Para reconstruir o RS e as cidades do Brasil

Catástrofe convida a superar o curto-prazismo e consolidar outra relação cidade-natureza. Reverter desmontes de leis ambientais e de estruturas de prevenção de riscos é urgente. E criar novas formas de cooperação entre sociedade e poder público

Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
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Os desastres socioambientais no Rio Grande do Sul, deflagrados pelas chuvas torrenciais em volume recorde, deflagraram nova rodada de reflexões sobre a emergência climática. Salta aos olhos mas não surpreende que, nos últimos anos, muitas capitais brasileiras seguiram a linha do afrouxamento de marcos legais ligados à proteção do meio ambiente. No Rio Grande do Sul, foram flexibilizadas 480 normas do código ambiental. Entre elas, destaque para a liberação de construções em áreas de preservação, passíveis de alagamento, e a eliminação de vegetação com função de drenagem. Mas o estado seguiu a tendência conhecida como “deixar passar a boiada”. Em 2021 o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.285, cuja letra além de flexibilizar construções e impermeabilização às margens de cursos d’água, beneficiou obras irregulares em andamento e transferiu a municípios a competência de determinar faixa de Área de Preservação Permanente. Já o projeto de Lei 3.729, aprovado na Câmara mas em tramitação no Senado, libera diversos setores do licenciamento ambiental, bem como reduz penas aos delitos. À época especialistas da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência já alertavam para uma “fragilização da atuação das entidades/órgãos intervenientes”, “anistia” a quem desenvolveu atividade ilegalmente”1

Como se não fosse suficiente, o desmonte não foi apenas legal. Houve também desmanche de estruturas institucionais de prevenção e monitoramento de riscos. Para ficar em poucos exemplos: em 2021 foi aprovado o encerramento das atividades METROPLAN, Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional do Rio Grande do Sul. Em nível municipal, foi dissolvido o DEP, departamento responsável pelo esgotamento pluvial. Pouco tempo antes, em São Paulo, havia sido extinta a EMPLASA, empresa pública responsável pelo planejamento da região metropolitana da capital. Pouco tempo depois em Florianópolis, foi dissolvido o IPUF, autarquia responsável pelo planejamento da capital catarinense.

A flexibilização e simplificação gerou resultados rápidos. Em 2022, o desmatamento de biomas cresceu 22,3%. Segundo o MapBiomas, entre 2019 e 2022 foram 6,6 milhões de hectares desmatados, equivalente a uma vez e meia o estado do Rio de Janeiro. Tais processos são interligados, evidentemente, à conversão destes solos em áreas agrícolas, de pecuária e, ainda, de urbanização.

Estudo recente do escritório de redução de riscos da ONU calcula que um dólar investido em prevenção pode economizar até quinze dólares em recuperação. Preparar as cidades com infraestruturas e capacidade institucional é quatro vezes mais barato do que os gastos com reconstrução2.

De saída, é preciso envolver universidades, laboratórios, observatórios, movimentos sociais e ONGs que tenham conhecimento profundo da realidade local, no mapeamento das perdas humanas e materiais, bem como na cogestão de saídas para a reconstrução de bairros e cidades. A Prefeitura de Porto Alegre contratou uma empresa que ficou conhecida internacionalmente por priorizar interesses comerciais em detrimento de habitantes, pouca transparência e escuta.

Com uma análise adaptada aos riscos emergentes, identificar-se-ão os bairros que podem ser reconstruídos e os que precisam de realocação definitiva. Em ambos os casos, é imprescindível que erros do passado não sejam cometidos novamente e que a resiliência urbana socioambiental seja priorizada com planos comunitários emergentes de redução de riscos e desastres – como está sendo proposto, por exemplo, no Programa Periferia Sem Risco. Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil devem ser criados para fortalecer os sistemas de prevenção, adaptação e mitigação.

Para tanto, esses bairros devem ser pensados com a participação da comunidade e apoiados por uma rede de infraestrutura verde multifuncional, conectada com áreas verdes peri-urbanas, integrada às outras infraestruturas urbanas (mobilidade, saneamento, etc.) e com um planejamento de longo prazo. Ademais, soluções baseadas na natureza e sistemas de drenagem urbana sustentáveis devem embasar as propostas para que estas protejam e restaurem ecossistemas, e consigam sustentar o regime hidrológico do local utilizando técnicas que infiltrem, filtrem, armazenem e evaporem o escoamento da água perto de sua fonte (como biovaletas, jardins de chuva, telhados verdes, pavimentação permeável, etc.). Assim, pensar em mais áreas permeáveis, áreas verdes e unidades de conservação é indispensável, bem como recuperar as Áreas de Preservação Permanente, seja nas margens dos cursos d’água ou nos topos de morros.

Em qualquer contexto de prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário em situações de crise climática, o direito à vida deve estar presente. Isso significa entender a água e o esgotamento sanitário como direitos humanos e forma de assegurar a saúde pública com uma abordagem ecológica, integrando a melhoria da qualidade de vida e a preservação dos ecossistemas.

Além disso, tais bairros têm de seguir parâmetros já consolidados de sustentabilidade urbana. Necessitam de ser mais justos na distribuição dos usos do solo, promovendo uma variedade de tipos de habitação para assegurar mistura social, acessibilidade financeira e segurança física e emocional a todas as classes sociais. Precisam também favorecer áreas com usos mistos e variabilidade de funções – moradias populares, comércios e serviços públicos e privados –, de modo a criar centralidades locais, gerar empregos e reduzir deslocamentos pendulares de longa distância. A proximidade aos serviços básicos, a caminhabilidade e a acessibilidade devem também ser priorizadas, juntamente com um sistema viário eficiente e uma rede de transportes públicos eficaz e acessível, estando esta conectada a uma gama de diferentes modais de transporte. Por fim, ruas completas, seguras e ativas precisam ser pensadas como parte de um sistema maior de espaços livres públicos para a diversidade e uma especial atenção precisa ser dada ao reforço da identidade local.

A realocação das famílias desalojadas não precisa se dar apenas com a construção de novas unidades habitacionais, mas também dando uso a imóveis ociosos em áreas centrais. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul já mapeou número expressivo destes (diga-se de passagem, isto vale para outras cidades, como mostrou o censo de 2022, há 11,4 milhões de imóveis ociosos no país – 600 mil apenas na cidade de São Paulo).

Este é também o momento de superar o curto prazismo e voltar a pensar em políticas de reestruturação do território sob os marcos da função social da terra urbanizada e de um paradigma da justiça ambiental. Já temos contribuições consistentes de técnicos, cientistas e juristas a respeito.

Como prioridade, a identificação dos territórios que sofrem com o racismo ambiental, segregação e outras desigualdades que impactam as populações já vulnerabilizadas. Vale lembrar, os riscos são socialmente produzidos e os desastres não são naturais, os ônus de ambos são distribuídos de maneira bastante desigual. Os investimentos públicos precisam ser regionalizados, distribuídos de acordo com critérios técnicos coerentes com as necessidades sociais.

É urgente recuperar a capacidade institucional dos municípios na prevenção de desastres e planejamento para redução dos impactos, com recriação de estruturas administrativas. De novo, será mais eficiente se se der por cogestão com universidades públicas e privadas no formato de Residências Acadêmicas Multiprofissionais com programas de ação local, que além de conhecimento situado em nossa realidade, têm presença mais perene, compromisso e capilaridade entre os povos envolvidos.

A reconstrução e planejamento também precisam acontecer na escala regional. Isto passa por incorporar nas medidas os comitês de bacias hidrográficas, órgãos colegiados capazes de mediar conflitos entre os usos e usuários das águas estaduais e interestaduais fortalecendo comunidades resilientes e sensíveis à água. Há ainda marcos legais como o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente regulamentado pelo decreto nº 4.297/2002, que podem ampliar a conexão entre o fortalecimento de cadeias produtivas, a proteção e recuperação ambiental. No entanto, as bases dos sistemas de informação devem estar mais acessíveis à população.

Não se deve desprezar ainda a capacidade de cooperação e cogestão de comunidades e sociedade civil organizadas, enquanto participantes desses ecossistemas físicos e sociais para promover territórios resilientes. Não raro organizações populares, camponesas, quilombolas e povos indígenas – cuja relação com a terra é respeitosa – têm mostrado grande inteligência social, desempenhando papel fundamental tanto do ponto de vista da preservação e recuperação de infraestrutura ambiental quanto nas respostas comunitárias a eventos extremos.

Envolver todos os entes federativos e setores-chave na transição energética, com investimentos sólidos em tecnologias de baixo carbono. É preciso consolidar uma nova relação cidade-natureza, que passa pela proteção de ecossistemas urbanos e conectividade entre eles por redes de infraestrutura verde e azul. Cinturões verde podem ser desenhados junto de sítios de agroecologia urbana, que operem em circuitos curtos de entrega de alimentos. O verde qualifica a vida urbana.

É importante pensar na bacia hidrográfica como unidade de planejamento, integrar a reforma urbana à reforma agrária no continuum rural-urbano. Como as fontes de energia e água potável tendem a diminuir, faz sentido que os movimentos de emigração das grandes cidades para cidades menores e para o campo sejam considerados como respostas a esta nova realidade.

É difícil não perceber que muitas das perdas humanas e materiais do Rio Grande do Sul poderiam ter sido previstas, outras tantas evitadas. Mais difícil ainda é negar os efeitos devastadores da flexibilização de marcos legais e do desmonte de capacidade institucional que se deram em nível federal e geraram alinhamentos nos estados e principais capitais. Há possibilidades de saída efetiva a emergência climática, mas uma transformação efetiva exige revisão brusca de rota, exige reconstrução institucional e, mais do que isto, exige refundação de outro paradigma civilizatório.

Subscrevem esta carta:

Ermínia Maricato (arquiteta urbanista, professora emérita da Universidade de São Paulo, ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo, coordenadora da rede BrCidades)

Paolo Colosso (filósofo e arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFSC, coordenador da rede BrCidades)

Liza Maria Souza de Andrade Andrade (arquiteta urbanista, professora da Universidade de Brasília, compõe o núcleo DF da rede BrCidades)

Olivia Orquiza de C. Zara (arquiteta urbanista, professora da Universidade Estadual de Londrina, compõe o núcleo Londrina da rede BrCidades)

Ricardo Moretti (engenheiro civil, professor da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do ABC)

Celso Carvalho (engenheiro civil, Professor da Universidade de São Paulo)

Douglas Tadashi Magami ( Defensor Público do Estado de São Paulo)

Francisco Comaru (engenheiro civil, Professor da Universidade Federal do ABC)

Cláudio Di Mauro (geógrafo, ex-prefeito de Rio Claro, professor da Universidade Federal de Uberlândia)

Márcio Pochmann ( economista, professor da Unicamp, presidente do IBGE)

Ladislau Dowbor ( economista, professor titular da PUC-SP)

Lino Fernando Bragança Peres (arquiteto urbanista, professor aposentado e da Universidade Federal de Santa Catarina, presidente do Instituto Cidade e Território/SC e do Fórum da Cidade de Florianópolis)

Betânia Alfonsin ( Pesquisadora do Observatório das Metrópoles e do Mestrado em Direito da FMP do RS e Diretora de Relações Internacionais do IBDU -Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.

André Coutinho Augustin ( Pesquisador do Observatório das Metrópoles)

Joana Winckler (Pesquisadora do Observatório das Metrópoles )

Ana Cláudia Duarte Cardoso (arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal do Pará)

Heliana Faria Mettig Rocha (arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal da Bahia)

Luis Octavio de Faria e Silva (arquiteto urbanista, educador, professor do Programa de Pós Graduação da Universidade São Judas Tadeu e da Escola da Cidade)

Gustavo Pires de Andrade Neto (arquiteto urbanista, professor da Universidade Estadual de Santa Catarina e presidente do IAB-SC)

Vanessa Marx ( professora de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e pesquisadora do Observatório das Metrópoles).

Rualdo Menegat ( Geólogo, Professor Titular do Instituto de Geociências da UFRGS, Coordenador Geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre.

Soraya Nor ( arquiteta e urbanista, professora da Universidade Federal de Santa Catarina)

Maria Inês Sugai ( arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal de Santa Catarina)

Guilherme Barbosa (Engenheiro Civil, Ex-Diretor Geral do DMAE, Ex-secretário de Obras e Ex-vereador de Porto Alegre)

Beatriz Fleury e Silva ( arquiteta urbanista, Professora da Universidade Estadual de Maringá. Coordenadora Brcidades- núcleo Maringá)

João Aparecido Bazzoli (advogado, Professor Associado na Universidade Federal do Tocantins

Antônio Alberto Machado (Professor livre-docente de Direito da UNESP, Promotor de Justiça aposentado)

Bruno Miragaia (Defensor Público do Estado de São Paulo)

Paulo Alvarenga (Defensor Público do Estado de São Paulo)

Silvia Lenzi ( arquiteta urbanista, ex-presidente do IPUF – Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis)

Guilherme Wisnik (arquiteto urbanista, professor e vice diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FAU-USP)

Adriana Fagundes Burger ( Defensora Pública do Rio Grande do Sul)

Julia Azevedo Moretti ( Pesquisadora da USP- Universidade de São Paulo)

Angela Gordilho ( arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal da Bahia)

Regina Pozzobon ( engenheira civil, doutora em planejamento urbano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Ruth Maria da Costa Ataíde ( arquiteta urbanista, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN, coordenadora do Fórum Direito à Cidade).

João Sette Whitaker ( arquiteto urbanista, ex-Secretário de Habitação de São Paulo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FAU- USP)

José Ricardo Vargas de Faria ( Engenheiro Civil, Doutor em Planejamento Urbano e Regional, professor e coordenador do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas da UFPR – CEPPUR-UFPR)

Nadia Somekh ( arquiteta urbanista, professora emérita da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ex-presidente do CAU-BR)

Cláudia Teresa Pereira Pires ( arquiteta urbanista – Movimento Arquitetos pela Moradia, ex-presidente do IAB-MG)

Giselle Tanaka ( arquiteta urbanista, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ)

Thiago Trindade ( professor e atual vice-diretor do Instituto de Ciência Política da UnB, coordenador do Núcleo Brasília do Observatório das Metrópoles e ativista da rede BrCidades )

Luciana Royer ( arquiteta urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, coordenadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos -LabHab).

Leda Paulani ( economista, professora titular da Faculdade de Economia e ADministração FEA-USP )

Alexandre Delijaicov ( professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenador do Laboratório de Projeto – LABPROJ)

Anderson Kazuo Nakano ( arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal de São Paulo)

Carlos Vainer ( economista e sociólogo, Professor Emérito do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Coordenador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza.)

Fernando Túlio, professor (lecturer) na ETH Zurique (Suíça) e diretor do instituto Zerocem

Marcelo Karloni ( arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal de Alagoas Curso de arquitetura e urbanismo, Núcleo BR cidades Arapiraca Alagoas.

Gilson Jacob Bergoc (arquiteto e urbanista, docente da Universidade Estadual de Londrina, coordenador do núcleo do BR Cidades de Londrina)

Rubens Luis Ribeiro Machado Jr ( professor titular da Escola de Comunicações e Artes ECA-USP)

Renato Pequeno ( arquiteto urbanista, Professor da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Observatório das Metrópoles)

Luiz César de Queiroz Ribeiro( professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro IPPUR-UFRJ)


Notas:

1 Disponível em: https://portal.sbpcnet.org.br/noticias/sbpc-se-manifesta-contra-nova-lei-geral-do-licenciamento-ambiental/

2 Disponível em: https://www.undrr.org/our-work/our-impact

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3 comentários para "Para reconstruir o RS e as cidades do Brasil"

  1. CLAUDIO DA SILVA PEREIRA disse:

    Importante ferramenta que nós apresenta um olhar qualificado com informações e debate com qualidade.

  2. Jonas Furquim disse:

    Excelente matéria!

  3. José Mário Ferraz disse:

    Esta é uma das poucas matérias sobre as causas dos desastre. Fala-se mais sobre os resultados da cultura insensata de destruir a natureza para fazer um dinheiro que nenhuma utilidade tem do ponto de vista social. E se depois da reconstrução vier outra destruição? Claro que ninguém deseja, mas não é uma possibilidade? A não ser que as orações do Papa resolva o problema. Vale a pena contar com elas?

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