Ciro Gomes não vê o imperialismo… Só o rancor
Ex-ministro limita-se a analisar os impactos econômicos da agressão de Trump e acusa Lula de fazer campanha para 2026. Nada diz sobre a defesa da soberania nacional. Furta-se a apontar que a desdolarização, como defendem os Brics, é luta geopolítica do século XXI…
Publicado 22/07/2025 às 16:27 - Atualizado 11/08/2025 às 18:24

Título original: O erro de interpretação do Ciro Gomes ao negligenciar o Imperialismo e a luta de classes na atual conjuntura da economia-mundo
Ciro Gomes, notável político, publicou em suas redes sociais (18/07/2025), um pequeno vídeo realizando um balanço sobre a atual conjuntura geopolítica envolvendo os atores Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro, Donald Trump, e seus reflexos para o Brasil. Em linhas gerais, suas reflexões chamam a atenção para o desemprego e a queda do PIB, como consequência das tarifas anunciadas pelo Governo Donald Trump, válidas a partir do dia 01 de agosto de 2025. Para Ciro, a culpa do tarifaço, imposto pelo imperialismo ianque, é do atual presidente Lula que, segundo ele, está utilizando este episódio para a promoção de sua campanha presidencial para 2026. Grosso modo, para o pensamento cirista, o problema é eleitoral, não geopolítico. Tomaremos sua declaração como ponto de partida para reflexões sobre a atual situação do Brasil diante da economia-mundo.
Ciro erra. Pensar que as agressões do imperialismo ianque ao Brasil justificam-se pela polarização entre esquerda e direita é raciocinar com idealismo. Relembremos a perspectiva do historiador Leo Huberman, que em sua obra “A história da riqueza do homem”, pontuou que, historicamente, o que faz com que uma moeda de determinado país possa ser colocada como universal no sistema de pagamento internacional é a posse, via pilhagem, do ouro e da prata. Em suas palavras: “A Espanha foi, no século XVI, talvez o mais rico e poderoso país do mundo. Quando os homens inteligentes de outros países perguntavam a razão disso, julgavam encontrar a resposta nos tesouros que ela recebia das colônias. Ouro e prata. Quanto mais tivesse, tanto mais rico o país seria — o que se aplicava às nações e também às pessoas. O que fazia as rodas do comércio e indústria girarem mais depressa? Ouro e prata. O que permitia ao monarca contratar um exército para combater os inimigos de seu país? Ouro e prata. O que comprava a madeira necessária para fazer navios, ou o cereal para as bocas famintas, ou a lã que vestia o povo? Ouro e prata. O que tornava um país bastante forte para conquistar um país inimigo — que eram os “nervos da guerra”? Ouro e prata. A posse de ouro e prata, portanto, o total de barras que possuísse um país, era o índice de sua riqueza e poder” (Huberman,1980, p. 130).
Embora Huberman (1980), tenha acertado em sua intepretação sobre a relação do ouro com a moeda, ele erra ao colocar a Espanha como maior economia do mundo. Na verdade, concordamos com Arrighi (1996) e Braudel (1987), a economia-mundo ou capitalismo propriamente dito, é organizado, em um primeiro momento, com a racionalização do Estado, em Genova e Veneza, e, por conseguinte, com a expansão mercantil da Holanda, seguido da revolução industrial inglesa até culminar na hegemonia do dólar norte americano: “O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele e o Estado. Em sua primeira grande fase, nas cidades-Estados da Itália, em Veneza, em Gênova, em Florença, e a elite do dinheiro quem detém o poder. Na Holanda, no século XVII, a aristocracia dos Regentes governa no interesse e inclusive de acordo com as diretrizes traçadas pelos homens de negócios, negociantes e administradores de fundos. Na Inglaterra, a revolução de 1688 marca analogamente um advento dos negócios à holandesa. A França está atrasada em mais de um século: e com a revolução de julho de 1830 que a burguesia comercial se instala, enfim, confortavelmente no governo” (Braudel, 1987, p. 43-44).
Dessa forma, foi a posse do ouro, amparada no “credo liberal” do livre mercado, parafraseando o pensamento de Polanyi (2000), que, por exemplo, justificou a hegemonia da libra estrelinha, durante o século XIX, no mercado internacional: “A expansão do sistema de mercado no século XIX foi sinônimo do comércio livre internacional, do mercado de trabalho competitivo e do padrão-ouro – eles formavam um conjunto. Não é de admirar que o liberalismo econômico tenha se transformado numa religião secular, depois que se tornaram evidentes os grandes riscos desse empreendimento” (Ibidem, 2000, p. 179).
Contudo, o que faz o dólar ser a moeda do sistema de pagamento internacional, atualmente? Segundo o acordo de Bretton Woods, ficou estabelecido que o dólar seria esta moeda seguindo o mesmo padrão ouro que os sistemas de pagamentos anteriores. No entanto, a hegemonia dos Estados Unidos rompe com o padrão dólar-ouro e passa a assumir o padrão dólar-dólar.
Trata-se, então, do domínio do capital fictício (Marx, 1982) sobre as demais economias do sistema-mundo; de um capital que, como seus rendimentos e fontes, aparentemente não se vincula realidade material das forças produtivas, mas que, na verdade, só existe porque é seu produto: “Para o economista vulgar que pretende apresentar o capital como fonte autônoma de valor, de criação de valor, essa forma naturalmente e um achado, uma forma na qual a fonte do lucro não é mais reconhecível, e o resultado do processo capitalista – isolado do processo – se reveste de um modo de existência autônomo. Em D – M – D’ a mediação ainda está contida. Em D – D’ temos a forma do capital desprovida de conceito, a inversão e coisificação das relações de produção em sua mais alta potência” (Ibidem, 194-195).
O dinheiro, assim, sobre o capital fictício, aprece como criador de si mesmo sem nexo real com o trabalho socialmente necessário; é o que ocorre atualmente com o dólar. Trata-se de uma forma de controle geopolítico obscurecido pela alienação.
Sobre a hegemonia estadunidense, via globalização financeira, as palavras da saudosa economista Maria da Conceição Tavares são seminais. Diz ela: “O fenômeno da globalização financeira teve origem na ruptura do padrão monetário dólar-ouro (sistema de Bretton Woods) que foi o passo prévio que possibilitou a flutuação cambial e a mobilidade do capital financeiro. Este processo foi acelerado por um conjunto de políticas deliberadas dos EUA, que – a partir da forte reversão da liquidez internacional em sua direção, iniciada em fins de 1979, como resultado da “diplomacia do dólar”– obrigaram o restante do mundo capitalista a liberalizar os fluxos internacionais de capital (a chamada desregulação financeira) e a financiar as crescentes dívidas pública e externa dos Estados Unidos das Américas. A liberalização dos mercados cambiais e financeiros e a elevação de patamar de juros internacional induziram por toda parte à adoção de políticas deflacionistas e inibidoras do crescimento, desorganizando parte da divisão regional do trabalho e provocando o desenraizamento da grande e da pequena indústria de muitos países, freqüentemente deslocadas para áreas com condições momentaneamente mais favoráveis de produção e comercialização. A globalização financeira aumentou prodigiosamente os fluxos de capital financeiro desterritorializados (off-shore), sem registro na contabilidade dos bancos centrais” (Tavares, 2002, p. 24).
Pensamos, portanto, que a disputa pela moeda entre o Sul global, representado pelos BRICS1, contra a diplomacia do dólar, defendido pelos países da OTAN2, coloca-se no centro da discussão. A declaração do presidente Lula a respeito disso é pontual: “Eu acho que o mundo precisa encontrar um jeito de que a nossa relação comercial não precise passar pelo dólar. Quando for com os Estados Unidos, ela passa pelo dólar, mas quando for com a Argentina não precisa passar, quando for com a China não precisa passar, quando for com a Índia não precisa passar. Quando for com a Europa, discute-se em euro. Ninguém determinou que o dólar é a moeda padrão. Em que fórum foi determinado?” (Lula, em discurso republicado pelo jornal UOL, 2025).
A luta política pela moeda, portanto, é a luta geopolítica do século XXI. A luta pela técnica está em vias de ser ganha pela China3, atualmente a maior economia do mundo, combinando metamodo de produção e economia de projetamento (Jabbour; Gabriele, 2021). Trump sabe disso, não à toa é reativo às insinuações dos BRICS para a criação de uma moeda própria: “O Brics queria tentar dominar o dólar, o domínio do dólar, o padrão do dólar. E eu disse: qualquer um que esteja no consórcio de nações do Brics, vamos tarifar vocês em 10%. Eles tiveram uma reunião no dia seguinte, e quase ninguém apareceu. Eles não queriam ser tarifados, é incrível” (Trump, em discurso republicado pelo Jornal O Globo, 2025).
Ciro Gomes desconsidera essa conjuntura geopolítica. Como os autores da teoria sistêmica, Braudel (1987) e Wallerstein (2001), aludiram, a economia-mundo é dividida em Centro, Zonas Intermediárias e Periferia. Ao longo do século XX e até meados do XXI, os Estados Unidos mantiveram-se no Centro dessa economia através do que o geógrafo marxista David Harvey (2004) chama de economia de espoliação, traço do novo imperialismo, onde dialética interior-exterior é traduzida na relação de exploração do outro seja por via de guerras, privatizações ou sanções econômicas.
Contudo, essa hegemonia está sendo contestada, em que pese os limites históricos, pelos países do Sul Global liderados pela China. O Brasil é uma potência regional. Durante os governos Lula e Dilma, por exemplo, via BNDES4, e através de grandes programas como o PAC5 1 e 2 e o IIRSA6, subsidiou-se grandes obras na América Latina – ligando o sinal de alerta dos Estados Unidos – levando, por conseguinte, a queda da presidenta Dilma Roussef em 2016: “Os projetos de grande escala, como as hidrelétricas em construção no Brasil, no Peru e na Bolívia, ou as estradas, ferrovias e portos apresentados pelos governos como obras para o desenvolvimento e a integração nacional e sul-americana, são densos em investimento e, por isso, representam um modelo de intervenção no território, não apenas do Estado, mas também de grandes empresas, nacionais e internacionais” (Castro, 2012, p. 59).
Desse modo, não se pode desconsiderar o papel do imperialismo na luta de classes internas ao Brasil. Os ataques do governo Trump ao governo Lula são tentativas de minar a regionalização do Brasil enquanto potência na América Latina, similarmente ao que fizeram com as instalações nucleares Iranianas, no Oriente Médio.
Mais que isso, são incursões contra o multilateralismo e a influência chinesa na região, que recentemente assinou um acordo, junto ao Brasil, para a construção da Ferrovia entre Pacífico e Atlântico, ratificando o projeto de integração sul-americana, desta vez alicerçada à rota da seda, como estabelece o documento redigido na última cúpula dos BRICS: “Esperamos promover ainda mais o diálogo sobre transportes para atender às demandas de todas as partes interessadas e aprimorar o potencial de transporte dos países do Brics, respeitando, ao mesmo tempo, a soberania e a integridade territorial de todos os estados-membros no âmbito da cooperação em transportes, destacou o documento” (Declaração conjunta republicada pelo jornal Agência Brasil).
Ciro não menciona, mas o serviço que o Bolsonarismo presta aos Estados Unidos é um (des)serviço contra o país e ao mundo. O alinhamento do Brasil com os países do BRICS, buscando novas rotas de comércio, é o que de fato anima a conspiração dos ianques. O bolsonairsmo, pelo alinhamento ideológico, passa a ser, com isso, o catalizador dos interesses da burguesia nacional, e, ao mesmo tempo, do imperialismo dialeticamente a ela vinculado. Trump quer, pela natureza do Imperialismo que só funciona através de relações bilaterais (como no caso EUA-Israel), destruir os mecanismos de governança globais, multilaterais.
Em suma, a atual situação do Brasil vis-à-vis economia-mundo tem reflexos endógenos. As tarifas de Trump, como forma de chantagem ao governo Brasileiro para a anistiar os golpistas do 08 de janeiro, juntamente com o Bolsonaro, acompanham o adensamento interno da luta de classes. Serão dias difíceis, mas que insertaram na agenda política nacional reflexões sobre temas como soberania nacional, capitalismo dependente, imperialismo, luta de classes e multilaterismo.
Como lembra o sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1988), a burguesia brasileira jamais tolerou ou preservou conquistas democráticas. Sob governos eleitos ou golpistas, civis, militares ou mesclado de militares e paisanos, sempre predominou, na história do país, o caráter autoritário do poder burguês: “[…] a verdade é que o autoritarismo predomina ao longo da história do Brasil […]. E subsiste a impressão de território ocupado; de povo conquistado. Subsiste a impressão de que os governantes são conquistadores” (Ianni, 1984, p. 21).
Assim, teremos, nacionalmente e internacionalmente, um cenário conturbado para a democracia brasileira; tentativas de golpes orquestradas pelos ianques; constrangimentos econômicos e diplomáticos; aumento da violência política ou mesmo militares, poderão ser as consequências futuras do país sob ameaça norte americana.
Estamos passando por uma transição histórica onde o Sul Global, nos próximos anos (a China é o exemplo disso), será candidato ao Centro, ao passo que os atlantistas serão rebaixados à condição de periferia. No entanto, essa transição não será realizada sem o constrangimento e a violência dos Estados Unidos, financiando golpes de Estado e guerras – alinhados com a OTAN, quem também têm ameaçado impor tarifas caso o país continue mantendo suas relações comerciais com a Rússia – sobre os demais povos do mundo.
Voltando ao assunto Ciro Gomes. Pensando bem, acreditamos que ele não desconheça essas questões. Ao que parece, o problema é de ordem egocêntrica de uma figura política que quer chegar ao poder a qualquer custo, negligenciando, inclusive, os perigos que a atual conjuntura geopolítica poderá trazer à sociedade brasileira.
Referências bibliográficas
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São Paulo: UNESP. 1996.
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BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
CASTRO, Edna. Expansão da fronteira, megaprojetos de infraestrutura e integração sul-americana. Caderno CRH, v. 25, p. 45-62, 2012.
UOL. BRICS Brasil/Lula: (uso de moeda local) não tem volta; vai acontecendo até se consolidar. Link para acesso: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2025/07/07/brics-brasillula-uso-de-moeda-local-nao-tem-volta-vai-acontecendo-ate-se-consolidar.htm. Acesso em 19 jul. 2025.
MARX, Karl; FERNANDES, Florestan. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins fontes, 1982.
TAVARES, Maria da Conceicao. Globalização e estado nacional. La Globalización Económico Financiera. Su impacto en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2002.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. ed. 16. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.
WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: contraponto, 2001.
JABBOUR, Elias; GABRIELE, Alberto. China: o socialismo do século XXI. Boitempo Editorial, 2021.
O GLOBO. Trump diz que o Brics vai ‘acabar rapidamente’. Link para acesso: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/07/18/trump-diz-que-o-brics-vai-acabar-rapidamente.ghtml. Acesso em 19 jul. 2025.
HARVEY, David. O Novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
IANNI, Octavio. O ciclo da revolução burguesa. Petrópolis: Vozes, 1984.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. ed. 2. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
Dados dos autores:
Marlon Kauã Silva Cardoso é doutorando, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA; formado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Madson José Nascimento Quaresma é doutorando em Geografia pela Universidade do estado do Rio de Janeiro – UERJ; mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2016) Possui Graduação em Geografia (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2013). É professor de Geografia da Universidade do Estado do Pará – UEPA.
Notas:
1 Acrônimo para Brasil, Rússia, índia, China e África do Sul, as cinco maiores economias emergentes do mundo e fundadoras da organização multilateral BRICS.
2 Organização do Tratado do Atlântico Norte.
3 Não acreditamos em uma vitória da economia Chinesa, nesse campo, porque embora ela tenha superado os Estados Unidos em modo de produção e tecnologias de transporte e informação, ainda falta a ela as tecnologias de energia. Os Estados Unidos ainda controlam os hidrocarbonatos, matérias primas para os combustíveis, gasolina e gás natural. Talvez a China mude esse cenário com o controle do lítio, matéria prima para baterias de íons de lítio, para a produção de chips de uso dual, civil/militar, que atualmente estão sobre o controle norte americano.
4 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
5 Programa de Aceleração do Crescimento.
6 Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana.
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