Não é pelos vinte pontos-base

Vale examinar a ata do encontro em que o Banco Central manteve a taxa de juros. Além de desastrosa para as finanças públicas, a população e a maior parte das empresas,, decisão expõe tentativa evidente de sabotar o programa de Lula

.

Por André Doneux | Imagem: Lincoln Townley

Bob Fields III e seu petit comité

Aqui e ali aparecem na mídia relatos das atitudes dos ministros do governo Lula para tentar apaziguar o conflito que emergiu com a última decisão de política monetária dos membros do Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (BCB), órgão responsável pela definição da taxa básica de juros da economia brasileira. Tais animosidades, até o momento, estão concentradas na figura do presidente da autarquia, o Neto do conhecido articulador do golpe e ministro do regime ditatorial instaurado em 1º de abril de 1964, Roberto Campos (o Bob Fields original). Tão notória ascendência, contudo, é o que menos desqualifica Roberto Campos Neto à permanência no cargo de Presidente do Banco Central do Brasil.

Antes de passarmos ao exame de algumas das razões e das perspectivas do conflito motivado pelas decisões do Comitê presidido por Neto, cabe lembrarmos, brevemente, de alguns episódios por ele protagonizados, os quais demonstram uma postura ética incompatível com o cargo que, por ora, ele ocupa. Em outubro de 2021, o banqueiro André Esteves se gabou, em reunião interna do BTG vazada à imprensa, de ter sido consultado por Neto quanto a questões de condução da política monetária. Na ocasião da consulta a taxa SELIC se encontrava em 2% ao ano, e o cenário macroeconômico dava sinais de uma necessidade de reversão desse afrouxamento monetário. Neto não desmentiu o relato. Não cabe ao presidente do BCB oferecer informações privilegiadas aos agentes de mercado ou antecipar as decisões e debates do comitê que ele preside! Neto é um apoiador convicto e militante do ex-presidente Bolsonaro, tanto é que respondeu ao chamado deste para que seus apoiadores fossem às urnas, em 30 de outubro de 2022, com a camiseta da CBF. Mais recentemente, em 11 de janeiro de 2023, dois dias após a infame intentona bolsonarista às sedes dos três poderes, foi flagrada a participação de Neto num grupo de Whatsapp chamado “Ministros Bolsonaro”. Além desses episódios que põem sob suspeita a suposta autonomia (em relação a quem?) dos dirigentes do BCB, e motivam o levantamento de questões sobre o uso republicano dos mandatos concedidos pelo Congresso Nacional aos membros do COPOM, é preciso observar que Neto e seus colegas são exemplos típicos da chamada “porta giratória” entre a autoridade monetária e as instituições financeiras, entre órgão fiscalizador e entidades fiscalizadas.

Quanto ao desempenho de Neto e seu petit comité, um tema que deveria ser caro aos liberais, cabe lembrarmos que, por dois anos consecutivos, a meta de inflação não foi cumprida, ferindo o dever de garantir a estabilidade de preços, expresso no 1º artigo da Lei Complementar 179 de 24 de fevereiro de 2021 que lhes confere a proteção do mandato do qual desfrutam. Embora tenha sido comemorada como um marco histórico, há fortes razões para enxergar um exagero – com consequências para a estabilidade cambial, e, através dessa, também para a estabilidade de preços – na redução e manutenção da taxa básica em 2% ao ano, conforme argumentou o Professor Fernando Maccari Lara. Da mesma maneira, o atual ciclo econômico mostra sinais de uma política monetária exageradamente contracionista. Seria possível atribuir tais equívocos e exageros na condução da política monetária mais ao regime de metas de inflação – que põe a estabilidade de preços como objetivo prioritário do BCB, e pressupõe que competiria exclusivamente a ele essa tarefa – e regras e modelos supostamente utilizados pelo órgão – baseados nos modelos de DSGE e na regra de Taylor – do que ao desempenho pessoal de seus membros. Todavia, o debate provocado pela reação do Presidente Lula trouxe a público a informação desconhecida da maioria das cidadãs e cidadãos brasileiros: entregue ao juízo de 9 Senhores, o processo decisório da política monetária é puramente discricionário, prescindindo de qualquer constrangimento efetivo por regras e modelos previamente definidos, os quais cumpririam a função assessória de meras fontes consultivas.

Embora relevantes, deixemos de lado as questões de éticas e de desempenho – por si só suficientes para que o Senado Nacional, no uso de suas atribuições legais destituísse todos os diretores do BCB de seus mandatos – para avaliarmos, do ponto de vista político, a perspectiva de uma superação pacífica do conflito, tal como aconselhado a Lula por seus ministros.

A ação política dos tecnocratas do COPOM

Neste artigo busco mostrar que um conflito com a atual gestão do BCB se mostrava incontornável desde a vitória presidencial de Luís Inácio Lula da Silva, em outubro de 2022. Em seus discursos públicos, o presidente do BCB sempre condicionou uma política monetária menos restritiva à realização e ao aprofundamento das reformas previstas no programa neoliberal que tem o seu marco inaugural de sua radicalização na “Ponte para o Futuro”, a famigerada carta de apresentação do golpe de 2016. Caso o leitor realize uma breve pesquisa em mecanismos de busca da internet, constatará o empenho militante de Neto na causa do reformismo neoliberal. A bem da verdade, para além dos discursos de Neto, tais cobranças por austeridade fiscal e reformas do programa neoliberal sempre foram explicitadas também nos comunicados e atas divulgados pela instituição por ele comandada. A agenda reformista neoliberal e a sua entrega passaram se tornaram conteúdo corriqueiro no esboço dos cenários e das justificativas das decisões de política monetária. A incorporação do programa reformista neoliberal nas motivações para as decisões de política monetária não deve ser vista como outra coisa senão como ação política dos tecnocratas alocados na autarquia que controla a taxa básica de juros da economia brasileira.

Antes da posse do presidente Lula, contudo, a pressão política da autoridade monetária pelo programa reformista neoliberal estavam sintonia com a orientação econômica do ministério da Economia do governo anterior. Com a eleição de Lula tal ação política – travestida de posição técnica nos discursos oficiais do BCB – da atual gestão da autarquia tornou-se fonte de um conflito incontornável. A única saída pacífica seria a adesão do governo Lula ao programa reformista neoliberal, um movimento na contramão de todas as promessas que permitiram ao Presidente Lula resgatar a imagem de benfeitor das camadas populares que lhe garantiram a vitória eleitoral contra a poderosa máquina estatal posta em movimento pelo governo militar encabeçado por Bolsonaro.

Após o resultado das eleições presidenciais de 2022, a continuidade desta ação política dos tecnocratas do Copom estaria, portanto, na contramão da vontade popular expressa nas urnas. Todavia, a disposição antidemocrática, antipopular e irascível dos membros do Copom foi inequivocamente explicitada no comunicado de 1º de fevereiro de 2023, data em que (i) se decidiu pela manutenção da taxa básica em 13,75%, e (ii) se ampliou a incerteza sobre a trajetória futura da taxa básica, ou seja, sobre a própria condução da política monetária. Entre outras razões dessas decisões, os membros do Copom alegaram haver “elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais que implicam sustentação da demanda agregada, parcialmente incorporados nas expectativas de inflação e nos preços de ativos”. E, adiante, ajuizaram que a “conjuntura, particularmente incerta no âmbito fiscal e com expectativas de inflação se distanciando da meta em horizontes mais longos, demanda maior atenção na condução da política monetária. O Comitê avalia que tal conjuntura eleva o custo da desinflação necessária para atingir as metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. Nesse cenário, o Copom reafirma que conduzirá a política monetária necessária para o cumprimento das metas.”

Cabe observar, em especial, a explicitação da “elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país” como motivador das decisões de política monetária dos membros do Copom. Trata-se de uma clara tentativa de influenciar as decisões dos congressistas brasileiros em relação a uma pauta legislativa que deverá, conforme previsto no artigo 6º da chamada PEC de Transição (EC126/22), tramitar a partir de 31 de agosto de 2023: a proposição de um “regime fiscal sustentável” em substituição ao Nefasto Regime Fiscal baseado sobre o teto de gastos e criado pela EC95/16.

Ação política e seu disfarce: as expectativas dos agentes financeiros

Há de se notar a natureza da associação entre a deterioração das chamadas “expectativas de inflação” e as alegadas incertezas sobre o “futuro do arcabouço fiscal do país” e sobre a continuidade do que o Comitê considera serem “estímulos fiscais”. Ora, tal associação entre a deterioração de expectativas e as alegadas incertezas no âmbito da política fiscal é pura hermenêutica! O Comitê pode tê-las buscado na análise que faz da conjuntura, mas esse conteúdo não compõe os dados oficiais da pesquisa institucional realizada semanalmente com operadores do Sistema Financeiro Nacional, a qual informa o Boletim Focus. Cabe, portanto, aos membros do Comitê decidirem o peso que irão conferir a esse conteúdo hermenêutico.

Uma hipótese do filósofo Karl Popper pode nos ajudar a refletir sobre o caráter problemático da decisão pela inserção de tal conteúdo. Para ele os fenômenos econômicos estariam sujeitos, pois humanos, ao que ele chamou de “efeito Édipo”: é quando a previsão de um evento tem causalidade na eventual ocorrência desse evento, seja ao impedi-lo, seja ao produzi-lo. Não há evidências empíricas que as referidas expectativas, aquelas dos cerca de 140 agentes financeiros privados que informam o Boletim Focus, tenham causalidade direta e positiva sobre a inflação, como se uma eventual piora nas expectativas desses agentes produzisse maiores aumentos de preços de bens e serviços na economia real. Não é possível sequer afirmar que as expectativas do Boletim Focus tenham um poder preditivo compatível com a importância que lhes é atribuída. Todavia, a eventual melhora ou piora nas expectativas de inflação das pesquisas realizadas no Boletim Focus é utilizada como justificativa técnica nas decisões de política monetária. Como se sabe, André Lara Resende descreveu, há 4 décadas, o fenômeno da inflação inercial no qual expectativas de inflação crescentes, baseadas na observação da aceleração da inflação passada, se refletem em novos e constantes aumentos de preços. É possível falar em “efeito Édipo” no caso da inflação inercial brasileira dos anos 1980, mas não se pode transpor a mesma causalidade entre expectativas e inflação quando se consideram as previsões do Boletim Focus. As expectativas de inflação que têm efeito na geração da inflação inercial não são apenas aquelas dos agentes financeiros interessados em influenciar as decisões de política monetária, mas as previsões de todos os agentes econômicos formadores de preços de bens e serviços, os quais estão dispersos por toda sociedade. Trata-se do feirante, do padeiro, da cabeleireira, do grande varejista, da indústria automotiva, etc.

De um lado, portanto, o COPOM incorpora equivocadamente no regramento da política monetária modelos macroeconômicos e teorias que já se mostraram falsos e disfuncionais. A instituição teima em atribuir às expectativas de pouco mais de uma centena de agentes financeiros privados e diretamente interessados em influenciar as decisões de política monetária uma capacidade preditiva – quando não uma causalidade – que elas estão muito longe de ter. De outro lado, em seus comunicados e atas, os membros do COPOM explicitam a sua própria interpretação, a sua leitura particular quanto às causas da formação dessas expectativas, de sua eventual piora ou melhora. Ora, podemos conjecturar que esse conteúdo hermenêutico dos comunicados e atas do COPOM pode criar um “efeito Édipo” sobre a formação das expectativas dos agentes da pesquisa realizada pelo Boletim Focus. Não se trata propriamente da relação entre expectativas e inflação, mas entre os supostos motivadores da formação de expectativas e as próprias expectativas. Ao explicitar que “estímulos fiscais”, por exemplo, estão na origem da degradação das expectativas de inflação os membros do COPOM reforçam uma reação condizente dos cerca de 140 agentes financeiros consultados pela pesquisa Focus. É possível identificar aí, portanto, um vício de circularidade: os membros do COPOM explicitam que as expectativas dos agentes reagem a determinado tipo de evento, e os agentes formam suas expectativas em reação a eventos do tipo. Pouco importa que os eventos em questão realmente tenham caráter inflacionário, deflacionário ou neutro.

Quem fica de fora na dança das cadeiras?

Analisado pelo prisma da divisão e subdivisão classe, há uma relativa homogeneidade entre os membros do COPOM e os agentes financeiros privados que informam o Boletim FOCUS. Como observamos no início, a nomeação dos quadros para os cargos de confiança da autoridade monetária tem sido marcada pelo que a literatura crítica descreve como uma “porta giratória”. Logo, como a inserção profissional nas instituições do sistema financeiro é tanto a origem quando o destino dos membros do COPOM, dificilmente haveria divergência significativa em seus interesses materiais ou em sua ideologia. Não há razão para pensarmos que em seu período de estágio remunerado na autoridade monetária, os executivos do sistema financeiro suspendam a consciência da classe ou da fração específica de classe à qual pertencem. Certamente, é preciso considerar que há divergências importantes quanto ao fracionamento da burguesia financeira que podem se refletir na composição do colegiado. Os interesses da grande burguesia financeira interna (FEBRABAN) podem não coincidir sempre, e, por vezes, podem estar em conflito com os interesses específicos da burguesia financeira associada ao capital internacional (por vezes chamada “Faria Lima” ou “o mercado”) – um exemplo claro está nas diferentes ações políticas dessas frações no contexto do golpe de 2016.

Vimos como a suposta competência técnica desses agentes – utilizada como argumento para o seu recrutamento junto às instituições fiscalizadas – pode servir à dissimulação dos interesses políticos dessa fração financeira da burguesia através da interlocução dos agentes financeiros privados com seus pares momentaneamente cedidos ao órgão público. Todo corpus de comunicados e atas da atual gestão do COPOM – não apenas os mais recentes, mas ao longo de toda presidência de Neto – não deixa dúvidas quanto à afinidade de seus membros com o programa de reformas neoliberal que esteve no centro da agenda política do país desde o golpe de 2016. Não é de hoje que a flexibilização da política monetária é condicionada às entregas de reformas previstas nessa agenda. O uso da política monetária do Banco Central do Brasil para a coação política dos governos não é, portanto, uma novidade do governo Lula. Para comentar apenas os eventos dessa gestão, devemos notar que as forças e tendências dissonantes no interior do bloco no poder do governo militar encabeçado por Bolsonaro também estiveram sujeitas às mesmas pressões. E, embora tenha sido obrigado a reagir à crise da pandemia de Covid, bem como se se utilizado demagogicamente de instrumentos de política fiscal visando a reeleição de Bolsonaro, seu governo esteve umbilicalmente comprometido com a realização do programa reformista neoliberal – não é por outra razão que a “Faria Lima” foi, é, e sempre será bolsonarista “raíz”.

Programa reformista neoliberal e seus motivadores

Tal programa de reformas permanente não se limita à mera aprovação de leis que garantem a continuidade e o aprofundamento da brutal desigualdade social brasileira – como as reformas da previdência, trabalhista, a lei da terceirização, e as privatizações, por exemplo. Trata-se de um programa permanente e muito mais amplo, pois destinado a alterar constantemente as relações entre o público e o privado em vista de uma transformação estrutural da sociedade brasileira. O programa reformista neoliberal não cabe num único governo, ao contrário, deve ser incorporado por todos! Ele opera como uma espécie de Constituição Apócrifa. À título de digressão podemos sintetizar, muito grosseiramente, a sua ambição passa pela transformação o trabalhador em empreendedor individual e o cidadão em consumidor. Há de se notar que esse programa está em contradição com o reconhecimento dos direitos sociais e das finalidades atribuídas ao Estado na Constituição brasileira de 1988. A motivação dos agentes políticos para a realização desse programa não poderia ser buscada, portanto, a não ser muito lateral e forçosamente, em nosso Contrato Social.

Além de teses libertárias e antiestatistas no plano político, o que realmente que motiva ao cumprimento do programa reformista neoliberal não é – imediatamente – o Direito, mas o reconhecimento de supostas “leis” e consensos econômicos que exigiriam a adoção de certas políticas e a configuração de certa institucionalidade à fim de garantir ao Estado uma condução competente da vida econômica.

No entanto, cada reforma realizada, cada lei aprovada, cada instituição configurada em vista ao programa neoliberal, tem o efeito de reforçar a motivação para sua continuidade. Por exemplo, a política de austeridade implantada no início do segundo governo Dilma ampliou tanto o déficit da Previdência que a defesa da sua impopular reforma ganhou muita força política. Antes disso, porém, essa política contribuiu para o golpe de 2016 e a proposição e aprovação do teto de gastos. A verdadeira finalidade do regime fiscal instituído com a Emenda Constitucional 95 nunca foi a redução da dívida pública, mas a coação política do Congresso Nacional para a realização das reformas neoliberais!

A aprovação da autonomia do Banco Central no início de 2021 constitui um mecanismo análogo. Da mesma maneira como o teto de gastos impunha uma política fiscal restritiva, radicalizando os conflitos orçamentários a fim de forçar o Congresso Nacional às reformas neoliberais, a autonomia do Banco Central do Brasil foi desenhada para condicionar o afrouxamento da política monetária à entrega das reformas previstas no programa neoliberal. Diante da perspectiva do fim do teto de gastos e da incerteza quando ao regime que deverá substituí-lo, a ação política do Banco Central torna-se imperativa para o cumprimento do programa neoliberal – basta observar a verve da grande imprensa brasileira contra a verve de Lula.

Há também uma dimensão moral que legitima essa tutela da autoridade monetária – “técnica” e “autônoma” – sobre os governos eleitos democraticamente – “demagógicos”, “perdulários”, “irresponsáveis”. A autoridade monetária provida de autonomia decisória garantiria que as reações políticas dos agentes de mercado às decisões dos governos eleitos sejam adequadamente refletidas nos preços de ativos financeiros. Sem uma atuação do controlador exclusivo da taxa básica de juros, a tradução da ideologia fiscalista e anti estatal em preços de ativos financeiros torna-se efêmera e pouco convincente.

Não é só pelos 20 basis points!

Após o erguimento do Presidente Lula – que sabe não ter sido eleito para dar continuidade ao programa neoliberal – contra os abusos de poder de uma autoridade monetária privatizada e operada em favor de um projeto político, chega a ser risível que os integrantes do Copom tenham se recolhido taticamente e registrado, em ata da reunião do final de janeiro de 2023, que “alguns membros notaram que a execução do pacote apresentado pelo Ministério da Fazenda deveria atenuar o risco fiscal e que será importante acompanhar os desafios na sua implementação”, bem como que “o Comitê manteve sua governança usual de incorporar as políticas já aprovadas em lei, mas reconhece que a execução de tal pacote atenuaria os estímulos fiscais sobre a demanda, reduzindo o risco de alta sobre a inflação.” Se a primeira declaração é dissimulada, a segunda afirmação é flagrantemente mentirosa!

É espantoso que personalidades de destacado papel no governo tenham enxergado aí uma bandeira branca que deveria ser atendida. Vejamos as perspectivas de solução do conflito que está posto. Lembro que há dois resultados, duas decisões principais da última reunião do Copom: (i) a manutenção da taxa básica em 13,75%; (ii) a ampliação da incerteza sobre a condução da política monetária.

Embora a grita esteja concentrada na manutenção de um patamar de juro básico tão elevado, esse segundo resultado da última reunião do Copom (que certamente não foi explicitado como uma decisão colegiada, mas não deixa de sê-lo por isso) é muito mais perigoso e potencialmente desestabilizador das condições financeiras da economia brasileira. A imprevisibilidade da trajetória futura da taxa básica aumenta o risco de mercado de todos os títulos mais longos. Tal imprevisibilidade, e não os alegados “riscos fiscais”, dá origem ao aumento do prêmio de risco desses títulos no mercado secundário, bem como ao eventual desinteresse dos agentes financeiros nos leilões primários oferecidos pelo Tesouro Nacional – dado que uma eventual elevação de juros depreciaria o valor presente dos títulos longos que os agentes detêm em carteira. Outro efeito dessa incerteza transmitida pelo Copom estaria nos fluxos cambiais, uma vez que as operações de carry trade – que poderiam ser atraídas pelo imenso diferencial de juros em relação ao Fed funds rate – não admitem um duplo risco: cambial – do qual não podem escapar – e da própria arbitragem de juros futuros – risco que poder ser mitigado pela confiança numa autoridade monetária comprometida com determinada condução da política monetária.

Prospecção

Embora degradantes das condições financeiras, tais efeitos da incerteza deliberada na condução da política monetária também reforçam a pressão política em favor do programa reformista neoliberal. A realização de reformas neoliberais seria, portanto, a única saída possível. Não encontro qualquer elemento para pensar que tal incerteza possa, eventualmente, ser reduzida no atual arranjo institucional. Mesmo que os membros do Copom se mostrassem “mais amigáveis”, os agentes que informam a pesquisa do Boletim Focus precisariam alterar ou abrandar suas reações às decisões de política fiscal.

Até aqui, as promessas de ajuste fiscal do ministro da Fazenda – cujos efeitos deflacionários poderiam ser admitidos apenas mediante pressupostos monetaristas – tiveram pouco ou nenhum efeito para melhorar as expectativas desses agentes. Da mesma maneira, a proposta de revisão da meta de inflação para uma taxa mais compatível com as condições estruturais da economia brasileira tem se mostrado ganhado poucas – embora significativas – adesões entre a burguesia financeira. Tal medida não seria, por si só, suficiente para afastar a incerteza na condução da política monetária, e tampouco o condicionamento à realização de reformas do programa neoliberal.

Caso o Copom passe a interpretar de outra maneira as expectativas do Boletim Focus, conferindo maior previsibilidade à condução da política monetária – que passaria a responder às pressões inflacionárias realistas e não às expectativas manipuladas politicamente para pressionar o governo e o Congresso Nacional – a pressão por austeridade e pelo programa neoliberal seria abrandada. Contudo, esse movimento seria interpretado como uma concessão da autoridade monetária à pressão do Presidente da República e de seus aliados. Os ocupantes da autarquia perderiam credibilidade com os seus pares.

Vejamos as perspectivas de desdobramento do conflito no que diz respeito especificamente à decisão pela manutenção da SELIC em 13,75% ao ano. A próxima reunião está prevista para 21 e 22 de março, caso o Comitê não reduza ou não se comprometa com uma redução da taxa básica em breve, a tensão com Lula e seus aliados se elevará. Sem uma disparada real dos índices de inflação em fevereiro e março – dado que o IPCA de janeiro mostra mais uma desaceleração – , a autoridade monetária poderá usar a justificativa que quiser em suas atas e comunicados. Se Lula não reagir, novamente, com ímpeto a essa sabotagem, sairá politicamente enfraquecido, perderá autoridade. Será um reconhecimento da legitimidade da tutela dos tecnocratas não eleitos à serviço do projeto político da burguesia financeira sobre o seu governo.

Por outro lado, se a decisão for pela redução da taxa Selic, ela também será interpretada como perda de credibilidade na autonomia da autoridade monetária, que teria cedido à pressão política. Ainda que os índices de inflação desses meses iniciais de governo mostrem desaceleração, o que poderá ser utilizado como justificativa pelo Copom, a autonomia decisória da autarquia sairá abalada. Daí em diante nenhuma decisão de política monetária deixará de ser disputada politicamente e avaliada em relação à sua conformidade com o programa econômico geral do governo eleito democraticamente. Encerrada de fato, restará abolir de direito a autonomia do BCB em relação à democracia brasileira.

Apear do unicórnio da austeridade

Na guerra contra o bolsonarismo dentro e fora do aparelho de Estado, a arma mais poderosa do governo (atualmente a única sob seu controle) é a política fiscal! A política fiscal pode e deve ser utilizada para responder às expectativas legítimas depositadas pela maioria das brasileiras e dos brasileiros que elegeram Lula, bem como para que possamos resgatar os nossos compatriotas que perderam as suas expectativas com a democracia brasileira e o respeito às instituições republicanas. Lula e o governo encabeçado por seu partido não podem e não devem abrir mão da capacidade de utilização republicana e planejada instrumento democrático para apostar, novamente, em falsas promessas de crescimento via austeridade.

A política fiscal consiste no conjunto das decisões de gasto público e da tributação imposta pelo Estado à sociedade. Tais escolhas são realizadas através do processo de elaboração do Orçamento Público, que consiste numa série de leis propostas (PPA, LDO, LOA) pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. A verdadeira responsabilidade fiscal implica a busca por uma política fiscal elaborada à luz de instrumentos adequados de planejamento orçamentário – e não a caçada insana de meios para gerar equilíbrio entre receitas e despesas públicas. São os instrumentos de planejamento que devem permitir aos representantes eleitos das brasileiras e brasileiros a identificação das demandas legítimas da população, a avaliação dos recursos materiais e humanos indispensáveis para atende-las, e a determinação dos tributos e gastos públicos por meio dos quais tais recursos podem ser criados, mobilizados e coordenados. A sociedade tem interesse em fiscalizar e acompanhar a elaboração e a execução de um Orçamento Público concebido como meio através do qual as finalidades pactuadas na Constituição Cidadã de 1988 podem ser, efetivamente, alcançadas. Reduzir a política fiscal à origem de tributos abusivos, de gastos inflacionários, de riscos fiscais, de perigosos déficits que podem levar a dívida pública à uma trajetória explosiva e insustentável é corroer os fundamentos da vida pública numa democracia representativa.

É fundamental harmonizar as políticas fiscal e monetária (através de uma gestão macroeconômica funcional que regule a demanda efetiva por bens e serviços em vista do pleno emprego com estabilidade de preços), no entanto, uma representação realista da coordenação entre elas – tal como descrita por autores da MMT – não implica a exigência incondicional de uma política fiscal austera. Harmonizar as políticas fiscal e monetária sem abrir mão dos instrumentos e meios pelos quais a democracia brasileira (sucumbindo às pressões decorrentes de um uso discricionário e politicamente interessado da política monetária) pode ser fortalecida e resgatada (é exatamente isto o que está em jogo no debate de um “regime fiscal sustentável”) exige, porém, a superação de hipóteses econômicas cuja falsidade é patente. A verve do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se dirige a uma pessoa – por desprezível que seja – mas a tudo que ela representa.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *