O risco lógico da Linha

Um projeto de cidade-linha, com de 170 quilômetros de extensão, é vendido como terra prometida – sob retórica hi-tech, ecológica e de luxo. O que isso revela sobre as urbes como instrumento (geo)político de exploração, domínio e “novos muros”?

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Parte significativa da humanidade contemporânea – a produzir e se alimentar de imagens – habita o seu admirável mundo novo, um planeta-urbe, termo sugestivo da potência humana em submeter a Terra ao modo de vida urbano, que expande a sua influência e impactos difusos: a cidade, como o maior artefato cultural e sociotécnico produzido por humanos na história de sua existência transformadora, confunde-se com a própria Tecnosfera.

Em anos recentes, ao retomar imaginários projetados muito antes, ensaia-se um espetáculo expansionista, fora de Gaia, onde já não mais se vive, sobrevive-se: abandonada, em ruínas propagadas pela exploração capitalista secular, nossa morada coletiva no Cosmos – a mesma morada de outros seres, não-humanos – foi reduzida a um mero teatro de operações de uma civilização que já se distanciou da Natureza e dela extrai tudo para ser produzido e consumido sob esse modo de vida.

Mas antes da expansão neocolonial planejada, extraterrestre (a fundar colônias na Lua e em Marte, por exemplo), a elite eleita pode chegar à nova terra prometida – NEOM – cuja cidade-modelo foi imaginada pelo devaneio arquitetônico e engenho hi-tech, no risco espetacular da nova urbe. Explico o termo ambivalente: aqui, o substantivo risco remete tanto ao desenho projetual quanto à probabilidade de perigo e ameaça. E ainda, ao utilizar esta palavra, refiro-me também ao verbo, mas para além do significado de projetar, relevando a própria intenção do gesto de riscar, seja no sentido de suprimir e apagar, seja no sentido de expulsar.

A construção da referida cidade – The Line (A Linha) – avança em um antigo território habitado na Arábia Saudita. Imaginei uma cena teatral para a sumptuosa ordem proferida: “saiam do caminho da nova urbe”, ordenara o príncipe-mentor da iniciativa, com cintilante brilho do fio de sua espada (como dos fuzis de seu exército), o mesmo nos dentes de seu sorriso, assim como daqueles que nela anseiam morar, ou apenas visitar como turistas opulentos, seduzidos pelo monumental espelho dourado da cidade retilínea projetada por arquitetos refinados, para usufruto luxuriante da elite de predadores globais.

Como arquiteto urbanista, mas também como arqueólogo, interessado em estudar a transformação das paisagens urbanas no tempo, reflito sobre tal projeto, que progride com “uso autorizado de força letal”, conforme denuncia um coronel do exército saudita exilado na Inglaterra, em reportagem da BBC [1], ao afirmar que recebeu ordens de expulsar de suas aldeias beduínos huwaitat – antiga etnia que habita há séculos a região de fronteira saudita-jordaniana – arrasadas no caminho de implantação da nova cidade (entre elas, Sharma foi totalmente destruída por escavadeiras, como revela a mesma reportagem ao comparar imagens de satélite do lugar em 2018 e 2024).

A visão propagada pelo príncipe do regime opressor sobre o descomunal plano turístico e urbanístico denominado NEOM [prefixo grego neo (novo) + a letra m, abreviatura para mustaqbal لﺑﻘﺗﺳﻣ, futuro em árabe; “Novo Futuro”, portanto], apresenta-se, na lógica do empreendimento, como uma situação ideal: o vasto território da região noroeste do país, destinado a ser explorado futuristicamente, é “um quadro em branco” para se projetar uma “revolução na civilização”. No território NEOM, a urbe linear em construção é assim resumida (em tradução livre, a partir da divulgação em inglês):

“Uma cidade cognitiva que se estende por 170 quilômetros, desde as montanhas épicas de NEOM, passando por vales desérticos inspiradores até o belo Mar Vermelho. Uma obra-prima arquitetônica espelhada que se eleva a 500 metros acima do nível do mar, mas com uma largura de apenas 200 metros, economizando-se terreno. THE LINE redefine o conceito de desenvolvimento urbano e de como serão as cidades do futuro”.

Na era espetacular da instantaneidade, entre imagens realísticas surpreendentes, a iniciativa de vulto é divulgada em animações como um “projeto ecológico” exemplar diante da crise ambiental (com ênfase petrolífera) há tempos anunciada por cientistas. O príncipe, assim como outros congêneres vizinhos seus (em cidades como Dubai e Doha, por exemplo), antecipam-se para diversificar os assets e a origem dos lucros, na medida em que, um dia, a pressão contra a exploração do óleo fóssil será, de fato, determinante. Para isso, a estratégia de projetar a cidade de alta tecnologia é promissora, inclusive por extrair mais-valia pela exploração do trabalho humano para construir A Linha. Autor de O Canteiro e o Desenho, o arquiteto e artista plástico Sérgio Ferro explicita muito bem a lógica envolvida nos investimentos destinados a execução de infraestruturas em escalas monumentais e como se exerce a exploração nos imensos canteiros de obras (sobre o tema, vejam o vídeo O Grande Canteiro [2], um relato desse teórico da arquitetura, gravado por mim em 2002 no anfiteatro da FAU-USP).

A construção de The Line parece atualizar ou reiterar outra lógica, muito antiga, isto é, o quanto o exercício da violência – tantas vezes extrema, como a guerra – na imposição e afirmação do poder, encontra na cidade uma forma ideal para instaurar um novo domínio. São diversos os exemplos, desde as mais remotas memórias de experiências de vida urbana que podemos reconhecer em mitos, aos testemunhos históricos e arqueológicos que nos chegaram da Antiguidade, assim como as múltiplas evidências na história moderna e contemporânea, das guerras mundiais aos vários processos de (re)urbanização. Do passado, enquanto redijo estas linhas, lembro-me, por exemplo, de um relato de Tucídides (séc. V a.C.) sobre a origem de Siracusa (séc. VIII a.C.) inserido no vídeo que fiz relacionado com a história desta antiga cidade [3]. Ainda que brevíssima, a sua informação nos faz inferir sobre o uso explícito da violência na fundação da polis por Árquias, um heráclida de Corinto. Após consultar o Oráculo em Delfos, este oikistes (οἰκιστής) navegou conduzindo aqueles que, sob a sua liderança, migraram até a Sicília e fundou Siracusa após expulsar os sículos (Σικελοὺς ἐξελάσας) que antes habitavam Ortígia.

Assim, considero a nova paisagem urbana divulgada em imagens exuberantes a partir de uma perspectiva mais ampla, propriamente histórica nesse sentido: a construção, assim como a destruição premeditada de muitas cidades foi no passado, assim como é no presente, um instrumento tecnológico e (geo)político, digamos assim, na exploração e domínio de territórios (e de seres), sobretudo em contextos (neo)coloniais. Como bem observou Paul Singer no seu texto clássico Economia Política da Urbanização, lato sensu, em suas palavras, “a constituição da cidade é, ao mesmo tempo, uma inovação na técnica de dominação e na organização da produção”. Na reorientação dos fatores produtivos (que compensaria o declínio futuro da exploração petrolífera), ao arrasar antigas comunidades aldeãs, a cidade linear surge no território como produto tecnológico espetacular, com retórica ecológica, destinada ao turismo e consumo de luxo. Talvez a ilusória imagem projetada desta cidade seja, na verdade, um novo muro, signo de um mundo dividido pelos detentores do poder econômico, no risco lógico d’A Linha.


Notas:

[1] A reportagem pode ser acessada aqui https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68945445

[2] O Grande Canteiro, disponível em https://vimeo.com/slucord/o-grande-canteiro

[3] Siracusa Cidade Antiga, disponível em https://vimeo.com/slucord/siracusa

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