Da COP à Copa: reflexões sobre ambiente e brasilidade

Passado o pesadelo, será possível repensar o modelo agrícola do país e enfrentar a fome e a devastação que ele produz? Como fazê-lo, se o planeta segue um jogo dramático entre a bolsa de poucos e a vida de todos?

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Há 30 anos atrás, o Brasil, país do futebol de Pelé, sediava a Rio 92. A conferência internacional sobre a situação ambiental do planeta foi a primeira a debater o tema das mudanças climáticas e abriu a possibilidade de iniciarmos um processo de transformação rumo à reversão do colapso da natureza. Sim, representantes de países do mundo inteiro vieram para cá, porque, além de sermos a terra do futebol de Pelé, somos o país das florestas, como as que compõem a Amazônia, e aqui se vislumbrava um caminho de reconfiguração das relações entre os seres humanos e o ambiente. Nosso verde, tão presente nas matas, era a cor da esperança, que também ondulava na nossa bandeira.

Estamos em 2022, ano em que acaba de ser realizada a 27ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas – COP27, e muitas águas passaram sobre a Rio 92. O planeta segue sendo consumido por um sistema de maximização dos lucros para uma ínfima minoria e de privação de direitos para grande parte da humanidade. A biodiversidade vem sendo reduzida e as emissões de gases de efeito estufa seguem crescendo. O cumprimento das metas definidas internacionalmente para controlar esse cenário é empurrado para um futuro que parece nunca chegar.

Por falar em chegar, se o Brasil chegou a ser uma referência para o mundo em políticas sociais e ambientais bem no comecinho do segundo milênio, os últimos anos, iniciados após o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, trataram de destruir essa imagem. Temer deu origem a uma desconstrução dos mecanismos que nossa sociedade havia conquistado, a duras penas, para proteger nossa população e nosso ambiente contra a exploração desmedida por parte das grandes corporações. E Bolsonaro chegou para tentar enterrar de vez nossos programas governamentais de proteção de direitos, seja de pessoas ou da natureza, junto com os quase 700 mil mortos, que a COVID 19 causou no Brasil, nesses três anos de pandemia. Sabemos que, assim como boa parte dessas mortes poderia ter sido evitada se tivéssemos um governo federal minimamente responsável, boa parte da destruição ambiental que ocorreu em nosso território nesse período também poderia não ter ocorrido.

Embora o mundo inteiro siga andando de lado quando se trata de cumprir os compromissos assumidos em relação às mudanças climáticas, nosso país foi um dos poucos que, em pleno pico da pandemia, teve suas emissões de gases de efeito estufa aumentadas, ao invés de reduzidas. E esse aumento, que foi de quase 10%, é devido, sobretudo, ao crescimento intenso do desmatamento que nossos biomas vêm sofrendo: quase metade das emissões de 2021 pode ser atribuída à destruição das florestas.

Derrubar a vegetação nativa, seja na Amazônia, seja em áreas de cerrado, da mata atlântica, do Pantanal ou dos pampas, é uma atividade diretamente ligada ao modelo agrícola de produção, adotado pelo Agronegócio brasileiro. E é uma forma de abrir espaço para a ampliação das monoculturas de commodities para exportação e para a criação pecuária. Não é à toa que os recordes de desmatamento são acompanhados dos recordes de produção de grãos, como soja e milho, e que a exportação de carne segue turbinando o bolso dos donos de frigoríficos.

O que deixa a situação ainda mais dramática é que toda essa destruição ambiental – supostamente para aumentar a área de cultivo de grãos e de pasto para o gado – tenha ocorrido conjuntamente com o aumento expressivo da fome no país. Estamos, mais uma vez, como tantas vezes em nossa história de colônia, explorando insustentavelmente nosso território para enviar o produto dessa exploração ao exterior. 

Se, há décadas, o nosso país é “recordado” no mundo todo por ser campeão no futebol, nos últimos anos ele tem concorrido a esse título em outras modalidades muito menos honrosas. Pior gestão da pandemia, recordista em violência contra ativistas e populações tradicionais, único país do mundo que hoje adota oficialmente um conjunto de compromissos climáticos inferior ao que adotou há anos atrás junto à ONU – estes são alguns títulos que andamos conquistando durante o atual desgoverno.

A eleição de Lula trouxe uma perspectiva positiva para que possamos reverter os desastres nas políticas socioambientais brasileiras dos últimos anos e sua participação na COP 27 já reconfigurou o cenário internacional quanto às questões climáticas, dada a importância do Brasil no setor e a equipe de pessoas, como Marina Silva e Sônia Guajajara, que ele está envolvendo no processo de transição de governo. 

A criação do Ministério dos Povos Originários, o compromisso com o desmatamento zero na Amazônia e a afirmação de que “não precisamos desmatar nem um metro de floresta para seguirmos sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, já que temos 30 milhões de hectares de terras degradadas e conhecimento tecnológico para torná-las agricultáveis” renderam manchetes nos principais veículos da mídia internacional e já geraram impactos positivos, como o anúncio da liberação dos fundos que a Noruega havia destinado ao combate aos problemas ambientais da região amazônica e que estavam bloqueados devido às ações trágicas do atual presidente da nação. Mas sabemos que, dentro e fora do país, existem conflitos muito difíceis de serem administrados e mais ainda de serem resolvidos.

Se seguirmos permitindo que nosso território seja utilizado como um fazendão para produzir commodities para o mercado internacional – sempre a base da perpetuação do latifúndio de origem escravagista, da destruição da biodiversidade, da contaminação por venenos agrícolas e da usurpação dos recursos naturais, como a água e a energia –, será impossível contribuir verdadeiramente para modificar o cenário de caos climático que nos ameaça globalmente. Redistribuir terras, crédito, insumos e responsabilidades é essencial para evitar o colapso ambiental e proporcionar uma inclusão social real, aquela que vai muito além do simples consumo – que, como já vimos anteriormente, é insuficiente para garantir que a população participe da construção da nossa democracia. 

Organizações ambientais brasileiras fizeram um mapeamento das medidas pró-desmatamento ocorridas durante o desgoverno Bolsonaro e mencionam que o número chega ao menos a 400! Segundo o Observatório do Clima, o novo governo precisaria promover um “Revogaço” no setor, sobretudo no que diz respeito a um conjunto de 80 a 100 dessas medidas, já que a manutenção delas impediria qualquer possibilidade de avanço na reconstrução das nossas políticas ambientais. Uma das principais urgências é reestruturar o CONAMA, Conselho Nacional de Meio Ambiente, desconfigurado pela atual gestão. 

No plano internacional, sabemos que as metas climáticas que seriam necessárias para manter a temperatura abaixo de um ponto absolutamente crítico estão a uma imensa distância de se tornarem realidade. Da Rio 92 para o ano de 2020, o mundo aumentou em 50% as emissões anuais de gases de efeito estufa. E, se é verdade que o aumento da produção de grãos foi bem maior do que isso, chegando quase a dobrar de 1992 até hoje – quando está beirando os 3 bilhões de toneladas anuais –, a “riqueza” gerada por este aumento não significou a diminuição da fome e da miséria que assola uma boa parte da população do planeta, muito pelo contrário, as desigualdades econômicas vêm aumentando. E também há evidências, como sugere um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Stanford, de que o volume produtivo agrícola, apesar de ter crescido, ficou entre 10 e 40% menor do que teria sido no período mencionado devido às alterações do clima. Além disso, os impactos, que a agricultura convencional vem gerando, no ambiente são sentidos de forma muito diferente pelos habitantes do norte e do sul global, bem como por homens e mulheres.

É aqui que entramos em uma questão espinhosa: quem são os responsáveis e quem são os mais atingidos pelos desequilíbrios ambientais? Ou ainda, quem é que tem que pagar essa conta? Enquanto os países detentores da maior parte do PIB mundial – de longe os maiores geradores de emissões – não assumirem sua dívida com os países mais pobres nesse sentido, tomando as medidas necessárias para interromper a destruição que causam e para financiar as adaptações que todos terão que fazer, não é possível imaginar que a realização de eventos, como as COPs, possam trazer alguma luz no final desse túnel em que mergulhamos. Esse foi um dos pontos fortes do discurso de Lula na COP 27, o que pode ter contribuído para que, nas últimas horas do encontro, as nações participantes concordassem em incluir, entre os encaminhamentos definidos, a criação de um fundo para a reparação de perdas e danos climáticos, destinado apenas aos países considerados particularmente vulneráveis. Como, exatamente, tal fundo iria funcionar e qual seria a data concreta para seu início são questões ainda em aberto, para as quais deveremos ter respostas apenas em 2024. Será que isso significa que, até lá, a elite econômica do planeta vai seguir enriquecendo às custas dos sofrimentos, causados pelos problemas ambientais que ela gera, por parte da população mais pobre?

A captura do debate ambiental e a apresentação de falsas soluções  pelas grandes corporações é outro ponto que merece atenção e foi tema de discussão no webinário Os nexos entre a Cúpula dos Sistemas Alimentares e as Conferências de Biodiversidade e Mudanças Climáticas da ONU, realizado, no último dia 17, pela Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e pela FASE. O encontro debateu temas como governança, multilateralismo e participação social e, segundo André Luzzi, um dos organizadores do evento, trouxe elementos para nortear o governo Lula na política internacional, já que buscou apontar “caminhos para o novo governo consolidar uma política externa com foco na cooperação solidária, na autonomia e na garantia da soberania alimentar dos diferentes povos”. 

Voltando à esfera nacional: há pouco vivemos o Dia Nacional da Consciência Negra – celebrado em 20 de novembro – e é mais do que fundamental explicitar que o povo afrodescendente sofre os danos da crise ambiental com muito mais força do que a população branca. O racismo ambiental é grave e temos que reconhecer que ele existe e agir para combatê-lo. Negros e negras ainda recebem salários bem menores e são vítimas de condições de vida muito mais duras, tendo menos acesso à água, alimentos, moradia, serviços de saúde e educação, o que se traduz em menor possibilidade de lidar com problemas decorrentes dos desequilíbrios ambientais, como secas, enchentes e surtos de doenças, por exemplo. Sem uma política fortemente anti-racista não iremos avançar na reconstrução do país.

Enfim, chegamos à Copa do Mundo, que ocorre em um período do ano bem diferente do que o habitual. A seleção brasileira, que já foi campeã tantas vezes graças ao talento de jogadores negros, está no Qatar para participar dos jogos. Mas será que depois que as cores verde e amarela da nossa bandeira foram tão horrivelmente apropriadas pelo fascismo brasileiro, vamos conseguir vesti-las para torcer nos jogos deste campeonato? A dificuldade fica ainda maior quando sabemos que o país anfitrião, um regime ditatorial, como o que os fascistas daqui sonham em implantar no Brasil, massacrou milhares de trabalhadores nas obras para receber o evento. O que choca ainda mais é que o público que vai acompanhar os jogos no país ficou revoltado, mas não com a violência cometida contra os operários e, sim, com a proibição da venda de cerveja nas imediações dos estádios!

O que fica nítido, neste novembro de 2022, é que, da COP à Copa, a luta que precisamos seguir enfrentando para sobreviver segue sendo a que se dá entre aqueles poucos que vêm enchendo seus bolsos de dinheiro às custas da destruição da natureza e aqueles muitos que formam a multidão de pessoas exploradas por esse sistema insustentável, que não garante nem um prato de comida diário adequado em suas mesas. 

Passado novembro, virá a 15ª reunião da Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CBD), que acontecerá no Canadá, de 7 a 19 de dezembro. Vale lembrar que o financiamento que foi acordado em – e que seria destinado à promoção de medidas concretas para reverter a devastação biológica causada pela sociedade humana nas últimas décadas – ainda não saiu da esfera das “boas intenções”. E tal falta de pressa na liberação de recursos ocorre quando já sabemos que nossa espécie é a responsável pela 6ª extinção em massa da história da Terra.

Que tenhamos força para lutar nessa caminhada pela justiça social e climática até que todos os habitantes do planeta tenham direitos e responsabilidades condizentes com a dignidade e a plenitude da vida. Que aqui, no nosso imenso Brasil, o verde possa voltar para nossas florestas, vestindo nossos territórios nas cinco regiões e nos seis biomas do país. Que ele seja como uma camisa vegetal viva e pulsante, capaz de proteger os nossos solos e renovar as esperanças de um futuro saudável para todxs. 

É para essa vitória que vale a pena torcer!

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