SP: O Auditório Ibirapuera agora é para poucos

Inaugurado em 2005, ele tornou-se importante palco de democratização da cultura. Mas com a privatização do parque, em 2020, foi aparelhado pelo setor privado. Hoje, quase toda sua agenda resume-se a eventos empresariais. E a Escola de Música está sendo sucateada

Foto: Ricardo K K/Wikipedia
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No último dia 18 de agosto, milhares de pessoas tiveram a oportunidade de assistir ao espetáculo de Fernanda Montenegro no Auditório Ibirapuera, dentro do parque Ibirapuera, em São Paulo. O evento, gratuito, teve ingressos disputadíssimos e foi patrocinado pelo Banco Itaú. A força do acontecimento teatral suplantou o evento publicitário, mas não deixou de evidenciar a dura realidade vivida por um dos espaços culturais mais importantes da cidade.

A bem da verdade, o Auditório Ibirapuera agoniza e assiste, silenciosamente, ao seu triste fim. Atualmente, o cidadão comum interessado em acompanhar uma programação cultural regular em seu auditório de 800 lugares, ou até mesmo em conhecer o interior do edifício modernista projetado por Oscar Niemeyer, terá muita dificuldade .

Inaugurado em 2005, o Auditório se constituiu como importante palco de democratização da música e de formação de público, oferecendo espetáculos a preços acessíveis, de variados gêneros, e abrigando um centro de formação musical para alunos de escola pública, a Escola de Música do Auditório. Ali, era possível assistir desde concertos de orquestras gabaritadas, de nível nacional e internacional, até artistas consagrados e emergentes da música popular. Outras linguagens também tiveram espaço, acolhendo, inclusive, importantes mostras de cinema, dança e teatro. Além disso, sua escola de música formou três grupos musicais, a Orquestra Furiosa, a Orquestra Brasileira do Auditório e a Obinha.

Parte disso, é possível dizer, coube ao trabalho desempenhado pelo Itaú Cultural na gestão do equipamento, entre 2011 e 2019, cuja programação primou pela diversidade representativa da vibrante cena paulistana. Esse trabalho fez com que o Auditório fosse considerado uma das melhores casas de show da cidade.

Tudo isso chegou ao fim com a concessão do Parque Ibirapuera para a empresa Urbia Gestão de Parques, a partir de dezembro de 2019. A Urbia faz parte do Grupo Construcap, uma das maiores construtoras do país, liderada pelo empresário Roberto Capobianco, condenado pela operação Lava Jato. Apesar de o próprio perfil no Instagram da entidade exaltar que o Auditório seja “um dos principais equipamentos culturais da capital paulista”, será difícil encontrar alguma programação cultural realizada por lá.

Isso porque a empresa optou por dar outra funcionalidade ao Auditório, que, desde então, passou a ser destinado para a realização de eventos de caráter privado. A partir da análise dos relatórios trimestrais de operação e gestão do Parque, fizemos um levantamento de todos os eventos realizados no espaço. Entre novembro de 2020 e dezembro de 2023, foram realizados 98 eventos, considerando a área interna – que compreende o teatro e o foyer – e a área externa do Auditório.

Em 2021, ainda no contexto da pandemia de covid-19, foram realizados 26 eventos na área interna. Desses, apenas 3 foram abertos ao público, com apresentações do evento Candlelight, da produtora Fever. O restante, foram eventos privados, realizados com a cessão do espaço às empresas – desde a gravação de programas televisivos, como o Saia Justa, do canal GNT, e comerciais, como da Ambev, até eventos corporativos e de promoção de marcas, como o lançamento da versão elétrica do Rolls Royce, exclusivo para 30 convidados.

Em 2022, houve 20 eventos1. Dos 16 eventos realizados na área interna, apenas 4 foram abertos ao público, com as apresentações do Candlelight, a oficina Paint and Drink, o Boogie Week e a temporada do espetáculo musical Donna Summer, com ingressos que chegavam a R$250. O restante dos eventos foram privados e acolheram públicos restritos, a grande maioria apenas para convidados, desde desfile da marca Lenny Niemeyer e coquetel do escritório de advocacia Machado Meyer, até encontro do Colégio Etapa.

Já em 2023, o espaço contou com 36 eventos, dos quais 20 foram realizados na área interna. Desses, apenas 4 foram abertos ao público, com apresentações da Orquestra Furiosa, do balé Quebra Nozes e da comemoração do aniversário da cidade. O restante foram eventos privados, como o Meta Summit e o Warm Up do Camarote Salvador.

Nesse mesmo ano se consolida uma tendência esboçada nos anos anteriores: a realização de apresentações e festivais musicais pagos na área externa. Passaram por ali, desde a estreia de festivais de variadas vertentes (Piknic Électronik, TURÁ, C6 Fest, Best of Blues, Festival Julino), até shows de artistas sertanejos como Luan Santana, Jorge e Mateus e Matheus e Kauan. Os preços para acompanhar essas programações privadas variou bastante, chegando a patamares superiores a R$1.000, como o C6 Fest.

A gestão da Urbia também impactou a escola de música do auditório e de seus grupos musicais. Desde 2021, uma ação popular movida pela professora Clarissa Hervé, mãe de uma das alunas da Escola, conseguiu uma liminar que garante o funcionamento da escola e impede a Urbia de realizar mudanças que levariam à precarização da formação dos estudantes. Apesar disso, em entrevista para esta matéria, Clarissa Hervé relata diversas mudanças feitas pela Urbia desde então, como: redução na carga horária do curso, cuja formação teria passado de 5 para 3 anos, fim dos auxílios econômicos aos novos estudantes e do empréstimo de instrumentos musicais, e mudanças na equipe pedagógica e no público-alvo, uma vez que, antes da concessão, a escola de música era destinada apenas para alunos de escola pública, como previa o projeto original.

Em 2023, a escola também passou a oferecer cursos pagos para adultos, como o curso de canto, no valor de R$2.400. Além disso, salas do subsolo do Auditório, utilizadas pela escola, começaram a ser alugadas para entidades privadas e houve uma mudança no nome da escola, que passou a se chamar Escola de Música do Parque Ibirapuera, em uma tentativa de desvinculá-la do Auditório. Já a Obinha, grupo musical formado pelos alunos iniciantes, não existe mais, e a Orquestra Brasileira do Auditório e a Orquestra Furiosa passaram a realizar a maior parte de suas apresentações na Arena Marquise do Parque.

Os dados mostram que o poder público foi negligente na formulação do projeto de concessão do parque, ao não estabelecer diretrizes de ação cultural para a gestão do Auditório e permitir o livre exercício dos interesses privados. O que um dia já foi um equipamento público com uma programação cultural regular e diversa se tornou, hoje, um ativo financeiro para transações privadas. Apenas em 2022, a Urbia teve uma receita líquida superior a 75 milhões de reais, dos quais mais de 27 milhões vieram da cessão de uso dos espaços públicos dos 5 parques que administra na cidade. A contrapartida financeira para a prefeitura, em outorga variável, foi de pouco mais de 900 mil reais. A apropriação privada do bem público se tornou um grande negócio.

A consequência disso é a triste realidade daquele que já foi um dos principais equipamentos de cultura da cidade: o fim de seu caráter público e de seu papel na democratização da cultura e na formação de platéia.

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A Urbia Parques foi questionada em relação aos pontos abordados na matéria. A empresa enviou a seguinte nota:

A Urbia, gestora da Escola de Música do Parque Ibirapuera (EMPI), informa que a unidade educativa funciona normalmente e que, desde o início da concessão, vem somando atividades relevantes para a comunidade, com o objetivo de oferecer formação cultural e humana para os alunos por meio da música, atuar no incentivo à ampliação dos horizontes culturais, promover a sociabilidade e expressividade e engajar a todos sobre a importância da música para a sociedade.

Desde o início da concessão a EMPI promoveu mais flexibilidade no acesso ao Projeto, fazendo com que o atendimento fosse ampliado. Hoje há 157 alunos frequentando a Escola que é destinada a crianças, adolescentes e jovens de diferentes contextos sociais, econômicos e culturais. Os alunos não precisam mais estar matriculados na rede pública de ensino, ainda que as matrículas na EMPI sejam prioritariamente destinadas a estudantes nessa situação, ou àqueles que são bolsistas na rede privada. É importante ressaltar que, hoje, majoritariamente os alunos inscritos fazem parte desse grupo. Apenas vagas remanescentes são abertas ao público em geral. Todos são selecionados por critérios que avaliam apenas se o candidato tem aptidão para o ensino da música. Aqueles alunos que recebiam bolsas anteriormente à concessão continuam sendo beneficiados pelos valores, assim como os músicos da Orquestra Furiosa.

O curso de Música, com duração de cinco anos, recebeu 74 novos alunos para formação musical só em 2023. No início deste ano foram 160 candidatos no processo seletivo da escola e foram admitidos 30 novos estudantes, de acordo com o número de vagas oferecidas para ingresso. Os demais, quando aprovados na avaliação inicial, compõem uma lista de espera que é atendida em caso de desistências. Desde 2020, quando a concessionária assumiu a coordenação da Escola, foram ministradas mais de 6.000 horas/aulas e 33 jovens se formaram pela instituição.

O programa ‘Música no Parque’, lançado em 2022 promovendo espetáculos de alunos também celebra bons resultados. No ano passado foram realizadas 38 apresentações gratuitas para cerca de 6 mil pessoas no Palco Arena Marquise do Parque Ibirapuera e no Auditório. Desde o seu lançamento foram promovidos mais de 100 eventos musicais e mais de 14 mil pessoas assistiram aos shows.

No quadro de funcionários da Escola há 33 professores, todos eles com a formação adequada e com vivência na cena musical. Pelo menos 10 deles são ex-alunos da EMPI que se destacaram e foram integrados ao grupo de docentes.

Não é verídica a informação que as apresentações da Orquestra Furiosa no Auditório Ibirapuera diminuíram. Pelo contrário: anteriormente eram realizados dois concertos. Hoje há quatro datas fixas de shows do grupo no local, além das diversas outras apresentações externas, como, em abril último, na Sala São Paulo, quando foi assistida por quase 1400 espectadores, a lotação máxima da sala.

Vale ressaltar que o uso das salas do Auditório é de prioridade da Escola de Música e, que, apenas são utilizadas para outras demandas quando não há óbice para a EMPI.

[Este texto contou com os comentários do crítico e jornalista cultural Kil Abreu, a quem o autor agradece pelo diálogo e sugestões]


Nota:

1 Os dados para o ano de 2022 estão incompletos, uma vez que a concessionária não divulgou o relatório do 3º trimestre.

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2 comentários para "SP: O Auditório Ibirapuera agora é para poucos"

  1. Adriana Coppi disse:

    Eu também frequentava o auditório Ibirapuera e a programação era excelente e muito acessível. Desde a concessão, aconteceu essa verdadeira inversão de rumo de um aparelho público servindo a interesses privados e elitizados. Uma lástima.

  2. Maria das Dores Oliveira disse:

    Bom-dia.
    Perfeita a matéria sobre o Auditório Ibirapuera. Sempre frequentei o Auditório antes da privatização. A programação era excelente, de boa qualidade e preços acessíveis. Regularmente eu ia assistir a apresentação da Orquestra Jaz sinfônica, o que não aconteceu mais com a privatização.
    Parabéns a Lucas Gariani, que expressou de forma perfeita, a triste realidade do belíssimo Auditório Ibirapuera.

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