A cadeirada

Quando um gesto de revolta ganha mais centralidade que as políticas dos candidatos, é preciso examinar a crise da democracia liberal. E lembrar que o embate se deu entre um representante da mídia tradicional e outro das digitais. O discurso político persiste, na era dos memes?

.

Desde que ocorreu o maior acontecimento político das eleições municipais de 2024, ao menos até aqui (talvez possam acontecer piores), não é fácil esboçar uma reflexão mais acurada sobre a cadeirada de Datena em Marçal. Uma vez que o nível de excitação provocado pelo acontecimento na TV Cultura (irônico que tenha acontecido numa tv com esse nome) atingiu um nível de densidade política singular.

Prova disso foram as aceleradas análises feitas ao episódio, quase que em simultâneo ao acontecido. Análises tão apressadas quanto os memes frenéticos que se seguem até agora, retroalimentando o nível da excitação midiática.

Tais análises não somente se seguirão na mesma velocidade excitativa dos memes quanto se apresentaram com as características deles: instantaneidade, adequação à lógica do entretenimento banal e pitadas de riso fácil. Tais elementos são mais caricatos entre a esquerda analógica que ainda não se decidiu se adere completamente à lógica do entretenimento banal das redes digitais. E quando adere, abandona completamente a capacidade crítica.

Longe das miopias que enxergam no virtual um prolongamento das mídias analógicas e um pouco afastado das excitações das redes, duas questões passam até agora desapercebidas.

A primeira delas: a centralidade que a cadeira, e não os candidatos tiveram em grande parte dos memes. Ela, a cadeira, teve direito à memes próprios. Protagonista, quase roubou a cena daquele que bateu e do outro que quase apanhou. Na era das redes digitais, cada vez mais as coisas, isto é, os objetos mais inanimados, ganham características daquilo que antes, estava atrelado à subjetividade. Características dos sujeitos e não dos objetos.

A cadeira passou a denotar sentimentos, desejos, protagonizando um discurso narrativo como se “alguém fosse”. Tanto que eram incontáveis os memes daqueles que se diziam representados pela cadeira. No mundo político das redes virtuais não mais se trata de pessoas representando pessoas, mas sim de coisas tomando o lugar de pessoas.

E como estamos operando no campo das imagens políticas, disso resulta a completa redução dos cidadãos eleitores à usuários de redes sociais. Não mais sujeitos de direitos, mas propagadores de imagens e consumidores de memes, avatars, emojis e reels. Uma vez que os políticos são digitais influencers, eles não se dirigem mais à eleitores, mas à seguidores. É o sucesso nas redes que garante o sucesso político.

Disso resulta mais um dos elementos de exaustão das democracias liberais, que foram gestadas na época das formas tracionais de comunicação política (discursos, jornais impressos e panfletos), depois as mídias analógicas (TVs, rádios) que ainda comportavam aspectos da comunicação tradicional. Uma vez, porém, chegada a era das redes virtuais e da internet, que não comporta mais nenhum resquício das formas da comunicação política anteriores, as democracias liberais se deparam com algo completamente estranho ao seu modus operandi e elementos constituintes. O que pode um discurso político frente um meme?

A política das redes digitais, chamada de nova política, é, sob um certo ângulo, o fim da política. Tanto da concepção clássica, quanto da concepção liberal moderna, das quais éramos herdeiros. Não esqueça nosso leitor, a comunicação nazifascista ainda comportava formas de comunicação do modo clássico e tradicional da política. Hitler discursava por horas e Mussolini foi um jornalista político, posição que facilitou sua ascensão perversa.

O novo lugar comunicativo para o qual as redes digitais nos levou (mesmo os low profile estão submetidos a ela, pois é a forma da comunicação cotidiana), não é possível de ser compreendido tendo como parâmetro o fascismo histórico. As novas formas são mais que hegemônicas e totalitárias. As categorias e conceitos que as façam serem adequadamente compreendidas ainda não foram criados.

Daí a segunda questão que passa desapercebida até agora sobre o caso da cadeirada. Datena provém do mundo das mídias analógicas, ele não é indivíduo comunicativo nato das redes virtuais. Ele é o apresentador popularesco, como muitos que já se alçaram no mundo da política, por fazerem de si mesmos uma imagem televisa (não à toa o seu jargão: “joga na tela, me dá imagens!”).

Não é sintomático que um apresentador de tv dê uma cadeirada numa figura nata do das mídias virtuais? Um advindo das redes analógicas, o outro a figura mais estapafúrdia das redes: o coach. Já não temos mais a figura do gestor, como foi o caso ridículo de João Dória, não por coincidência, começou sua carreira de “gestor político” na prefeitura de São Paulo. Tampouco, as figuras rocambolescas de “folclóricos” e “carismáticos” apresentadores de TV, ou donos de grandes corporações midiáticas, que sempre se anunciavam como não políticos – Berlusconi, ocaso de maior sucesso desses tipos. Ademais, estratégia que Bolsonaro adotou, mesmo não sendo nem apresentador de TV, nem indivíduo nato das redes digitais. Negar a política, para pervertê-la, é uma estratégia típica do fascismo histórico.

Agora, se têm não apenas o puro suco do não político, mas o sintoma mais agudo do fim da política. Até onde isso nos levará? Não dá para ter certeza, mas até o naufrágio completo, novos memes repetitivos iram nos divertir e excitar, pois completamente excitados, se perceberá o naufrágio depois que ele tiver ocorrido.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *