SP: Por que a direita tornou-se forte na periferia
A partir de entrevistas com lideranças de Heliópolis, estudo mostra as dinâmicas territoriais para o voto conservador em 2024. Abuso de poder econômico, alianças com o crime, instrumentalização de associações comunitárias e a deserção da esquerda são os principais fatores
Publicado 10/02/2025 às 16:33 - Atualizado 10/02/2025 às 16:35
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Este texto foi publicado no número 2 do volume 10 da Revista Rosa, parceira editorial de Outras Palavras
Análises correntes das eleições no município de São Paulo em outubro de 2024 enfatizaram alguns elementos que tornam as características daquele pleito de especial interesse para a compreensão da atual cena política brasileira e dos desafios postos às forças de esquerda, sobretudo para o período subsequente, que culminará na corrida presidencial de 2026. Em uma eleição marcada por particularismos locais, a capital paulista se revelou, novamente, uma das poucas cidades em que se pôde observar elementos de nacionalização, e ainda trouxe aquela que talvez tenha sido a maior novidade eleitoral do país, o fenômeno Pablo Marçal.1
Diante desse contexto, a dinâmica da disputa pelo voto nos territórios populares merece uma atenção especial pelas forças progressistas. O ponto de partida é a pesquisa de campo que realizei entre 2010 e 2016 na maior favela da cidade, Heliópolis.2 Recupero aqui algumas das importantes características da disputa local por votos, sobretudo aquela relacionada à atuação de associações de base comunitária. Serão contrastados resultados das eleições de 2014, que acompanhei de perto, com as de 2024. Também entrevistei cinco importantes lideranças populares de São Paulo, com foco na campanha realizada por elas neste ano em Heliópolis e algumas outras comunidades da região Sudeste da cidade. Os nomes serão mantidos em sigilo, sobretudo pela menção ao crime organizado, como será exposto adiante.
A proposta é oferecer algumas pistas sobre os desafios postos às forças de esquerda no que se refere à disputa por votos entre as classes populares. A meu ver, sete teses explicam a ascensão de Marçal e a vitória de Ricardo Nunes (MDB):
- o montante e a influência sem precedentes do poder monetário das candidaturas na disputa pelo voto;
- a atuação mais incisiva do crime organizado no pleito;
- a atuação da máquina pública, tanto pela articulação entre pessoas que ocupam órgãos administrativos locais e candidaturas, quanto pela omissão da Justiça Eleitoral em coibir crimes cometidos;
- o conservadorismo em relação a costumes;
- a combinação ideológica de individualismo exacerbado, concorrência, competitividade e empreendedorismo;
- a atuação das igrejas;
- e a importância das redes sociais.
O território em foco
Heliópolis é a maior favela de São Paulo, com cerca de 150 mil habitantes, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde. Está localizada no Sacomã, região Sudeste de São Paulo, e possui área de aproximadamente 1,2 milhão de m2. A renda familiar média per capita em 2016 era de R$ 479,85, o que correspondia a 54,52% de um salário-mínimo.3 É possível afirmar que o território é composto fundamentalmente por trabalhadores pobres desempregados ou inseridos de forma “marginal” nas relações produtivas:4 trabalhadores/as domésticos/as, ambulantes, mecânicos/as, pintores/as, cozinheiros/as e entregadores/as, dentre outras. A maioria da população pode ser categorizada como “subproletariado”,5 que corresponde à fração das classes trabalhadoras que oferece “sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”6.
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A principal associação de moradores é a União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS), que atende diretamente, por cerca de cinquenta projetos sociais, mais de 6 mil pessoas. A maior parte dos projetos são resultado de convênios com a Prefeitura de São Paulo para oferta de serviços de educação e assistência social. A UNAS também organiza movimentos de base, como de moradia e mulheres. A maioria das lideranças possui vínculo com o Partido dos Trabalhadores (PT) e realiza campanha, desde os anos 1980, para candidaturas do partido. Além da UNAS, merecem destaque outras três entidades de atuação no território: a Associação Nova Heliópolis, que reúne lideranças que em todos os pleitos desde os anos 1990 apoiaram o PT; o Movimento Sem Teto do Ipiranga (MSTI), que atua na região desde 2012, atende diretamente cerca de 7 mil famílias e é composto por lideranças que possuem relações com partidos de direita, tendo realizado campanha neste ano para Ricardo Nunes (MDB) prefeito e Nunes Peixeiro (MDB) vereador; e a Central Única das Favelas (CUFA), de atuação mais recente, vinculada sobretudo à distribuição de cestas básicas durante a pandemia. Não foi possível, no âmbito desta pesquisa, identificar a vinculação política de lideranças locais da CUFA, pois as pessoas entrevistadas falaram apenas genericamente que “estão com a direita”, sem estabelecimento de relação específica com algum partido ou candidatura. O candidato Pablo Marçal obteve apoio local de apenas uma liderança de pouca expressão, mas com um traço significativo: está ligada a comerciantes locais.
Direita, volver: dados de 2014 e 2024 e a disputa por votos na favela
Em 2014, realizei levantamento dos resultados eleitorais nos principais locais de votação dos moradores de Heliópolis. Aqui, destaco o mais importante deles, a E.M.P.G. Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (cor roxa no mapa), que está na Estrada das Lágrimas, em um ponto central de Heliópolis.
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As tabelas a seguir trazem os resultados eleitorais para cargos majoritários daquelas eleições das três principais candidaturas das corridas para presidência da República, Governo de São Paulo e Senado de São Paulo, no primeiro turno. A zona 260 corresponde ao Ipiranga, bairro de alta renda de São Paulo, onde Heliópolis está inserida. Apresento também os resultados das três principais candidaturas a prefeito em 2024.
2014 — 1º Turno das eleições7
EMPG Luiz Gonzaga | % | Zona 260 | % | São Paulo | % | Est. São Paulo | % | Brasil | % | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Presidente | 4341 | 100,00% | 131.069 | 100 | 6.228.510 | 100 | 22.980.372 | 100 | 104.023.802 | 100 |
Dilma | 2098 | 48,33% | 30.716 | 23,43 | 1.623.130 | 26,06 | 5.930.661 | 25,81 | 43.267.668 | 41,59 |
Marina | 1257 | 28,96% | 28.910 | 22,06 | 1.490.321 | 23,93 | 5.765.598 | 25,09 | 22.176.619 | 21,32 |
Aécio | 937 | 21,58% | 64.603 | 49,29 | 2.722.869 | 43,72 | 10.165.921 | 44,24 | 34.897.211 | 33,55 |
Senador | 3693 | 100,00% | 109.402 | 100 | 5.079.400 | 100 | 19.174.679 | 100 | ||
Suplicy | 2044 | 55,35% | 37.102 | 33,91 | 2.015.734 | 39,68 | 6.176.499 | 32,21 | ||
Serra | 1139 | 30,84% | 59.706 | 54,57 | 2.523.971 | 49,69 | 11.105.874 | 57,92 | ||
Kassab | 273 | 7,39% | 7.234 | 6,61 | 285.381 | 5,62 | 1.128.582 | 5,89 | ||
Governador | 4090 | 100,00% | 122.772 | 100 | 5.752.107 | 100 | 21.341.222 | 100 | ||
Padilha | 1669 | 40,81% | 22.978 | 18,72 | 1.277.310 | 22,21 | 3.888.584 | 18,22 | ||
Alckmin | 1519 | 37,14% | 67.526 | 55 | 2.987.160 | 51,93 | 12.230.807 | 57,31 | ||
Skaf | 822 | 20,10% | 27.787 | 22,63 | 1.230.658 | 21,39 | 4.594.708 | 21,53 |
2024 — 1º Turno das eleições para prefeitura de São Paulo
EMPG Luiz Gonzaga | Zona 260 | Mun. São Paulo | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Total | % | Total | % | Total | % | |
Votos | 3491 | 100 | 130.909 | 100 | ||
Boulos | 1054 | 30 | 31.628 | 26.39 | 1.776.127 | 29.07 |
Nunes | 1143 | 33 | 36.827 | 30.73 | 1.801.139 | 29.48 |
Marçal | 938 | 27 | 34.776 | 29.02 | 1.719.274 | 28.14 |
Em 2014, houve diferenças significativas nos percentuais de votos entre candidaturas de esquerda e direita nas diferentes regiões levantadas: Heliópolis (EMEF Luiz Gonzaga do Nascimento Jr.), Ipiranga, cidade de São Paulo e estado de São Paulo. Na corrida presidencial, Dilma Rousseff (PT) obteve votação proporcional em Heliópolis muito superior ao verificado no Ipiranga, na cidade de São Paulo, no estado e no Brasil. Em contraposição, Aécio Neves (PSDB) teve desempenho inverso, a ponto de se situar em terceiro lugar em Heliópolis e obter sua maior vantagem, justamente, no Ipiranga, subprefeitura em que Heliópolis está localizada. Parte da explicação está na relação entre comportamento eleitoral e classe social, o que remonta à tese de Singer referente ao deslocamento eleitoral do subproletariado em favor de Lula e Dilma Rousseff,8 pois o Ipiranga como um todo possui renda per capita muito superior à de Heliópolis, chegando a cerca de R$ 4.500,00, de acordo com a subprefeitura local.
No entanto, essa é uma explicação parcial, dado que, no pleito de 2014, regiões periféricas da cidade de São Paulo, com renda per capita próxima a de Heliópolis, tiveram vitória de Aécio Neves no primeiro turno. Um exemplo foi a Vila Prudente, bairro próximo de Heliópolis, com renda média de R$ 1.345,63. Lá, a Zona Eleitoral é a 257, e o tucano venceria as eleições em primeiro turno, com 55,82% dos votos, ante apenas 18,14% de Dilma Rousseff no primeiro turno. Esse fato, somado à diferença substantiva de votos entre Dilma e Aécio em Heliópolis, permite acrescentar outro fator central na dinâmica de comportamento eleitoral: a relação entre voto e atuação de associações de base comunitária. A campanha realizada por integrantes da UNAS e da Associação Nova Heliópolis resultou concretamente em uma votação expressiva para Dilma, e a dinâmica de disputa por esse tipo de apoio é componente fundamental para análise de comportamento eleitoral.
Os resultados das eleições para governo do estado de São Paulo e Senado reforçam essa hipótese, na medida em que as candidaturas apoiadas por lideranças da UNAS e da Associação Nova Heliópolis obtiveram no local votação significativamente superior ante as demais regiões. Assim como verificado em relação às eleições presidenciais, o desempenho petista nas eleições de 2014 para governo do estado foi muito inferior ao de Heliópolis em regiões com renda per capita semelhante. Na Zona Eleitoral 257 — Vila Prudente — Padilha obteve apenas 14,14%, atrás de Skaf, com 22,38%, e Alckmin, com 59,83%. Em redutos em que tradicionalmente o PT é vitorioso, como na Zona Eleitoral 373 — Capão Redondo — o resultado foi mais próximo ao de Heliópolis, mas ainda assim menor (sete pontos percentuais a menos). Lá, Padilha obteve 30,87% dos votos; Skaf, 20,13%; e Alckmin, 44,85%.
Dez anos depois, ainda que devamos relativizar os dados, sobretudo por se tratar de dinâmicas eleitorais distintas — pleito nacional × pleito municipal —, é possível inferir que o quadro teve alteração substantiva. Ao contrário de 2014, a candidatura de direita em 2024 venceu em Heliópolis, no local de votação em que, tradicionalmente, os postulantes de esquerda apresentam melhor resultado. A diferença entre um pleito e outro não é pequena: na EMEF Luiz Gonzaga, Dilma esteve muito próxima dos 50%, Suplicy ultrapassou a metade dos votos, e Padilha teve desempenho abaixo, por ser menos conhecido, mas ainda assim significativamente melhor na comparação com os demais níveis de votação.
Em 2024, Boulos se saiu melhor em Heliópolis se comparado com o que obteve na cidade como um todo e no Ipiranga, mas por pouca diferença. As candidaturas de direita e extrema direita alcançaram ampla vantagem se somadas, e individualmente lograram equalizar uma disputa com a esquerda em território tradicionalmente adverso. Os resultados revelam significativo avanço das forças à direita no espectro político, de modo que a dinâmica local de disputa por voto merece análise mais detalhada para compreender o pleito como um todo.
Conforme adiantado no início, as razões desse deslocamento eleitoral, para além de remontarem a dinâmicas gerais das eleições — tais como o efeito Marçal, mudanças conjunturais de maior alcance, sobretudo as relacionadas a inflexões ideológicas pós 2014, e o declínio das esquerdas —, também estão fundadas nas dinâmicas propriamente territoriais, como a atuação de entidades associativas, o peso do poder econômico na disputa do voto e o comportamento dos entes públicos e do crime organizado.
Sete teses sobre a disputa territorial por votos em 2024
As hipóteses aqui formuladas seguem de perto o que levantei em cinco entrevistas com lideranças locais, identificadas pela letra L acompanhada pelos números de 1 a 5, como forma de diferenciar as falas. O ponto de partida é a tese de que, na disputa por voto em territórios populares, para além da dinâmica geral que envolve posição na estrutura e comportamento eleitoral, é significativa a influência da atuação de entidades de base comunitária.9
O candidato à reeleição Ricardo Nunes (MDB), ao contrário das candidaturas de direita no pleito de 2014, contou em Heliópolis e região com apoio significativo de lideranças ligadas ao MSTI e a outras entidades locais, de modo que seu desempenho, em parte, pode ser explicado por isso. “Hoje a periferia da cidade de São Paulo está sob controle de igrejas, do crime organizado e de associações ligadas a grupos de direita. São locais conflagrados por uma espécie de teia que envolve mercado informal de terras e agiotagem, por exemplo” (L1, em entrevista).
No processo eleitoral, explicam as pessoas entrevistadas, esses diferentes atores têm confluído para o apoio a candidaturas de direita e extrema direita. No caso de Heliópolis em 2024, as candidaturas que se beneficiaram disso foram, sobretudo, de Nunes para prefeito e Nunes Peixeiro (MDB) para vereador. “A associação comunitária contribui com uma série de serviços, como convênios com a prefeitura. Houve muita distribuição de marmitas, organização de churrascos, cesta básica, remédio e encaminhamento para tratamento de saúde, apoio para enterro de ente, reforma de moradia. Teve de tudo” (L1 em entrevista). Para além da oferta, houve ameaças de interrupção de serviços de assistência em caso de vitória da esquerda. “Uma associação aqui possui um convênio com o governo federal para manter a cozinha comunitária e distribuir marmitas. É um convênio que conquistaram no governo Lula. E na campanha foi dito aos beneficiários que se o Boulos ganhasse isso seria cortado” (L2, em entrevista).
A relação assistencial é também apoiada pela subprefeitura local e diferentes equipamentos públicos, como o Centro Educacional Unificado (CEU) Heliópolis. Somam-se a isso as emendas parlamentares que garantem a realização de eventos e reformas de equipamentos públicos, dentre outras ações, e a construção ou manutenção de equipamentos como quadras de futebol e centros comunitários. “E ainda tem o baile funk, com forte participação do crime organizado. Quem se aproxima deles são vereadores de extrema direita. Eles garantem estrutura, pagam artistas, e a gente passa completamente ao largo disso” (L3, em entrevista). “Eles organizam, por exemplo, uma festa do motoqueiro, que traz muita gente. É atividade permanente” (L1, em entrevista). Essa teia associativa, dizem as lideranças, bloqueia a entrada de grupos de esquerda no cotidiano vivido nos territórios populares.
Todas as pessoas entrevistadas enfatizaram como outro fator fundamental a quantidade de dinheiro de que as candidaturas de direita dispunham para fazer campanha. “Houve todo tipo de compra de voto, ruas inteiras, casa a casa, com pessoas pagas para distribuir panfletos. Foi uma forma de comprar cada voto, além da boca de urna” (L4, em entrevista). A isso se soma a omissão da Justiça Eleitoral em coibir práticas criminosas e uma atuação conjugada de funcionários de equipamentos públicos em favor da candidatura de Nunes. “Nas últimas eleições [2022] havia preocupação em estar de acordo com as regras, por exemplo, na questão da propaganda. Este ano não, correu tudo solto. Tinha muito dinheiro, e valia tudo. Não teve Justiça Eleitoral para dar jeito na compra de votos e na distribuição de coisas e churrascos, tinha carro de som o dia inteiro, em todas as ruas, muita coisa” (L4, em entrevista). Ela acrescenta que “a máquina da prefeitura veio trabalhando junto, tanto com muitas obras no ano eleitoral, quanto com promessas de documentação da casa, regularização fundiária, numa articulação entre entidade local e poder público” (L4, em entrevista).
Ao poder financeiro, ao comportamento da máquina pública e à atuação de entidades locais soma-se um quarto fator: o crime organizado. Para além da já mencionada articulação entre propaganda eleitoral e organização de eventos, como o baile funk, há uma relação entre controle do território por forças ligadas ao tráfico e realização de campanha. “Vamos supor que o crime organizado tenha o controle de uma rua X. Se o candidato ou mesmo a liderança quer fazer campanha lá, ele negocia: vale tanto. Há um comércio ligado a isso. E quem tem dinheiro é a direita, né?” (L3, em entrevista). As pessoas entrevistadas disseram que, em Heliópolis, ainda conseguiram fazer campanha sem serem obrigadas a negociar com o crime. No entanto, nestas eleições, pela primeira vez se viram impedidas de entrar em determinados locais na região Sudeste da cidade.
Tem uma favela em que faço campanha desde os anos 1980, sempre entrei lá. Num domingo de manhã, cheguei lá para distribuir panfleto e veio um jovem: “não é para entrar aqui na favela fazendo campanha”. Olhei em volta e tava cheio de placa de um candidato da direita, e falei: “ué, está cheio de cartaz aí”. O cara apontou o dedo como se fosse uma arma para a minha cabeça, e disse: “mano, você não está vendo, não tá entendendo aqui que é o tráfico que manda? Você não vai fazer campanha aqui”. Argumentei que vou lá sempre, há décadas, e que ele não me impediria. As mulheres que estavam comigo ficaram morrendo de medo. Mas falei: “cara, sou do movimento de moradia, sempre vim aqui”. E nesse momento, vi que ele deu uma amolecida, acho que deve ter tido algum conhecido ou familiar do movimento. Ele respondeu: ‘é o chefe que falou que não dá pra fazer, né? Mas pode distribuir panfleto então, só não usa carro de som”. E consegui entrar. Mas só porque atuo na região desde os anos 1980. Acho que isso aconteceu na cidade inteira. E eu nunca tinha passado por isso, dois anos atrás não foi assim. Foi a primeira vez
(L1, em entrevista).
Assim, ressalta-se que houve uma atuação mais incisiva do crime organizado na disputa eleitoral, com características sem precedentes na cidade de São Paulo. Compõem o cenário ainda outros quatro fatores já comumente apontados em análises gerais sobre a ascensão da extrema direita no país desde 2016: o neoconservadorismo;10 um enraizamento ideológico de valores como o individualismo exacerbado, concorrência, competitividade e o empreendedorismo; a atuação das igrejas evangélicas e católica e a importância das redes sociais. Em relação à religião, aponta-se a presença de pastores no cotidiano vivido das pessoas, em atuação semelhante às descritas acima das entidades associativas. Além disso, houve inflexão no território da posição política da Igreja Católica: “a Paróquia Santa Edwiges era lugar em que fazíamos formação política. Hoje, o padre lá faz campanha para a direita. Para fora da nossa associação, hoje todos os espaços estão tomados pela direita” (L4, em entrevista).
No que se refere à última tese, a ênfase dada pelas lideranças é à dificuldade de se contrapor ao que circula nos meios digitais em favor da extrema direita. “Conversamos com as pessoas que frequentam a associação, uma ou no máximo duas vezes por semana. Enquanto isso, as propagandas e informações de todo tipo estão lá chegando no celular. E quem chega é a direita, não a esquerda. Então, antes, a gente conseguia formar, a gente era referência, hoje a impressão é que ninguém nem ouve o que a gente fala” (L5, em entrevista).
Além disso, uma favela como a de Heliópolis, em região valorizada da cidade, não é mais considerada de extrema vulnerabilidade, o que significa mudança de perfil populacional. “Lá tem um comércio forte, casa de aluguel, pessoas com renda um pouco maior, não é miserável. As pessoas têm carro, moto, e passaram por uma certa ascensão dentro do território. Essas pessoas foram capturadas pelo princípio da meritocracia, da prosperidade e da competitividade que a gente não consegue dialogar” (L1, em entrevista). A isso se soma o conservadorismo vinculado aos discursos das lideranças religiosas católicas e evangélicas, em pautas como aborto e sexualidade. “E isso tudo circula com muita força e com muita energia nos grupos de Whatsapp do bolsonarismo. As pessoas são convencidas de que essa agenda é mais correta para a vida delas, e não conseguimos nos contrapor” (L1, em entrevista).
Estes últimos fatores tiveram maior projeção na candidatura do Marçal, que não dispunha de instrumento organizativo de base comunitária para adentrar no território. A expressiva votação que obteve se deu, de acordo com as pessoas ouvidas, pelo enraizamento ideológico dos valores que ele propagava sobretudo entre homens jovens, que acessaram os conteúdos e tomaram conhecimento do candidato por meios digitais. Entendo que o desempenho de Marçal em Heliópolis, se comparado a Nunes, corrobora a importância da primeira tese aqui defendida: talvez, se o primeiro dispusesse de estrutura associativa, o resultado do pleito em São Paulo seria outro, de modo que a disputa pela orientação das lideranças locais poderá ser decisiva na corrida para 2026.
Considerações finais
As lideranças entrevistadas demonstraram um estado de melancolia, por não vislumbrarem formas de saída dos impasses vividos e de construção, ao menos no curto prazo, de outros futuros possíveis. Há forte sensação de impotência e um temor de aprofundamento dos efeitos de cada um desses fatores nas dinâmicas eleitorais futuras. Predomina a avaliação de que as esquerdas possuem uma militância envelhecida, que não dispõe de instrumentos organizativos e de agitação e propaganda condizentes com as dinâmicas políticas contemporâneas dos territórios populares, e que ainda padecem de significativas divisões de classe em seu interior. As instâncias partidárias são controladas por setores médios e abastados, que não se dispõem a realizar um trabalho cotidiano militante em locais como Heliópolis.
Assim, passado o pleito municipal, segue o baile funk, a festa dos motoqueiros, os cultos e missas, a distribuição de alimentos e produtos variados de interesse imediato da população e a disseminação massiva de conteúdo ideológico e fake news pelas redes sociais, dentre outras formas de atuação da direita e da extrema direita. O contraponto à esquerda existe: duas associações que também realizam trabalho permanente no território. Mas isso, que já garantiu importantes vitórias eleitorais no passado, não parece ser mais suficiente, ainda que siga sendo de grande importância. O desafio é ir além: construir um programa político e uma estratégia de disputa de poder que responda a cada uma das hipóteses aqui levantadas sobre a vitória eleitoral da direita na periferia de São Paulo.
Notas
- SINGER, A.V. Bolsonarismo Shrek. Revista Piauí, n. 218, nov. 2024 Ver em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/como-as-urnas-afetaram-as-coalizoes-que-devem-se-enfrentar-em-2026/ ↺
- SILVA, H. F. R. A conformação de forças sociais e políticas e sua relação com a disputa entre projetos políticos: um estudo de caso em Heliópolis. Tese (doutorado em Ciência Política), Unicamp, Campinas, 2016. ↺
- SILVA, H. F. R. A conformação de forças sociais e políticas e sua relação com a disputa entre projetos políticos: um estudo de caso em Heliópolis. Tese (doutorado em Ciência Política), Unicamp, Campinas, 2016. ↺
- KOWARICK, L. Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. ↺
- SINGER, P. Dominação e desigualdade. Estrutura de classe e repartição da renda no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981 e SINGER, A. V. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Cia. das Letras, 2012. ↺
- SINGER, A. V. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Cia. das Letras, 2012, p. 22. ↺
- Os dados foram consultados em https://resultados.tse.jus.br/oficial/app/index.html#/eleicao;e=e619;uf=sp;mu=71072;tipo=3/dados-de-urna/boletim-de-urna. No referido local de votação, há 13 seções eleitorais. Para chegar a esses números apresentados, foram consultados todos os boletins de urna e realizada a soma dos votos. ↺
- SINGER, A. V. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo, Cia. das Letras, 2012. ↺
- Silva, 2016. ↺
- LACERDA, M. B. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019. ↺