Dosimetria, Política e Dissimulação

Dias depois das grandes manifestações contra anistia aos golpistas, líder do governo permitiu que a proposta avançasse, em troca de “espaço fiscal”. O que isso revela sobre as relações do governo Lula com o rentismo e o Centrão – principais empecilhos para uma agenda de mudanças em 2026

Imagem: Dida Sampaio/Estadão
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Por Luiz Filgueiras e Graça Druck

Ainda no século XVI, Nicolau Maquiavel aprendeu, em seu ofício prático de Chanceler do Estado de Florença, que a política passa muito longe de qualquer objetivo que não seja conquistar e manter o poder. Na condição de observador participante, aprendeu isso convivendo com os príncipes e anotando os seus comportamentos – nas mais variadas situações.

Entre as inúmeras lições, que registrou em seu livro mais famoso (O Príncipe), mas não necessariamente o mais importante, destaca-se a “dissimulação”, uma das características mais fundamentais para conquistar e manter o poder. Ao Príncipe não basta a força do leão; necessita combiná-la com a esperteza da raposa: é crucial saber dissimular e esconder os seus reais objetivos e os meios utilizados para alcançá-los

O episódio (inacreditável) recente da aprovação, pelo Senado, da PEC da Dosimetria evidenciou uma das faces mais lamentáveis da política brasileira, e que vai ficar para a história do país como mais uma traição – entre tantas que já ocorreram. Mas mais do que isso, o acontecimento também evidenciou uma tentativa de dissimulação canhestra, ridícula, que só engana os neófitos da política e os acólitos do Governo Lula.

A gravidade do fato não precisa ser detalhada, basta registrar os seguintes pontos: 1- A PEC tinha como objetivo essencial aprovar uma quase anistia para os golpistas, em especial para Jair Bolsonaro (e todos seus crimes conhecidos). 2- Ela está eivada de inconstitucionalidades, sendo as mais óbvias o sequestro do poder do STF pelo Congresso Nacional e o fato de que ela deveria voltar à Câmara dos Deputados, uma vez que houve alteração de mérito no seu conteúdo. 3- A consequência maior é o enfraquecimento da democracia e do Estado de Direito, com a desmoralização da tradicional divisão de poderes em uma República (Executivo, Legislativo e Judiciário). 4- Uma pancada fortíssima na esquerda e em todos os que acreditaram que, dessa vez, mais um golpe Estado não iria passar impune; por isso, o descrédito com a política só vai crescer ainda mais.

Mas de que dissimulação estamos mesmo falando? Ela está em todas as mídias desde ontem (17 de dezembro), retratada da seguinte forma: o líder do governo Lula no Senado, Jacques Wagner, teria por “iniciativa própria”, sem discutir com ninguém, feito um acordo com a direita neoliberal e a extrema direita de facilitar a tramitação da PEC da Dosimetria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e a sua votação no plenário, em troca, vejam só, da aprovação de um projeto do governo Lula que acrescentou em torno de 20 bilhões ao orçamento federal do próximo ano. Um acordo, evidentemente, ridículo e imoral (desculpem, mas não resistimos), no qual a democracia entra com o pescoço e os golpistas (neofascista e neoliberais) entram com a guilhotina.

A tentativa de dissimulação, com o senador Wagner no papel de “boi de piranha”, tem por objetivo esconder a responsabilidade de toda a cadeia de comando (decisória) que participou do acordo. Para isso, aponta-se que a bancada do PT, com a exceção de um senador que diz que se enganou (só pode ser uma piada), votou contra a PEC e, já se adiantou, que Lula vai vetar o que foi aprovado no Senado. Mas como todos sabem, o veto será derrubado pelo Congresso Nacional; restando, assim, a esperança de que STF decrete a sua inconstitucionalidade – jogando mais uma vez toda a responsabilidade para o poder judiciário.

Mas a pergunta que não quer calar é a seguinte: uma decisão e um acordo com teor tão grave não passariam, necessariamente, pela concordância de nenhuma instância do Partido dos Trabalhadores (PT) e, mais especificamente, do próprio Lula? Alguém acredita que isso seja possível, que o senador Jacques Wagner acordou de “veneta” e teve a brilhante ideia de facilitar as ações do governo no próximo ano (eleitoral), acrescentando mais 20 bilhões ao orçamento? Quem pode acreditar em uma dissimulação tão tosca e ridícula. Jacques Wagner é o líder do Governo no Senado; não é líder dele próprio ou de quem quer que seja. Os envolvidos nessa pantomina não aprenderam direito a lição dos Príncipes, apenas retratada por Maquiavel; em um exame “isento” sem dúvida seriam reprovados.

O neofascismo contemporâneo surgiu e se criou contra o “Sistema” no ambiente de terra arrasada resultante de mais de quatro de décadas (no Brasil desde os anos 1990) de hegemonia neoliberal no mundo: crescimento da desigualdade de renda e riqueza, desemprego, precarização do trabalho, pobreza, incertezas, descrédito da política etc. Nesse ambiente, o transformismo das esquerdas mundo afora (Partidos Sociaisdemocratas, Socialistas, Trabalhistas), assumindo no todo ou em parte o ideário e a execução das políticas neoliberais, criou um vácuo de representação da imensa maioria do povo, que foi preenchido por uma nova extrema direita de massa e mobilizadora: o neofascismo.

Nesse momento, fica cada vez mais clara a convergência do neoliberalismo com o neofascismo, em todo o mundo e no Brasil em particular, uma espécie de afinidade eletiva, que os aproximam e os identificam. Esse fato tem sua explicação mais remota na formulação teórica original do neoliberalismo, feita por Hayek, no seu livro O caminho da servidão. Nele defende que há uma diferença fundamental entre democracia e liberdade: a primeira se restringiria à mera forma de escolha (pela maioria) dos governantes da sociedade, enquanto a segunda seria o que de fato é substantivo, ou seja, a total liberdade dos indivíduos decidirem sobre a sua propriedade (do capital). Como corolário, Hayek decreta: uma sociedade autoritária pode ter mais liberdade do que uma sociedade democrática. Por isso, visitou duas vezes o Chile de Pinochet, em uma das quais se reuniu com o ditador, pois no novo regime (ditatorial) o capital tinha total liberdade de movimento, enquanto no regime anterior de Allende havias restrições e regulação sobre a sua capacidade de exploração do trabalho. Portanto, antes de Margareth Thatcher e Ronaldo Reagan, a ditadura chilena foi a primeira experiência do neoliberalismo no governo.

De outro lado, o neofascismo, por definição, é contra a democracia liberal, ou qualquer outra, da mesma forma que o fascismo histórico (Itália e Alemanha nos anos 1920). Mas, ao contrário deste, se insere numa época de mundialização do capital sob hegemonia financeira-neoliberal; portanto, a sua versão na periferia do capitalismo não contempla um nacionalismo substantivo (vide a militância de Eduardo Bolsonaro contra o Brasil e o apoio do bolsonarismo à política tarifária de Trump contra o país). Em suma, estamos diante de um neoliberalismo neofascista ou de um neofascismo neoliberal; mas consideramos a primeira combinação mais apropriada, pois a força hegemônica é o neoliberalismo, que subordina e se apropria do neofascismo e de sua base social.

Em suma, o neoliberalismo, na era da mundialização financeira e da monopolização do conhecimento, não consegue mais conviver com a democracia liberal. De forma aparentemente paradoxal, a forma contemporânea do capitalismo, diferentemente dos séculos XVIII e XIX de predomínio do liberalismo, conspira contra qualquer tipo de democracia.

Na conjuntura atual brasileira, as recentes manifestações de massa (milhares de pessoas nas ruas), que permitiram vitórias importantes do governo Lula (rejeição da PEC da Blindagem, isenção do imposto de renda para os que ganham até 5 mil reais e redução para os que ganham até 7 mil reais) foram solenemente ignoradas pelo PT e o governo Lula no acordo que facilitou a aprovação da PEC da Dosimetria. Isso é dramático, porque alimenta uma sensação de derrota e desânimo nas massas.

E isso é mais dramático ainda porque a tentativa de reeleição de Lula se dará em um quadro muito mais difícil do que o das suas eleições anteriores. Desta feita, se a direita neoliberal e o neofascismo convergirem para a candidatura de Tarcísio, não haverá defecções representada pela suposta 3ª via que, na eleição de 2022, convergiu em sua maioria para o apoio a Lula. Ou seja, as forças de direita e neofascistas tenderão a convergir em bloco para essa candidatura.

A defesa da democracia e a autoestima da melhor parcela do povo brasileiro foram trocadas por 20 bilhões de reais a mais no orçamento federal; isso dá em todos os democratas uma tristeza profunda. E é impressionante, mas não o principal de todo esse evento, como indivíduos que vieram dos de baixo, especificamente do novo sindicalismo e da construção de um novo partido das classes trabalhadoras, tenham concordado em assumir esse papel torpe, de negação à democracia, o que há de melhor na sociedade brasileira e o que eles próprios representam para a maioria da esquerda brasileira.

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