Ineditismo enganador

Quando a autoridade civil ordena a prisão de altas patentes envolvidas em tentativa de golpe, o impacto simbólico é fortíssimo. Mas pode ser engodo. Democracia se conquista em confrontos barulhentos. Não é dádiva de tribunal, parlamento, líder carismático ou quartel

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O democrata brasileiro alegra-se com a prisão de militares julgados responsáveis pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.

A bem da verdade, deve moderar sua alegria. A condenação tanto pode favorecer a revisão do papel das fileiras quanto pode empaná-la.

Cabe registrar: o julgamento atendeu à ansiedade do quartel em melhorar sua imagem e sua autoestima, condições fundamentais para persistir em seu papel histórico.

O quartel precisava passar à sociedade a ideia de que o golpismo decorreria de vontades individuais transviadas, não de orientação corporativa multifacetada, alongada, orientada para deter reformas socioeconômicas e assegurar o domínio sobre a sociedade e o Estado.

Ao condenar oficiais de alta patente, o Supremo não apenas agradou o democrata. Proclamou também a isenção do quartel relativamente ao golpismo criminoso. Alimentou, de quebra, a falsa percepção de que a fileira agiu como garantidora da democracia.

Não é proeza banal mascarar responsabilidades cristalizadas pelo tempo. Ao longo de sua existência, o quartel formou, inspirou, agasalhou, nutriu, treinou e protegeu golpistas. Ensinou que a ditadura militar fez bem ao Brasil e que a fileira detém padrão moral superior ao paisano indisciplinado.

Ensinou que reformistas sociais são perigosos e que os Estados Unidos encarnam o mundo livre, justo e bonito. Ensinou que a Defesa do Brasil deve ser extensão da coalizão do Atlântico Norte encabeçada pelo Pentágono.

Bolsonaro aprendeu, no quartel, a bater continência para a bandeira estadunidense. Seus filhos e seguidores veem com naturalidade a ingerência da Casa Branca no Brasil.

Bolsonaro é cria do quartel. Seu jeito de pensar e falar foi moldado na fileira. Seu reacionarismo estridente, sua percepção da sociedade e sua misoginia têm cheiro de quartel.

Foi no quartel, discursando para cadetes em dezembro de 2014, que Bolsonaro iniciou sua caminhada rumo ao Planalto. O general Enzo Peri comandava, então, o Exército e o general Tomás Paiva, a AMAN. Não foram repreendidos. Dilma Rousseff era presidente da República e Celso Amorim, seu desatento ministro da Defesa.

A eleição de Bolsonaro foi, antes de tudo, uma decisão militar. O comandante Villas Bôas, em abril de 2018, deu a senha para o Supremo prender Lula e facilitar o caminho do Capitão rumo à Presidência da República.

Em apoio ao candidato Bolsonaro foram mobilizados milhões de integrantes da “família militar”. Aqui, não conjecturo, repasso informação de um general que esteve no comando de sua campanha.

Esse contingente impulsionou a dissonância cognitiva que atingiu grande parte do eleitorado. Contribuiu para naturalizar os apelos do Capitão ao derramamento de sangue. Enfim, operou contra a coesão nacional. 

Do quartel saíram figuras-chaves e orientações estratégicas do repulsivo governo Bolsonaro.

Como sua reeleição estava ameaçada, o quartel participou da tentativa de desqualificar a urna eletrônica ao tempo em que recebia hordas de fanáticos em sua porta.

Não há registro de comandantes ofendidos com os pedidos de “intervenção militar”. Há registro de comandantes acoitando golpistas fanatizados. Nenhum deles respondeu por prevaricação.

Ao final de 2022, uma palavra do general Freire Gomes dispersaria os acampados diante do Comando Militar, de onde saíram, dias depois, para o quebra-quebra na Praça dos Três Poderes. Não obstante, o omisso general chegou a ser apontado como herói legalista.

Ao final de investigação tecnicamente apurada e impecável observância do rito judicial, poucos generais foram presos, mas o bastante para a maioria dos brasileiros pensar que a democracia venceu e que, doravante, golpistas pensarão cem vezes antes meter os pés pelas mãos.

Quando a autoridade civil ordena a prisão de altas patentes, não há como deter a alegria do democrata brasileiro. O impacto simbólico é fortíssimo.

Já outro recado importante é menos perceptível: o quartel, tendo feito o que fez, foi eximido de responsabilidade. Não lhe cabe responder por sofrimentos e sobressaltos vividos pelos brasileiros.

Assim legitimado, preserva sua sempiterna autonomia relativamente ao poder político. Ganha, inclusive, moral para barganhar condições prisionais dos seus enquanto não surgem condições para anistiá-los.

A crença de que cumpre ao Tribunal o protagonismo na preservação da democracia desorienta a luta política. Democracia se conquista em confrontos políticos e ideológicos barulhentos. Não é dádiva de tribunal, parlamento, líder carismático ou quartel.

O ineditismo da prisão de altas patentes é admirável. Mas, parafraseando conhecido autor siciliano, há ineditismos que deixam tudo do mesmo jeito.

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