os níveis. O que estaria em jogo, em última instância, seria a estabilidade política, ou seja, a governabilidade. Não faria sentido, portanto, uma crítica que desconsiderasse um ponto assim decisivo. Portanto, qualquer cobrança, para ser intelectualmente honesta, deveria incluir uma sugestão quanto à metodologia política, que ampliasse as possibilidades (realistas) de sua implementação. Sendo assim, os itens listados acima deveriam vir acompanhados de complementos táticos -reconhecendo que cada caso requer avaliações particulares e que as conjunturas são cambiantes. Esse esforço excederia tanto minha capacidade quanto as ambições deste artigo. Entretanto, talvez haja uma proposta geral quanto ao enfrentamento do desafio posto pela correlação de forças negativa: ao invés de render-se às limitações e adotar a perspectiva dos adversários, levar à sociedade a posição do governo e suas justificativas, deixando claro quem e por quê se opõe. Uma correlação de forças não é estática, depende das ações dos agentes políticos: reconhecer limites é realismo imprescindível; privar-se de iniciativa e de postura afirmativa implica renúncia antecipada à própria disputa política.

Nesse contexto tenso, a perplexidade das esquerdas ante o avanço mundial (e doméstico) da extrema direita aprofunda divisões e tende a provocar três reações, que se entrecruzam e retroalimentam: (A) a propagação do ceticismo imobilista; (B) a retração crítica dos que se aninham em torno do governo (acuados pelo temor de que as críticas contribuam para o desgaste de Lula, sem perceber que a persistência nos erros aumenta as chances da derrota que se quer evitar); (C) e a disseminação do sectarismo -que constitui um modo, digamos, solipsista (talvez escapista) de auto-afirmação, apoiado no sistemático reforço das próprias convicções por meio de uma espécie de negacionismo seletivamente aplicado aos fenômenos que, na empiria, as possam abalar.

A primeira reação é destrutiva, em todos os sentidos: não ajuda a curar a depressão, nem a transformar o quadro que a provoca. A segunda termina por tornar a boa intenção cúmplice da catástrofe. A terceira conduz ao isolamento, que tende a se aprofundar, porque sectarismo incita a fragmentação (que progride por sucessivas divisões) e deriva sua identidade do contraste. O sectarismo não se orienta pelo movimento de agregação, nem pela vontade de abrir-se para ampliar a possibilidade de somar adesões. Daí sua afinidade eletiva com as redes sociais, onde exercita, para gáudio das bigtechs, o auto-atribuído poder judicativo, cindindo, excluindo, exortando à faccionalização. Não por acaso, a estreiteza política situa seus protagonistas no mundo das celebridades, onde individualidades são cultuadas -em seguida calcinadas, arruinadas e esquecidas. Observe-se que essa lógica midiática corresponde ao regime psíquico-afetivo propício à prevalência de lideranças carismáticas -e refratário à construção interlocucionária de uma democracia popular diversa e plural. Vale acrescentar que esta classificação tripartite simplifica uma realidade muito mais complexa, o que se evidencia no caso nada incomum do governismo sectário.

A posição que me parece mais promissora é a do diálogo franco e respeitoso com o PT e o conjunto dos atores inscritos no campo anti-fascista, idealmente conduzindo à negociação de um pacto em torno de um programa mínimo para 2026. Se não for possível alcançar esse objetivo, que o diálogo, identificando com nitidez o inimigo, pelo menos torne a próxima competição eleitoral menos fratricida e taticamente mais inteligente.

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