Rio: o espantoso controle dos grupos armados sobre a cidade

Um novo estudo da UFF aponta: milícias e facções já controlam ou influenciam 31% da cidade. População destas áreas perde acesso a empregos dignos, escolas e equipamentos de Saúde. Operações espetaculosas matam e atraem holofotes — mas eternizam o problema

Arte: Metrópoles
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Para entender o fenômeno da ascensão dos grupos armados que passaram a fazer parte do cotidiano de boa parte da população do estado do Rio de Janeiro, em especial da capital fluminense, é preciso ir além da ótica restrita que vê a questão apenas como um tema da Segurança Pública, embora este seja o seu lado mais visível. O crescimento dessas organizações envolve dinâmicas próprias, fatores sociais, econômicos e políticos e uma necessidade de resposta por parte do Estado que atue em diversas frentes e de forma coordenada, o que só será possível a partir de um esforço de compreensão dessa realidade.

A atualização do Mapa Histórico dos Grupos Armados, estudo produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pelo Instituto Fogo Cruzado, traz elementos importantes a respeito da forma de atuação desses grupos e sobre como ela vem se modificando de acordo com o contexto. O crime organizado, segundo o levantamento, passa por um processo de reorganização territorial com o avanço da violência armada, no qual agora se adotam de forma mais efetiva métodos de conquista de território quando antes o principal método adotado era o da chamada colonização. Mas não é em qualquer lugar que o crime organizado se estabelece.

Se o estudo aponta que, em 2024, quatro milhões de moradores da cidade do Rio de Janeiro estavam sob controle ou influência de grupos armados — percentual que equivale a quase 35% da população carioca —, existe uma disparidade gritante de renda e composição racial entre territórios sob controle dessas organizações e os demais. O crime não apenas se aproveita da pobreza e da exclusão social como é um fator que ajuda a perpetuar essas condições.

Nas áreas sob controle, a renda média per capita é de R$ 1.267 na capital e R$ 1.121 na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), ambas abaixo do salário mínimo nacional, de R$ 1.518. Já nos territórios que não estão sob controle armado, a renda média alcança R$ 3.521 na capital, uma diferença quase três vezes maior, e R$ 1.658 na Região Metropolitana, quase três vezes mais do que entre aqueles que vivem sob controle armado. Em relação ao recorte racial, a desigualdade se repete. As áreas sob controle de grupos armados na Região Metropolitana têm composição média de 69,1% de pessoas não brancas — somadas pretas, pardas e indígenas — contra 55,2% nas áreas não controladas. O estudo aponta tratar-se de um padrão geral recorrente quando se observa, por exemplo, a própria capital, a Baixada Fluminense e o Leste Fluminense, assim como as zonas Sul, Central, Norte e Oeste.

Diante disso, o controle territorial precisa ser entendido como parte do aprofundamento das dificuldades associadas à pobreza e ao racismo, afetando em escala maior os grupos historicamente já vulnerabilizados. “A abordagem do controle territorial armado exige, portanto, uma atenção específica e a integração das dimensões de renda e raça na compreensão do fenômeno para melhor entendimento de como a construção social das desigualdades está estreitamente relacionada às dinâmicas de controle e territorial”, sustentam os pesquisadores.

Diferença entre controle e influência

A pesquisa destaca ainda as formas de atuação dentro dos territórios e de que forma os grupos armados conseguem avançar e crescer, adotando uma distinção conceitual entre “controle” e “influência”.

Para se caracterizar o controle exercido por grupos armados em relação aos territórios e à população, é preciso atender a três condições. A primeira diz respeito à extração econômica sobre diferentes mercados que fazem parte dos recursos territoriais e populacionais. Já a segunda se relaciona à capacidade de intervir e/ou definir normas de conduta e padrões de comportamento, enquanto a terceira é a utilização da força para fazer valer as duas condições anteriores.

O conceito de influência trabalhado pelos pesquisadores tem como referência as mesmas três condições que definem o conceito de controle, mas, em áreas e contingentes populacionais específicos, essas características não são encontradas de forma integral ou são irregulares, o que constituiria uma espécie de “controle insuficiente”, não exercido de forma estável ao longo do tempo.

A distinção é importante porque os impactos para a comunidade também diferem se ela está sob controle ou influenciada por um grupo armado. “O empreendedorismo (violento ou não) muitas vezes é acompanhado de práticas monopolísticas, que fazem com que a população tenha acesso a serviços e mercadorias mais caras, como é o caso do botijão de gás, ou de qualidade bastante duvidosa, como no caso do transporte alternativo”, explica o relatório. “A presença, o controle social e especialmente o uso da força violam direitos civis e políticos, como, por exemplo, a livre expressão, religião, associação, o direito de ir e vir, à proteção, dentre outros. A distinção entre controle e influência permite capturar com maior acurácia a diferença entre os territórios onde a população sofre esses impactos de forma integral e regular ou apenas parcialmente e/ou de forma intermitente.”

Outra diferença importante do ponto de vista conceitual, e que ajuda a compreender a dinâmica dos grupos armados, é a forma de expansão do controle territorial e populacional exercido por eles, que pode se dar por colonização ou por conquista. A colonização, como destaca o relatório, é um processo de expansão realizado por meio da imposição do controle territorial e populacional armado em áreas anteriormente não controladas por outro grupo, geralmente locais com baixa densidade populacional, de urbanização recente e muitas vezes localizados nas fronteiras urbanas.

“Nesses espaços, a expansão dos grupos armados assumiria um caráter extensivo, reproduzindo uma lógica de ocupação que antecede ou acompanha o crescimento populacional, residencial, comercial e da infraestrutura urbana (serviços e equipamentos urbanos). Dessa forma, o grupo armado pode atuar como ‘agente de organização territorial’, controlando a venda de lotes, a construção imobiliária e a oferta de serviços e equipamentos de infraestrutura urbana”, destacam os pesquisadores. Em suma, o crime organizado assume nesses locais diversas funções estatais, inclusive a de “planejamento urbano”. Não surpreende, diante disso, a relação íntima que muitas vezes esses grupos passam a constituir com parte da classe política e também com a elite econômica, em especial o setor imobiliário.

Diferentemente da colonização, a conquista refere-se ao movimento de expansão em que existe a substituição de um grupo que controlava determinado território e população por outro. Ocorre, por exemplo, em áreas de alta densidade populacional, onde a ocupação já está consolidada, os serviços e equipamentos já se encontram instalados e a atividade econômica é mais complexa. “A expansão, aqui, é intensiva, possivelmente assentada na capacidade de impor a cobrança de taxas ilegais e informais sobre a economia popular, sobretudo aos comércios, mas também aos moradores. No que diz respeito às dimensões urbanas, a imposição de influência ou controle será feita de forma mais coercitiva, fazendo uso da força armada para impor novas lideranças e monopólios econômicos em substituição às lideranças e empresas que atuavam na área e/ou subordinando-as às suas práticas extorsivas e modos de atuação”, pontua o relatório.

Expansão das milícias e domínio das facções

As atuações em termos de colonização e conquista ajudam a diferenciar o modus operandi de milícias e facções e também como esse tipo de atuação tem mudado nos últimos anos. De acordo com o relatório, no período de 18 anos, de 2007 a 2024, a área submetida a algum tipo de domínio armado cresceu 130%. O Comando Vermelho domina atualmente 47,5% desses territórios controlados, enquanto as milícias mantêm maior extensão territorial.

Em 2024, as milícias controlavam ou influenciavam 49,4% das áreas sob o domínio de grupos armados, o que corresponde a 201 km². Mas, quando considerado apenas o controle territorial, ou seja, aquele exercido de forma mais efetiva e estável, o Comando Vermelho conta com 47,5% dos territórios controlados, aproximadamente 150 km², sob seu domínio. Contudo, entre 2007 e 2024, os grupos milicianos foram as organizações armadas que apresentaram maior crescimento, aumentando em 315% (103 km²) os territórios sob seu controle.

O estudo aponta que a capital fluminense possui a maior proporção de territórios e população sob controle ou influência de grupos armados, ultrapassando o Leste Fluminense a partir de 2015. E isso se relaciona com a expansão das milícias, que detêm sua hegemonia na cidade, principalmente na Zona Oeste, que abarca 65% da superfície territorial urbanizada habitada do município e 2.964.400 habitantes — 49% da população total da cidade. Em todas as outras zonas (Norte, Sul e Centro), a presença do CV é central. Os números da pesquisa mostram, porém, que o poder das milícias vem diminuindo após anos de expansão desenfreada, e o crime organizado mudou de estratégia, adotando a conquista violenta de áreas já ocupadas.

Há uma distinção importante também no domínio das milícias e de outras facções, em particular o Comando Vermelho, quando são analisados os tipos de urbanização dessas áreas: se são de favela, ou seja, ocupação irregular com padrão urbanístico precário e falta ou má qualidade de serviços públicos essenciais; ou se são territórios de urbanização regular, designados em geral pelo termo “asfalto”. Em 2024, 59,9% das áreas controladas por milícias eram de asfalto, enquanto 73,9% das áreas controladas por facções do tráfico de drogas eram de favelas.

A partir desses dados, os pesquisadores buscaram explicar o fenômeno da expansão miliciana. “Como hipótese, poderíamos sustentar que o modelo de atuação política e econômica das milícias, centrado na exploração de mercados legais e ilegais de bens e serviços urbanos e na cooptação de atores estatais, é mais impactado pelas políticas de Estado, estagnando-se no período da CPI das milícias [2008], expandindo em períodos de baixa coerção e de grandes investimentos em infraestrutura na Zona Oeste e retraindo após a deflagração de uma série de operações repressivas lideradas pelo Gaeco/MPRJ. Já as facções têm atuação mais ostensiva, que necessita maior defesa bélica de territórios e população, e sua expansão não é afetada pelas políticas repressivas que lhes são dirigidas, centradas em operações policiais”, concluem os pesquisadores. Assim, embora tenham impacto midiático, operações como a Contenção, deflagrada em 28 de outubro nos complexos da Penha e do Alemão, com 122 mortos, não alteram o quadro de domínio de organizações criminosas.

O estudo aponta ainda para outra distinção entre os grupos milicianos e as facções, relacionada à forma de controle e influência. “A hegemonia das milícias no que se refere à influência territorial e populacional indica que a ascendência associativa e política das milícias necessita de menos intensidade para se realizar, mostrando-se capaz de praticar a extração de recursos de territórios e população que não controla efetivamente, e diferindo em relação às facções do tráfico, que dependem do controle armado ostensivo sobre territórios e população para operar a extração de recursos”, pontuam.

“Esse modelo político e econômico das milícias, contudo, se mostra mais vulnerável às ações que desmantelam a rede clientelista que a sustenta para conseguir realizar as mediações da implementação de seus negócios e com a política institucional. A influência tem vantagens de ganho de escala econômico e político, mas também apresenta vulnerabilidades, por ser mais sensível a mudanças. O controle, tal como realizado por facções, é mais estável; contudo, depende de mais tempo para se expandir por ser uma estrutura mais custosa de ser mantida”, pontuam os autores do levantamento.

Em função do diagnóstico de amplo domínio de organizações criminosas, o Estado terá que definir se quer realmente encontrar soluções efetivas ou se vai perpetuar um modelo que, como aponta o estudo, consolida um quadro de desigualdade no qual os mais vulneráveis são duplamente vítimas: das organizações criminosas e dos próprios agentes estatais, cuja ação repressiva, além de ineficaz, traz danos severos a todos. As políticas públicas precisam ser integradas em suas diferentes instâncias e dimensões, e não se deve confundir a urgência da situação com imediatismo irresponsável. Repetir a receita de sempre não fará com que o resultado seja outro.

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