Congresso: Quando o porão transborda
PEC da Anistia, queda-de-braço com o STF, cassação de deputados… Há lógica por trás dos abusos: sustentar impasses institucionais permanentes, o que move as negociatas, e garantir o controle do orçamento público, que financia o poder. 2026 promete ser ainda mais intenso…
Publicado 16/12/2025 às 17:53

A dinâmica da política tende a amortecer conflitos até que eles se tornem materialmente incontornáveis. Nesse percurso, intervêm vários filtros: a voracidade dos pregadores de certezas, o comportamento de torcida, o viés analítico que transforma processo em episódio. Soma-se a isso a ansiedade dos noticiários, que fragmenta o movimento em cenas isoladas e empobrece a leitura do que efetivamente se desloca. Há um ponto, porém, em que os acordos deixam de caber no porão, os bastidores já não absorvem as tensões e o cálculo passa a se impor com mais nitidez. Interesses antes dispersos se aproximam, decisões ganham peso imediato e a engrenagem começa a ranger.
Foi nesse acúmulo que a Câmara decidiu agir concentrando conflitos numa mesma noite. A lógica não era compor ou acomodar, mas escolher onde avançar e onde travar. A sessão que atravessou a madrugada de quarta para quinta foi usada como palco para esse corte: mandatos e cassações empurrados até o limite, outros interrompidos no meio do caminho, outros mantidos em aberto, conforme a correlação de forças e o potencial de dano envolvido.
Naquela sessão, Hugo Motta colocou na mesma cena o julgamento da cassação de Glauber Braga e o desfecho do mandato de Carla Zambelli, assumindo o risco político de fazer andar, de uma vez, conflitos distintos, conectados por um mesmo pano de fundo.
No caso de Glauber, tratava-se de uma encomenda política ligada a Arthur Lira, diretamente atingido pelas denúncias sobre irregularidades no Orçamento Secreto. Poucos dias depois, a Polícia Federal apontou uma ex-assessora sua, funcionária de carreira da Câmara, como operadora das emendas Pix. Zambelli carregava outro passivo: condenada em trânsito em julgado pelo STF, foragida na Itália, mantinha o mandato em desacordo com orientação expressa da Corte.
O caso de Alexandre Ramagem permanecia como pano de fundo sensível dessa articulação. Figura central nas investigações sobre a tentativa de golpe de 2023 e hoje fora do país, Ramagem expõe uma fricção permanente entre STF e Congresso, com implicações que ultrapassam o episódio e alcançam a própria divisão de responsabilidades entre os Poderes.
O desfecho daquela noite explicitou o cálculo em curso. Glauber foi suspenso por seis meses, resultado de uma articulação que envolveu diversos atores — sobretudo do governo federal — e da percepção de seus algozes de que não havia votos suficientes para a cassação. Zambelli foi ungida pelo Congresso, mas teve o mandato encerrado ppr Alexandre Moraes, numa indecisão sem contestação, no rigor da lei. Daí, ao fechar o caso da ex-deputada ítalo-brasileira, o STF deixou um recado aberto para o caso Ramagem. Nesse episódio, Hugo Motta saiu desmoralizado novamente. Tentou conter o dano, desagradou o pai Arthur Lira e revelou os limites da própria autoridade.
Esse encadeamento não se explica apenas por disputas ideológicas ou eleitorais. O eixo que organiza esses movimentos é o interesse de classe estruturado em torno do controle do orçamento público. Trata-se da conversão sistemática de recursos estatais em poder durável: financiamento de bases locais, domínio territorial, ocupação da máquina administrativa, reprodução de mandatos e blindagem de redes. Esse interesse atravessa partidos e instituições e impõe convergências sempre que o acúmulo construído por desvios entra em risco.
Carla Zambelli tornou-se um empecilho. Condenada, foragida e politicamente isolada, seu mandato passou a atrapalhar mais do que proteger. A cassação elimina ruído com custo controlável. Alexandre Ramagem ocupa outro lugar. Ele é um arquivo vivo. Seu percurso conecta tentativa de golpe, cadeia de comando, inteligência estatal e vínculos que ainda irradiam risco. Por isso, seu caso permanece suspenso, administrado, mantido fora do desfecho. O cálculo que orienta essas decisões envolve o volume de informação sensível, as conexões preservadas e o potencial de dano que ainda circula.
É nesse mesmo movimento de hierarquização e contenção seletiva que se insere a PEC da Anistia. Para o Centrão, ela administra o custo Bolsonaro, convertendo um passivo eleitoral instável em moeda de negociação controlável. Para o Parlamento, funciona como mensagem direta ao STF: o teste aberto sobre até onde decisões judiciais podem ser neutralizadas quando passam a incidir sobre o núcleo do poder acumulado. A relatoria de Paulinho da Força e o papel de Michel Temer como fiador de modulações indicam que o movimento responde a cálculo político diante do avanço de investigações sob a relatoria de Flávio Dino.
O caso do Banco Master aprofunda essa leitura porque envolve desvio e captura de recursos do orçamento federal. Trata-se de uma rede já conhecida, mas ainda pouco detalhada em seus mecanismos concretos. O esquema combina operações financeiras, crédito direcionado e garantias públicas com a atuação de mandatos parlamentares, estruturas administrativas e decisões institucionais. O processo ameaça revelar como dinheiro público foi convertido em poder político e privado de forma contínua e pode alcançar nomes graúdos do Parlamento, do sistema financeiro e das instituições. É por isso que o caso exige controle de tempo, de foro e de arena, como no movimento que o levou ao Supremo.
Golpe é golpe e ele segue atuando em ato contínuo. Ele se manifesta na disputa pelo orçamento, na pressão sobre as instituições e na reorganização permanente de regras, tempos e responsabilidades sempre que o poder acumulado é tensionado. A exceção deixa de ser ruptura e passa a integrar o funcionamento ordinário da política.
O acúmulo de recursos públicos capturados, ilegalidades não resolvidas e impasses institucionais deixou marcas reais. Instituições tensionadas, processos truncados, decisões arrancadas pela metade. Nada se encerra porque encerrar implicaria tocar no núcleo do poder construído a partir de orçamento capturado, blindagens cruzadas e chantagem permanente. O processo não se resolve porque sua função é permanecer em curso — e tende a se acirrar à medida que o calendário político avança.
A eleição de 2026 aparece, assim, como vetor dessa intensificação. Quanto mais o orçamento se consolida como centro da disputa e quanto mais as instituições são acionadas como terreno de contenção e ataque, maior a tendência de sobreposição de crises, judicialização estratégica e conflitos mantidos em aberto. Governo, STF, Centrão, o submundo da extrema direita seguem. O calendário eleitoral deixa de organizar o conflito e passa a ser incorporado a ele como momento de ajuste decisivo ou de reinício do ciclo. Faltam 11 meses. Haja porão e haja transbordamento.
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