O que a urbanização da China pode ensinar ao mundo?
Em 35 anos, população urbana saltou de 171 para 910 milhões. Planejamento estatal evitou o caos social e a crise de moradia. Investimento em infraestruturas, políticas sociais e gestão do fluxo migratório foram essenciais. Que problemas ainda restam resolver?
Publicado 26/05/2025 às 17:19

Por Sérgio Jatobá1
A China é o único país no mundo onde uma urbanização em ritmo nunca visto antes na história2 se processou sem gerar informalidade e periferias urbanas empobrecidas como em outros países urbanizados3. A forte atuação do Estado, mesmo em uma economia de mercado, foi fundamental para esse resultado. Diferente do capitalismo neoliberal, o Estado chinês faz grandes investimentos em infraestrutura produtiva (transporte, energia, habitação, saneamento, financiamento de empresas, etc) e social (educação, saúde, previdência,etc), sem a expectativa de retorno imediato que caracteriza o empreendedorismo liberal. Contudo, em tempo menor do que o esperado, o grande dinamismo econômico e os benefícios sociais gerados compensaram amplamente o investimento estatal.
Em 1978, início das reformas empreendidas por Deng Xiaoping, a população urbana era de 171 milhões cerca de 18% da população total do país. Em 2022, já eram 910 milhões de pessoas vivendo em cidades, com taxa de urbanização próxima de 65%. 740 milhões de pessoas se urbanizaram no período de 1978 a 2022 e 100 cidades com mais de 1 milhão de habitantes surgiram. E para atingir a taxa média de 80% de urbanização dos países desenvolvidos, pelo menos mais 300 milhões de pessoas deverão migrar para as cidades nos próximos anos.
A vertiginosa, e ao mesmo tempo planificada, urbanização chinesa tem entre os seus pilares estruturais:
1) a migração campo-cidade ou cidade-cidade controlada e planejada, por meio do sistema denominado “hukou”, que oferece benefícios sociais (moradia pública subsidiada, assistência de saúde. educação, pensão e seguro-desemprego) a todo chinês em sua cidade natal. Para manter estes benefícios quando deseja migrar do campo para a cidade ou de uma cidade de menor porte para uma outra de maior porte o governo exige que ele tenha emprego garantido e estabilidade de pelo menos um ano. Este sistema embora tenha sido eficiente para conter parte da migração, não está isento de problemas, como a separação temporária de famílias e a migração mesmo sem hukou urbano.
2) melhorias das condições de vida nas áreas rurais com criação das TVE (Township and Village Enterprices)4 – empreendimentos locais de industrialização rural descentralizados fomentadas pelo Estado e geridas cooperativamente, o que conteve a migração para os grandes centros e criou núcleos urbanos nas áreas rurais, formando uma rede urbana não monocefálica;
3) investimento prévio em infraestrutura urbana (urbanização, construção de habitações, sistemas de transportes, etc) para atender a demanda da migração urbana e que evita que falhas no sistema hukou levem a criação de áreas informais nas cidades;
4) criação de uma rede ferroviária com trens de alta velocidade que interligou os principais centros urbanos e estimulou o desenvolvimento urbano com grande eficiência nos deslocamentos. Segundo Elias Jabbour,5 a China construiu em 20 anos, 40 mil km de rede ferroviária de alta velocidade e até 2025 vai construir mais 10 mil km ligando todas as cidades com mais de 500 mil habitantes.
5) alocação de solo mediante leilão da outorga do direito do uso do solo e construção, baseado nos preços de mercado (sistema semelhante aos CEPASCs – Certificado de Potencial Adicional de Construção – adotados na cidade de São Paulo.6
A bem-sucedida urbanização chinesa, que se processou muito mais ordenada do que em outros países, mesmo na velocidade e nas dimensões populacionais em que se deu, atesta que economias capitalistas de orientação neoliberal não são capazes de produzir planejamento urbano que seja efetivo, mesmo com boa intenção técnica. A China, adotando mecanismos de economia de mercado, mas com forte atuação e controle político do Estado foi capaz de vencer seu gigantesco desafio de urbanização com êxito. O arquiteto Rem Koolhas, em entrevista ao Washington Post em 9/7/2018 declarou que o planejamento urbano estava em crise no mundo porque as economias de mercado não estavam gerando os fundos necessários para os investimentos nas melhorias urbanas. E que atualmente somente na China e em Singapura, havia uma forte capacidade estatal de investimento capaz, inclusive, de “mobilizar a riqueza gerada pelo mercado para o bem público”.7
Evidentemente, o processo de urbanização chinesa não evitou os problemas inerentes à sua complexidade. Um dos exemplos foram as grandes desapropriações foram feitas para criar novas áreas urbanas em tempo recorde, descaracterizando bairros populares tradicionais, os chamados hutongs, conjunto de residências organizadas em torno de um pátio, alguns remanescentes da Dinastia Ming no século XV. Com o tempo, a importância histórica e patrimonial dos hutongs foi sendo reconhecida pelos planejadores e alguns foram mantidos e revitalizados. Outro problema ressaltado pela mídia é o das cidades fantasmas. Sim, elas são uma realidade na China, embora sua existência tenha sido exacerbada na mídia ocidental. Grandes áreas urbanas que permanecem sem ocupação substancial têm como uma de suas causas os critérios que o governo central utiliza para avaliar gestores locais, entre os quais a taxa de urbanização e a concessão de terra para investidores privados. Outro é o incentivo ao financiamento de imóveis a juros baixos o que faz com que muitos chineses apliquem suas economias na compra de imóveis e muitos deles permanecem fechados, porque não há demanda imediata para a sua ocupação.
Em contrapartida, o planejamento urbano chinês é de longo prazo e não está sujeito à descontinuidade administrativa de governos que se sucedem sem uma visão de política de Estado. E um planejamento continuado aprende melhor com seus erros e revisa periodicamente seus planos. Ademais, após as reformas de 1978, os planejadores urbanos chineses adotaram posturas mais pragmáticas que se adequaram mais ao ritmo do mercado do que a legislação mais restritiva que existia anteriormente e ainda persiste mesmo em países de economias liberais. O desenvolvimento urbano chinês não está isento dos problemas inerentes a uma economia, que embora planificada, passou a se orientar por mecanismos de mercado com objetivo fortemente desenvolvimentista. A diferença é que na China o Estado tem um forte controle do mercado e não é tutelado por ele, como nas economias neoliberais.
No mundo capitalista, somente alguns países europeus conseguiram ter uma urbanização com uma rede de cidades mais bem distribuídas no território e que diferiu do modelo de monocefalia urbana que predominou na maior parte dos países que se urbanizaram no mundo. E isto se deveu aos maciços investimentos públicos, via Plano Marshall no pós-guerra e aos fundos estruturais da comunidade europeia, a partir do final do século XX, que promoveram desenvolvimento regional urbano e o Estado do Bem-Estar Social no continente europeu. Mas os objetivos não eram só econômicos, mas também de estratégia política para evitar o avanço do comunismo. Com a queda do Muro de Berlim, a redução da Guerra Fria e o crescimento das políticas neoliberais, este equilíbrio socioeconômico começou a se romper e a Europa volta a enfrentar desequilíbrios urbanos e regionais, com os quais lida atualmente, como o crescimento de periferias empobrecidas em seus grandes centros e a crise de moradia acessível.
A China, contudo, também adotou uma política macroeconômica de grandes investimentos estatais para promover o desenvolvimento nacional, apoiando-se em uma forte economia de mercado, mas com orientação política bem diferente do neoliberalismo. Enquanto o capitalismo neoliberal só produziu aumento das desigualdades, com consequências nefastas no bem-estar social e cidades cada vez mais apartadas, a China usou a acumulação de riqueza de forma mais distributiva e por meio de uma economia planificada gerou desenvolvimento com melhor equidade social. Cerce de 800 milhões de pessoas foram retiradas da extrema pobreza desde 1978 e a pobreza absoluta foi eliminada em 2021.8
O êxito da política de urbanização chinesa e o grau de desenvolvimento econômico e social de suas cidades refletem o sucesso desta política que recolocou a China no lugar de maior potência mundial e é o exemplo do que deveria ser a política macroeconômica global para enfrentar os desafios do século XXI.
Notas e referências bibliográficas:
(1) – Arquiteto e urbanista, doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Estas reflexões foram motivadas por viagens à China realizadas em 2011, 2016 e 2018, complementadas com dados e consultas bibliográficas recentes.
(2) – “Em 1978, no início da política de Reforma e Abertura, a população urbana era de 171 milhões de cidadãos, com taxa de urbanização de cerca de 18%. Em 2022, já eram 910 milhões de pessoas vivendo em cidades, com taxa de urbanização beirando 65%. São quase 740 milhões de novos cidadãos urbanizados neste período (1978-2022), 100 cidades com mais de 1 milhão de habitantes – o Brasil tem 17 – e 16 megacidades – aqui apenas São Paulo tem mais de 10 milhões de habitantes. A título de exemplificação: Chongqing tem mais de 32 milhões, Xangai, quase 25, Pequim 22 e Chengdu 20 – somente seis países da União Europeia tem população maior do que Chongqing” in: Maia, Isis Paris e Sampaio, Ana Caroline – Por que a China não tem problema de favelização? O caso do Hukou – artigo inBrasil de Fato, 22 junho 2022 em https://www.brasildefato.com.br/2022/06/20/artigo-por-que-a-china-nao-tem-problema-de-favelizacao-o-caso-do-hukou/ Acessado em 5/5/2025.
(3) Ver artigo “Assim a China enfrenta a crise das megalópoles” por Wenhua Zongheng e traduzido por Maurício Ayer publicado em Outras Palavras em 18/07/2023. Disponível em: https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/como-china-enfrenta-a-crise-das-megalopoles/ Acessado em 7/5/2025
(4) Para maiores detalhes sobre as TVE e a nova economia chinesa ver Jabbour, Elias e Gabriele, Alberto. China o socialismo do século XXI. Boitempo. 2021.
(5) Jabbour, Elias e Gabriele, Alberto op.cit. e entrevistas de Elias Jabbour em diversos podcasts.
(6) Segundo Bertaud,Alain em: Ordem sem Design – como os mercados moldam as cidades, Bookman 2023, pg. 76: “após as reformas econômicas de 1978, as administrações municipais chinesas abandonaram a alocação de solo mediante regulações de design (normativas) e as substituíram por uma abordagem mais pragmática, baseada no preço de mercado obtido leiloando-se o direito do uso do solo”
(7) Entrevista de Rem Koolhas ao Washington Post em 9/7/2018 em: https://www.washingtonpost.com/news/theworldpost/wp/2018/07/09/rem-koolhaas acessado em 3/5/25.
(8) https://www.brasildefato.com.br/podcast/tres-por-quatro/2023/06/30/china-cresceu-e-erradicou-a-pobreza-porque-fez-tudo-ao-contrario-do-que-pregam-os-neoliberais. Acessado em 8/5/25.
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