Lula 3: Por onde começar a mudança
Queda abrupta do apoio ao governo expõe opção desastrosa, que precisa ser revertida. Presidente priorizou a governança via arranjos com o Congresso, frágeis e instáveis – e deixou de construir governabilidade, por meio de projetos e ações capazes de mobilizar as maiorias. É (ainda) hora de virada!
Publicado 14/02/2025 às 17:38
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1 – Os EUA não precisam da América Latina e do Brasil?
Na primeira parte deste artigo[1], analisei as enormes incertezas globais paroxisticamente acentuadas na primeira semana do governo Trump, em uma estratégia megalômana de se colocar como único poder imperial no mundo, por meio de uma enxurrada verborrágica ameaçando a anexação de territórios, de decretos de taxação de produtos estrangeiros e ações como a deportação e perseguição a imigrantes, além de ações concretas de perseguição a funcionários e cortes de verbas para programas sociais e ambientais. Além da retirada dos EUA da OMS e do Tratado de Paris, o que vai afetar a população mundial. Aumentou seus poderes decretando zona de emergência na fronteira sul e de emergência estratégica, e outras medidas com as quais procurou intimidar governantes, oposição, minorias, imigrantes, funcionários, cientistas etc. Como prevíamos, o aumento de tarifas de produtos do México, Canadá e China abriu um processo de pressão e negociação em curso. Ameaças foram feitas de taxação de 100% dos produtos do Brics – cuja presidência do Banco do Brics é atualmente exercida por Dilma Roussef –, caso os países adotem outra moeda que não seja o dólar em suas transações comerciais. O Brasil foi mencionado algumas vezes por Trump, como país que não é amigo dos EUA, mas a existência de um pequeno déficit comercial do Brasil, provavelmente adiará medidas imediatas de taxação de nossas mercadorias exportadas para aquele país. No entanto, a guerra comercial afetará o câmbio e poderá aumentar a inflação no Brasil, caso não sejam aproveitadas as melhores estratégias para estabelecer alianças comerciais com os demais países afetados em todos os continentes.
Apesar de na sua primeira entrevista Trump ter afirmado que os Estados Unidos “não precisam da América Latina e do Brasil”, as medidas inicialmente tomadas como a militarização no controle das fronteira e o combate à imigração ilegal de latinos, bem como a vexatória deportação de brasileiros em aviões de carga militares, a classificação de vários cartéis e organizações criminosas existentes na região como terroristas, o que abre precedente para intervenções diretas dos Estados Unidos, já demonstram que, sim, a América Latina importa.
Se a questão da deportação de imigrantes tem o apoio da opinião pública e alcança unir democratas e republicanos, a reação tempestiva de Gustavo Petro e a negociação diplomática do Brasil em relação à deportação massiva, com total desrespeito aos direitos humanos, mostram as dificuldades de alcançar uma posição consensual que una uma América Latina fragmentada política e ideologicamente, carente de lideranças e instrumentos necessários de pactuação entre os países da região. Alvissareira a posição prudente e firme da presidenta Claudia Sheinbaum, que desponta para o mundo como uma liderança emergente que pode se somar aos governos progressistas do Brasil, Colômbia e Chile para neutralizar as alianças com Trump de governos de ultradireita, como Argentina, El Salvador e Equador.
Em excelente artigo, Tiago Nogara[2] enumera algumas das razões pelas quais considera a enorme importância da América Latina para os EUA, razão pela qual “as movimentações diplomáticas de Donald Trump exibem um vigoroso intento de reorganização do equilíbrio de forças políticas e econômicas na região. Esse objetivo está diretamente ligado a três questões fundamentais e interligadas: a competição global com a China, a contenção dos governos de esquerda na América Latina e o controle de recursos naturais estratégicos”.
Em relação aos recursos naturais estratégicos importa destacar, além da biodiversidade, o fato de que 60% das reservas naturais do Lítio se encontram no triângulo que inclui territórios do Chile, Argentina e Bolívia e reservas de cobre que responde por cerca de 40% da produção mundial nos territórios do Chile, Peru, México, e abriga um quinto das reservas mundiais de petróleo e gás natural, com a maior reserva na Venezuela. A região também é a maior exportadora de alimentos do mundo, com um terço das terras aráveis do planeta, a maior parte no Brasil, além de ser a região mais rica do mundo em recursos hídricos, cada vez mais demandados pelos datacenters.
Na primeira parte da análise de conjuntura sobre 2025, terminamos citando José Fiori[3], que propõe que o Brasil assuma a liderança material da América do Sul, diversificando e ampliando seus mercados em direção à Ásia, devendo enfrentar uma boicote explícito de Donald Trump. A liderança material refere-se à construção de “uma estrutura produtiva que combine indústrias de alto valor agregado e tecnologias de ponta, com a produção de alimentos e commodities de alta produtividade, mantendo sua condição de grande produtor de energia tradicional e energia limpa”.
Seguramente o Brasil poderia ter uma liderança regional, e internacional por meio do Brics, para desenvolver os contrapesos necessários a reduzir os danos das medidas imperialistas do governo Trump. No entanto, além de precisar desenvolver uma liderança material, com uma economia pujante, seria necessária a construção de uma liderança imaterial, ou liderança política, que não depende apenas do sucesso do desenvolvimento da economia nacional, mas envolverá também a construção de mecanismos de geração de interdependências econômicas, políticas e tecnológicas na região. A articulação com governos progressistas do México, Colômbia, Chile, para citar os mais importantes, será crucial para construir uma posição consensuada, minimizando as divergências político-ideológicas em relação a questões disruptivas como o governo da Venezuela.
Malgrado o reconhecimento político internacional e nacional em relação à liderança carismática de Lula, tudo dependerá de como o terceiro governo do presidente superará os entraves políticos internos para alcançar um patamar de desenvolvimento econômico que melhore significativamente as condições de vida da população. Disso dependerá o aumento da popularidade do governo e a capacidade de derrotar a extrema-direita nas eleições presidenciais de 2026.
2 – Queda de popularidade: problema de comunicação ou de falta de ousadia?
Já estamos no meio do terceiro mandato do governo Lula, que se depara com indicadores nada auspiciosos, pois, pela primeira vez, as avaliações negativas em relação a seu governo superaram as positivas (49% e 47%, respectivamente, conforme pesquisa da Genial/Quaest de 27 de janeiro). Apesar da competitividade de Lula superar a de outros possíveis candidatos na intenção de voto nas próximas eleições de 2026, é preocupante o fato de que a queda de 5 pontos na aprovação ao trabalho de presidente em geral, também ocorreu, em diferentes graus, em grupos populacionais que tradicionalmente o apoiaram, como a população do Nordeste, pessoas maiores de 60 anos, com renda domiciliar de até dois salários-mínimos, e mulheres.
Tal queda no desempenho foi atribuída às dificuldades de comunicação do governo que, segundo alguns “entrega mais do que se comunica”, o que levou à troca do dirigente da Secretaria de Comunicação. Sidônio Palmeira foi empossado com concentrado poder para mudar a rota da comunicação do governo, tornando-a mais simples e menos analógica, buscando pautar a opinião pública ao invés de basicamente reagir às fakenews que ameaçam a democracia.
O maior impacto negativo na avaliação do governo foi causado pela desastrosa iniciativa da área da Fazenda de estabelecer maior controle da Receita Federal sobre as movimentações através do Pix, iguais ou superiores a R$ 5 mil, medida justificada como forma de combater a lavagem de dinheiro, mas que foi amplamente vista como uma ameaça de taxação, como foi denunciada em vídeo e redes sociais, levando o governo a recuar, revogando tal ato normativo. Tal episódio deixou muitas lições que ainda estão sendo processadas politicamente. Como um tema tão sensível como o controle das movimentações do Pix pela Receita Federal, em uma sociedade cuja economia atingia em 2023, segundo o IBGE, uma taxa de informalidade de 39,1%, pode ser tratado como um mero ato normativo da Fazenda, sem passar pela avaliação política do Planalto? Inexiste uma condução política claramente definida pelo Presidente em relação a medidas que podem afetar trabalhadores que vivem em permanente insegurança, destituídos dos direitos trabalhistas e previdenciários que lhes assegurem alguma segurança em situações de risco e em relação a seu futuro?
Mais do que um problema de comunicação, o que fica patente é a inviabilidade do precário equilíbrio pretendido pelo governo entre as medidas de austeridade aprovadas no orçamento fiscal e incensadas pelo povo do mercado e a necessidade de assegurar melhorias na qualidade de vida daqueles que dependem de políticas redistributivas, que Streeck[4] chamou de povo do Estado.
Outro fator que causou a queda de popularidade do governo foi o aumento da inflação, com subida de 4,83% do IPCA em 2024 com pequena redução em janeiro devido à energia. Já o setor de alimentos e bebidas teve o quinto aumento consecutivo em janeiro, juntamente com o transporte. Apesar do Banco Central ter feito elevações sucessivas da taxa Selic que atingiu 13,25% em janeiro de 2025, a inflação não cedeu, pois tal medida parte do diagnóstico equivocado que atribui o aumento da inflação ao aumento da demanda e não à oferta. Mesmo tendo havido aumento do salário-mínimo e da massa salarial, a inflação tem corroído o poder de compra da população. Desde 2023, o salário-mínimo é corrigido pela soma da inflação e do crescimento do PIB nos dois anos anteriores, com aumento limitado a 2,5% acima da inflação, teto definido pelo novo arcabouço fiscal. Estudo feito pelo economista Bruno Imaizumi, conclui que o aumento do salário-mínimo não foi capaz de compensar a alta dos preços, sendo que o poder de compra entre 2010 e 2019, que em média foi de 2,1 cestas básicas, caiu para 1,5 cesta básica em 2022, e mesmo tendo se recuperado ligeiramente para 1,7 em novembro de 2024, não alcançou retomar o nível anterior à pandemia. Suas projeções não são nada otimistas: “Não voltaremos a patamares [de poder de compra] pré-pandemia, então o brasileiro ainda se sente lesado. Ele não consegue comprar o mesmo que comprava antes da pandemia, porque os níveis de preços permanecem muito altos”.[5]
O governo atribui a elevação do preço dos alimentos ao aumento do dólar e a eventos climáticos como as enchentes e a seca, no Brasil e no mundo. Apesar de que a maior parte dessas razões já serem conhecidas há tempos, não foram tomadas medidas efetivas para evitar a situação atual de redução do consumo popular, continuando o Plano Safra a destinar 70% dos seus recursos ao agronegócio. Mas, como há indícios que teremos uma supersafra neste ano, e face à dificuldade de encontrar soluções de curto prazo, há expectativas de que a solução virá, basicamente, com o tempo.
Algumas medidas aventadas como a redução de tarifas em produtos importados e redução do preço de produtos perto da extinção da validade foram descartadas enquanto a compra de estoques de alimentos básicos e estímulos creditícios à produção e oferta de alimentos foram anunciadas pelo governo, mas, seus efeitos não serão imediatos. Por agora, foram negociadas mudanças na portabilidade do Programa de Alimentação do Trabalhador, uma demanda dos donos de supermercados.
Sem demonstrar a ousadia necessária para tomar medidas mais efetivas, impulsionando a reforma agrária e a produção familiar, o governo busca atender aos apelos incessantes da mídia comercial e da Faria Lima para assegurar o equilíbrio fiscal cortando gastos. Ao mesmo tempo, tem que atender às urgências de catástrofes criadas pelo próprio modelo de desenvolvimento que deteriora as condições de vida da população, minando a credibilidade do governo.
A entrevista dada por Lula aos jornalistas, já na nova fase atual de mudança da comunicação do governo, teve como efeito acalmar a histeria do mercado, baixando o dólar e elevando o índice do Ibovespa. contando também com a insegurança gerada pelo governo Trump. Mas, como não se trata apenas de um problema de comunicação, é preciso concordar com o presidente quando ele afirma que “o governo está entregando menos do que prometeu”.
Seguramente o governo tem que comemorar indicadores econômicos e sociais e buscar trazê-los ao conhecimento da população, pautando a mídia comercial, que já está em pela campanha, visando as eleições de 2026, para esvaziar o prestígio do governo. São dados importantes como, por exemplo, o crescimento de 3,5% do PIB em 2024, com o crescimento significativo de 3,1% da indústria, mesmo que seja projetada desaceleração em 2025; 16,5% a mais de empregos com carteira assinada em 2024 atingindo a mínima histórica da taxa de desemprego, aumento da massa salarial com a valorização do salário-mínimo; redução da pobreza extrema para 9,6 milhões de pessoas, o menor contingente desde 2012; aumento da cobertura vacinal acercando-se das metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde; reabertura de 218 leitos hospitalares na rede federal do SUS; volta dos programas Farmácia Popular e Auxílio Gás e aumento da cobertura do Programa Bolsa Família; retomada do Programa Minha Casa Minha Vida, lançamento do Programa Pé de Meia para estudantes e do Pé de Meia Licenciatura para formação de professores, criação do Programa Acredita de crédito para pequenos empresários, dentre outros.
Medidas como o novo PAC, um programa de investimentos coordenado pelo governo federal, em parceria com o setor privado, estados, municípios e movimentos sociais, resgata o papel do Estado como indutor do desenvolvimento econômico, com investimentos de R$ 1,8 trilhões, até 2026. Os investimentos estão comprometidos com a transição ecológica, neoindustrialização e geração sustentável de empregos. Um bom exemplo é a proposta de industrialização na área de saúde, que além de priorizar investimentos em infraestrutura aumentando a rede de atenção do SUS, visa alcançar a soberania sanitária, através da produção de imunobiológicos e fármacos, desenvolvimento de vacinas e estruturação de complexos industriais, laboratoriais e de pesquisas. Desta forma, pretende-se superar a crise do progressismo dos governos do início deste século, cujo modelo econômico baseado na reprimarização da economia para exportação de commodities, alcançou a redução da pobreza, porém aumentando as desigualdades, além da fragilização de uma economia altamente dependente, como ficou patente durante a pandemia da Covid-19.
Em vários momentos foi possível perceber a perplexidade de membros do governo ao se perguntar como e porque as conquistas expressas nos indicadores econômicos e sociais não se transformaram em aumento da popularidade do governo. Talvez precisemos visitar as falas da economista Maria da Conceição Tavares que nos ensinou que “o povo não come PIB”. Os bons indicadores mencionados acima não são capazes de, por si sós, de levar a população a acreditar no governo. Será necessário gerar um clima de confiança em um projeto de futuro, capaz de inserir as expectativas da população como parte do desenvolvimento, gerando esperanças de mudanças e confiabilidade na estratégia implementada pelo governo.
A permanente tensão dentro do governo entre a defesa do arcabouço fiscal com medidas incompatíveis com as promessas eleitorais em relação às políticas sociais, reduz a credibilidade do governo diante da população. A aprovação da Reforma Tributária, comemorada como a grande vitória do governo na área econômica, é importante e atende aos interesses de racionalização e aumento da eficiência do sistema tributário. Também houve aumento da arrecadação em 2024, devido ao aquecimento da economia e ao aumento das alíquotas do imposto de renda sobre a tributação de fundos fechados em outros países, do imposto de importações e do IPI vinculado à importação. Mas, medidas como a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$5 mil e alteração das alíquotas que beneficiariam a classe média, a serem compensadas pela e a taxação de grandes fortunas, foram postergadas e enfrentarão grande resistência no Congresso.
Por outro lado, para atingir as metas traçadas no Arcabouço Fiscal, de economizar R$ 70 bilhões nos próximos dois anos, a equipe econômica propôs vários cortes na área social nos programas do BPC, Abono Salarial e Valorização do Salário-Mínimo. O pacote de corte de gastos foi enviado por Lula ao Congresso no final de novembro, tendo sido muito criticado, aumentando a insegurança daqueles que dependem desses benefícios. Porém, teve ampla aceitação entre economistas que defendem o corte de gastos públicos como única saída para evitar maior aumento da dívida pública. Além de aumentar a miséria, a desigualdade e a queda de popularidade do governo, tais medidas legitimam falsas crenças de que a dívida pública seja decorrente de gastos com políticas populistas e não que seja uma consequência do aumento da taxa de juros e do ganho financeiro com a compra dos títulos emitidos da dívida pública. Utilizando dados do último relatório do Banco Central, Paulo Kliass[6] demonstra que o pagamento das despesas financeira atingiu R$950 bilhões em 2024, quase chegando a Um Trilhão, o que é a verdadeira razão do suposto desequilíbrio fiscal, ao contrário do que sugerem os que saem em defesa dos interesses do financismo apregoando a urgência no corte dos programas sociais, vistos como gastança ou populismo fiscal, para assegurar a robustez fiscal. Kliass mostra que o não enfrentamento da falsidade do diagnóstico de um desequilíbrio estrutural, exigindo maior austeridade, que não questiona, não politiza, não educa a população e não toma medidas para reduzir o pagamento dos juros, tem consequências que atingem seriamente as políticas públicas, provocando o desmonte das capacidades estatais:
“Um dos aspectos mais dramáticos desse processo é o esmagamento da capacidade orçamentária nestas áreas de natureza social, abrindo espaço para uma crescente privatização da oferta de tais serviços públicos. Com isso, observamos uma participação cada vez maior do capital privado em hospitais, planos de saúde, gestão de organizações sociais (OS) de saúde, escolas de ensino fundamental e médio, faculdades e universidades, empresas de segurança privada, serviços pagos de assistência social e outros.”
Além de enfraquecer a economia popular, tais propostas de cortes dos gastos sociais se baseiam na aceitação do credo neoliberal em franco descrédito global, impedindo o governo de ousar questionar o fracasso do neoliberalismo no mundo e partir para a discussão de outro modelo sustentável, no qual economia e bem-estar social se fortaleçam mutuamente ao invés de seguir com o conto da carochinha de que o governo deve ser visto como uma dona de casa que não pode gastar mais do que arrecada. Termina por sacrificar toda a nação em função da ganância especulativa do mercado financeiro.
3 – Governança ou Governabilidade
Na área política o governo enfrenta muitos desafios que tiveram início durante a própria eleição presidencial, alcançada com uma vitória apertada, ,o que demonstra o grau de polarização da sociedade brasileira, tendo que conviver no Congresso com a maioria parlamentar de conservadores e parlamentares de direita e ultradireita. Acampamentos em frentes a unidades do Exército foram tolerados, atos de vandalismo com tentativas de invasão da Polícia Federal em Brasília no período Dezembro de 2022 foram tratados com total leniência pelas autoridades públicas, civis e militares, na antessala da tentativa de golpe que se estava armando e que culminou com a depredação dos prédios e símbolos dos três podres em 8 de Janeiro de 2023.
A atuação do novo governo Lula tanto na simbólica subida da rampa com a sociedade quanto na também muito carregada de simbolismo descida da rampa do palácio destruído, juntamente com as lideranças dos três poderes e governadores, demonstrou uma impecável condução política, buscando refazer o pacto social e o federativo, abalados pelos eventos mencionados. A frente ampla eleitoral que consagrou a vitória de Lula, derrotou a aliança bolsonarista que inclui setores do agronegócio, produtores de armamentos, empresários do setor de serviços, militares, lideranças neopentecostais e conservadores. Esses atores foram apoiados por uma classe média com ganhos na faixa de dois a cinco salários-mínimos, afetada pela crise econômica e pelas transformações sociais em direção a novas pautas de costumes que ameaçam o patriarcado, o machismo e a branquitude. Até mesmo a mídia corporativa e o capital financeiro apoiaram a eleição de Lula, compondo uma frente ampla eleitoral em prol da reconstrução da institucionalidade democrática, desde que ficasse resguardada a austeridade fiscal e a desregulação de suas atividades e ganhos.
Tal aliança eleitoral não se consolidou como uma aliança governamental desde seu início, o que só agora, em 2024, ficou expresso na entrevista de despedida do ex-presidente da Câmara, Arthur Lira, ao vaticinar, sobre possível apoio político nas eleições de 2026 dos partidos que atualmente ocupam ministérios no governo, que “ninguém embarca em navio que vai afundar”.
Enquanto a frente democrática se desfazia como fumaça ao vento, as direitas se reagruparam imediatamente adotando como arenas fundamentais de sua ação, as redes sociais e a Câmara Federal. O enfrentamento sofrido pelo governo da presidenta Dilma que culminou com o golpe que a destituiu, selou o fim do presidencialismo de coalizão, termo cunhado por Sergio Abranches[7] para designar o arranjo necessário para assegurar governança em um sistema presidencialista com elevada fragmentação partidária. Isto obrigava a construção de maiorias congressuais a partir de negociações entre o Executivo com minoria congressual, e os maiores partidos, que lhe serviriam de base de sustentação em troca de posições nos ministérios e empresas estatais, dentre outras benesses. Tal arranjo já não funciona neste termo do governo Lula, acarretando uma mudança desde um presidencialismo de coalizão a um presidencialismo de confrontação.
“Algumas mudanças explicam os fatores responsáveis por tal situação, em especial a: 1) Redução do poder legislativo por parte do Executivo com o estabelecimento de prazo de 60 dias para que as Medidas Provisórias enviadas pelo Executivo vigorem; se não votadas nesse período, perdem o valor; 2) Perda de controle dos líderes partidários sobre as bases, decorrente da concentração de recursos nas mãos do presidente da Câmara por meio do Orçamento Secreto, com total poder discricionário e falta de transparência; 3) Aprovação do Orçamento Impositivo, em 2015, no qual as emendas parlamentares individuais passaram a ter execução obrigatória. Consequentemente, perda de poder do Executivo para contingenciar recursos de emendas parlamentares, importante recurso utilizado para obtenção de apoio dos parlamentares.; 4) Reformas eleitorais que forçaram o reagrupamento de partidos no Congresso, com a aprovação da cláusula de barreira e da federação de partidos, o que tem acarretado a perda de controle das lideranças sobre as bases (Fleury e Neves,2023)”[8].
A pandemia exerceu forte pressão sobre os poderes públicos, tanto pelo aumento da demanda de recursos e serviços em um contexto de desconhecimento das causas da doença e dos meios para combatê-la, quanto pela postura negacionista do governo central, que militarizou o Ministério da Saúde e buscou impedir os governos subnacionais de atuarem conforme as recomendações de isolamento social propugnadas pelos cientistas. Diante de tal situação acirrou-se a autonomia dos poderes da República, com a aprovação do Orçamento de Guerra pelo Legislativo, aumentando a agilidade, a discricionariedade e a falta de transparência na alocação dos recursos orçamentários pelos parlamentares.[9]
Diante desse novo arranjo entre os poderes e as relações intergovernamentais, vemos um Legislativo que controla R$ 52 milhões do orçamento para emendas parlamentares, distribuídos para suas bases, com pouca transparência e controle, aumentando casos de corrupção e reprodução do familismo e do caciquismo locais. Como consequência das limitações de gastos da política de austeridade, os gestores locais se encontram particularmente dependentes da Emendas Parlamentares para buscar satisfazer as demandas dos moradores.
O crescente embate entre um Legislativo empoderado e um Executivo debilitado, pela contenção de gastos por um lado e pela perda de poder sobre o orçamento discricionário, o conflito foi transferido para o Judiciário com a ação do STF exigindo transparência na alocação dos recursos das emendas, com a suspensão da liberação das emendas até que tais exigências feitas pelo Ministro Dina sejam cumpridas. O desarranjo entre os poderes compromete nossa democracia, jovem e incompleta, com a hipertrofia do Legislativo, a hiper politização do Judiciário (STF) e o enfraquecimento do Executivo, cerceado pela manutenção da política de austeridade e pelo constante enfrentamento com o Legislativo, na figura de Arthur Lira, seguindo os passos de Eduardo Cunha.
O governo Lula segue buscando compor uma ampla base de apoio partidário no Congresso, através dos mecanismos tradicionais de composição de maiorias congressuais, muito embora os dois anos de governo já indicaram que a participação de partidos em ministérios não assegura o voto de parlamentares desses partidos para aprovação das medidas encaminhadas pelo governo. A eleição dos novos presidentes do Senado e da Câmara mostra a importância do Centrão no controle do Legislativo e indica que as negociações com o governo não deixarão de ser duras.
A eleição de novos presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente Davi Alcolumbre (União-AP) e Hugo Motta (Republicanos-PB), não parece alterar favoravelmente o cenário de fragilidades e impasses a serem enfrentados pelo governo Lula. O discurso de posse de Hugo Motta, mostra a que veio, ao fazer uma releitura perversa da fala de Ulisses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988, saindo da ditadura para resgatar o lugar do Legislativo. Assumindo que Executivo e Legislativo são governo, adota a proposta do semipresidencialismo, porém destituída de qualquer mecanismo de controle sobre o Congresso, considerado um ultraje, como no caso da exigência de transparência na locação dos recursos orçamentários. Apoiado pelo PL e pelo PT, Hugo Motta sinaliza seu apoio à anistia, que terminaria beneficiando Bolsonaro.
Aparentemente não há saída, pois o governo precisa negociar com os partidos e buscar construir uma base de apoio, mesmo considerando a volatilidade de tal base. A saída, só pode ser o fortalecimento do Executivo, com uma liderança inconteste em defesa de um projeto definido, com amplo apoio popular, revertendo sua captura pelos interesses clientelistas. É preciso ter claro que não se pode confundir governança com governabilidade. A governança trata do arranjo político institucional que permite ao governante implementar suas ações e programas. Já a governabilidade é um atributo que a sociedade assigna ao governante, legitimando suas ações e propostas. Só um governante legitimamente empoderado pela população poderá reverter a situação de aprisionamento atual, aumentando suas margens de manobra para construir a desejada governança. O Congresso é extremamente sensível à pressão popular, resta o governo trabalhar para conseguir o consenso na opinião pública.
Decisões estratégicas deverão ser tomadas com lucidez e contundência, diante do quadro internacional que se desenha e do contexto nacional, tendo em conta o fato de o governo já estar na metade do seu mandato e a proximidade com as eleições de 2026. Recente pesquisa aponta Lula como favorito nas eleições de 2026, derrotando todos os candidatos da oposição (Genial/Quaest, 3/2/25) apesar do empate técnico entre a rejeição e aprovação ao presidente. Impedido de se candidatar, Bolsonaro busca obter anistia, situação que mantém a direita dividida entre vários candidatos. Já a esquerda aposta na reeleição de Lula, único nome capaz de enfrentar com sucesso os candidatos da direita.
Mas, muita coisa ainda vai acontecer nos próximos dois anos para dar o quadro eleitoral como situação consolidada. Questões políticas cruciais deverão ser tratadas neste período, a principal delas sendo a provável denúncia que a PGR deve apresentar contra Bolsonaro, cujo julgamento poderá condená-lo a prisão. O STF já condenou 310 pessoas acusadas de envolvimento de atos golpistas no 8 de Janeiro de 2023. Há uma mobilização no Congresso pela anistia de Bolsonaro e dos demais golpistas condenados, o que vai depender da condução dada pelas novas presidências das casas Legislativas.
Outra questão pendente será relativa à participação dos militares na tentativa golpista, diretamente, como está sendo provado, ou indiretamente, com atitudes lenientes diante do golpe que se desenhava. Mais além dessa participação, o que está em jogo é o controle civil sobre as Forças Armadas, com uma nova concepção da Defesa Nacional, unindo a sociedade em prol de um projeto de autonomia e integração latino-americana, que se afaste da noção de combate ao inimigo interno para assentar tal projeto na defesa da democracia, o que só acontecerá se Lula assumir o comando político das Forças Armadas, como propõe Manuel Domingues Neto.[10]
A segurança pública tem sido enfrentada pelo governo com a proposta do Ministro Lewandowski de revitalização do SUSP, sistema que se espelha no SUS, mas que carece da principal força propulsora do SUS, o movimento sanitário, sem o qual a disputa entre os diferentes órgãos governamentais, em vários níveis, jamais teria sido superada. As contestações à proposta do ministro, pela direita denunciando a perda de autonomia dos governos subnacionais e pela esquerda evidenciando a militarização da segurança pública, só poderão ser superadas se houver um movimento social que assegure o debate, a mobilização e a construção do imprescindível consenso nacional em tema que afeta a vida de cada um dos brasileiros. O governo estará disposto a abrir um amplo debate sobre a questão da segurança urbana, o que implica na redefinição do pacto federativo em relação a uma questão que já transbordou os limites das competências definidas constitucionalmente? Ou, novamente será o STF que atuará politicamente definindo como deve ser a atuação policial nas favelas e periferias ao julgar a ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas? Há um grande conjunto de atores, acadêmicos, movimentos sociais que estão mobilizados e têm propostas concretas que precisam ser incorporadas a um projeto democrático de governo que priorize a segurança cidadã, ao invés da guerra às drogas que se mostrou incapaz, inefetiva e discriminatória, propiciando o crescente domínio territorial de redes internacionais de criminosos e o aumento da violência estatal.
Voltando à questão da governabilidade, ela só será alcançada se a cidadania perceber que sua segurança está sendo tratada de maneira adequada pelo governo, pois a insegurança gera medo, sentimento que é facilmente capturado pelo populismo de direita, canalizando o medo como ódio a um suposto inimigo. A segurança diz respeito às necessidades mais profundas, como a vida, da qual a saúde é sua tradução mais concreta, a educação como possibilidade de uma vida melhor e a segurança pública como parte do direito de viver em um território não conflagrado. A contraposição ao sentimento de medo é a esperança, um sentido de pertencimento a um destino comum. Será que o governo se preocupa em oferecer um projeto compartilhado de soberania e emancipação?
4 – Comum, Hegemonia, Esperança
Seguramente uma mudança na comunicação do governo será importante para trazer à luz os esforços que têm sido feitos para a reconstrução da terra arrasada deixada pelo governo anterior em todas as áreas, em especial aquelas que tratam diretamente de assegurar a provisão de bens e serviços que assegurem os direitos da cidadania. Mas, é preciso ter clareza na distinção entre comunicação e propaganda. Na propaganda há um agente que transmite sua verdade a um ouvinte passivo, enquanto a comunicação tem um sentido dialógico, um processo através do qual se constroem, coletivamente, significados, sentidos e projetos comuns. A comunicação visa não apenas divulgar seus feitos, mas também transmitir uma direção política que orienta a ação governamental e articula sua interação com os atores da sociedade. Sendo dialógica, ela deve estar aberta a ouvir a população e discutir política em todos os momentos em que exista uma interação entre agente governamental e cidadãos. Chamo a isso um Estado Pedagógico, mobilizador da construção de um consenso ativo, no sentido Gramsciano, junto com a necessidade de construção desse consenso a partir da vivência das pessoas, para inseri-las em um projeto de emancipação, como nos ensinou Paulo Freire.
Para isso, parte-se da clareza em relação a uma direção política compartilhada, pois, por mais que as contradições devam ser consideradas, analisadas, enfrentadas e se possível, superadas, a direção não será alcançada se não forem feitas opções cruciais, pelo governo e pelos movimentos e organizações sociais. Atordoadas pelas mudanças decorrentes de novas formas produtivas, que geraram o precariato – inserções precarizadas na economia da sobrevivência, destituídas de direitos trabalhistas, individualizadas e plataformizadas – novas formas de subjetivação que valorizam o individualismo travestido de empreendedorismo, novas tecnologias que permitem o falseamento da realidade e a vida em bolhas da internet, as esquerdas e seus partidos encontram dificuldades para se posicionarem de forma agregadora no mundo atual. Ora há um elogio acrítico da perspectiva do empreendedorismo, que seguramente deve merecer o apoio para seu desenvolvimento, mas que será limitado em sua capacidade de transformação social. Ora, demonstram a incapacidade de entender e participar das lutas como a reivindicação do 6X1, adicionando a essa plataforma as demandas por proteção social para o grupo de jovens que a levantaram.
As esquerdas não podem se opor à busca por autonomia, desejo que faz parte da essência da natureza humana, mas precisa distinguir e trabalhar as diferenças entre autonomia e liberdade individual, mostrando que a autonomia passa por um projeto que é comum e compartilhado, fundado na construção de laços de solidariedade. Também será necessário compreender as lutas identitárias como parte das lutas de classe, que não se esgotam na exploração econômica, mas que traçam interseccionalidades que favorecem a superexploração das ditas minorias.
A construção da hegemonia não é um projeto de governo, é um projeto de transformação em direção à uma nova sociedade, que nos implica a todos e cada um e uma e nos instiga a sair da passividade e pasmaceira em que nos encontramos, atordoados com as mudanças e cooptados pela participação em instâncias com baixa capacidade decisória. Se a esperança pode vencer o medo, o desejo de emancipação pode vencer a paralisia política em direção à essência que é a busca da solidariedade e da construção do comum, como antídoto ao individualismo competitivo difundido pelo neoliberalismo.
Como nos convoca Juarez Guimarães[11], sendo a esperança uma moralidade revolucionária, é imprescindível “Contra as pulsões da angústia, da violência e de morte, restaurar a práxis das filias e das amorosidades libertárias do socialismo democrático”.