Direito à Cultura: os “sujeitos periféricos” em ação
Mês passado, a Feira Literária da Zona Sul (FELIZS) agitou a cena cultural da periferia paulistana. Um estudioso deste movimento debate os seus sentidos: o papel da arte na troca de saberes e a festividade como prática espacial para o direito à cidade
Publicado 04/10/2024 às 13:09 - Atualizado 08/10/2024 às 11:12
Título original:
“A Importância da Feira Literária da Zona Sul (FELIZS): Cidadania, Direitos, Cultura e Política na Periferia de São Paulo”
Entre os dias 15 e 21 de setembro de 2024 ocorreu a décima edição da Feira Literária da Zona Sul (FELIZS) em São Paulo, com o tema “A Poética dos Caminhos – Donde Miras?”. A FELIZS acontece “anualmente desde 2015, geralmente no mês de setembro, e reúne os coletivos culturais da zona sul de São Paulo existentes desde o final dos anos 1990 e início dos anos 2000 em lugares simbólicos e marcantes para a história social cotidiana dessa parte da cidade, tais como os espaços públicos e privados localizados em importantes equipamentos culturais e educacionais. Entre esses lugares destacam-se a Praça do Campo Limpo e o SESC Campo Limpo”1.
A FELIZS é uma tentativa de unir potencialidades do movimento cultural periférico nos espaços e observar a grandiosidade e a multiplicidade de propostas que a periferia vem desenvolvendo nas últimas décadas. Segundo o site da organização da Feira:
“Queremos nos ver e fortalecer num processo de sinergia, potencializando as ações individuais conectadas ao processo coletivo. O fazer cotidiano é essencial, mas é saudável um respiro para reflexão: pensar sobre os caminhos, identificar nossa grandeza e nossas dificuldades. Há uma produção intensa que precisa ser divulgada, valorizada, e reconhecida: são estas as premissas iniciais para a criação deste evento”2.
Nesses espaços se reúnem “sujeitos periféricos”3, conforme acepção do sociólogo brasileiro Tiaraju Pablo D’Andrea (2022), atuantes na cena cultural da zona sul em trocas de experiências e reflexões sobre o fazer cotidiano da produção artística e cultural nos coletivos, além da realização de atividades, apresentações e espetáculos de música, dança, sarau, contação de histórias e oficinas de produção literária. Entre esses coletivos participantes, constituídos por “sujeitos periféricos”, destaca-se o Sarau do Binho, um dos coletivos culturais fundamentais para a história do movimento cultural das periferias na zona sul de São Paulo, sendo considerado um dos primeiros saraus periféricos da cidade.
O Sarau do Binho teve início em “1993 de forma dispersa, mas em 2004 passou a ser sistematizado, com a prática do sarau semanalmente”4 no distrito do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, e até hoje promove a articulação e o intercâmbio de informações relacionadas às várias manifestações culturais do Campo Limpo. É um encontro que reúne pessoas ligadas a várias linguagens culturais, como poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, fotógrafos, atores, entre outros. Os encontros acontecem periodicamente no Espaço Clariô de Teatro, na Praça do Campo Limpo, em unidades do SESC e em escolas públicas do bairro. Os realizadores do Sarau do Binho são parte dos idealizadores e organizadores da FELIZS.
A Feira, idealizada pelos “sujeitos periféricos” do Sarau do Binho, nasce também de um desejo de reflexão sobre o movimento cultural da zona sul, pulsante de múltiplas linguagens, e traz como lema a seguinte expressão: “Uma andorinha só não faz verão, mas pode acordar o bando todo”5. Desde seu nascimento, a Feira preocupa-se com a divulgação, difusão e espraiamento da produção cultural literária periférica. Assim, esses “sujeitos periféricos” consideram que “é tempo de acordar outras andorinhas, formar bandos e construir um universo cultural que permita cada vez mais o acesso e a difusão dos bens culturais!”.
Para “construir um universo cultural”, a FELIZS permite a realização do encontro e da festa no espaço urbano periférico. Na FELIZS, o encontro e a festa é tanto uma prática espacial relacionada com a efetivação do direito à cidade, conforme teoria elaborada pelo filósofo francês Henri Lefebvre (1999), quanto um ato político de apropriação do espaço para a constituição de lugares.
Henri Lefebvre, ao tratar do “Direito à cidade” no livro intitulado A Revolução Urbana (1999) defende a importância das festas e festividades na cidade em espaços públicos enquanto direitos, que se incluem nos direitos humanos e nos direitos dos cidadãos. O autor acredita que a festa é fundamental para a vida na cidade, pois “os signos do urbano são os signos da reunião: as coisas que permitem a reunião (a rua e a superfície da rua, pedra, asfalto, calçada etc.) e as estipulações da reunião (praças, luzes etc.)”6. Propiciar a reunião e o encontro na cidade confere as possibilidades de trocas simbólicas e significativas entre as pessoas que constituem parte dos direitos e componente do “Direito à cidade” de Lefebvre. Assim, a FELIZS vista como festa ou festividade na cidade pode ser entendida como parte das ações e direitos culturais que melhoram a nossa condição cidadã. Em um contexto em que pode-se caracterizar nossa cidadania como incompleta ou “mutilada”, nos termos do geógrafo brasileiro Milton Santos. Para o autor, “cada pessoa vale pelo lugar onde está. E o seu valor como cidadão depende de sua localização no território”7. Ou seja, a depender de nossa localização no território nacional, ou até dentro de uma mesma cidade, é possível notar que variam as nossas possibilidades de acessos aos bens e equipamentos imprescindíveis à vida, o que caracterizam as desigualdades de oportunidades de acesso mutilando a nossa cidadania. Nesse sentido, é possível reconhecer a importância da FELIZS ao proporcionar possibilidades de acessos aos bens e equipamentos culturais e educacionais na periferia.
A FELIZS vista como festa ou festividade na cidade e entendida como parte das ações e direitos que compõem e melhoram a nossa condição cidadã se insere naquilo que a geógrafa brasileira Sílvia Lopes Raimundo (2017) menciona ao falar dos sujeitos e integrantes dos coletivos de cultura que desenvolvem suas atividades artísticas em diferentes linguagens associadas às lutas políticas em um contexto reivindicatório apontando que a linguagem e a estética das artes tornam-se veículos para a exposição de críticas à ordem contra racionalidade. Arte e cultura criam espaços de liberdade de expressão e trocas de saberes, com saraus, urdindo condições para a construção de outros olhares sobre a cidade. Criam constantemente projetos éticos, estéticos e comprometidos com a periferia, onde São Paulo, vista pelos empreendedores imobiliários, latifundiários urbanos e Estado como espaço do capital, toma outra dimensão. Uma cultura de caráter democrático confere à cidade uma estética política8.
Para a autora,
“esses novos olhares que constroem a cidade, modos de ser e viver as experiências cotidianas e políticas têm na arte, uma linguagem privilegiada para expressar uma infinidade de reflexões, questionamentos, críticas, utopias e projetos. Arte vista como uma expressão que pode dar sentido e significado a nossa existência, funciona como uma linguagem privilegiada para expressar uma infinidade de reflexões. Que por provocar certa angústia, nos encoraja conhecer não somente o nosso lugar, mas os lugares dos outros também, fazer pesquisa e criar um repertório sobre o território da cidade. Então, a arte abre o olhar, amplia os horizontes geográficos. E é do fazer Arte [a estética] e das experiências individuais e coletivas que surgem os projetos de maior escala, os mais políticos e éticos. A arte e a estética entrelaçadas, criando experiências estéticas e abrindo caminhos como prática política”9.
Nesse movimento, os sujeitos dos coletivos culturais de periferia estabelecem um projeto cultural para as periferias que supera o lugar de consumidor e avança para a conquista do lugar de criação não somente no campo da produção cultural, como também de políticas públicas, especialmente aquelas que garantam, no âmbito dos Direitos Humanos, o pleno gozo do Direito à Cultura10.
Essas práticas políticas, produções e expressões culturais, criam, segundo a autora, “condições favoráveis para o surgimento de novas formas de conceber políticas públicas, consolidando, dentro da ordem democrática, uma cultura política que potencializa o sentido e as condições de exercer a cidadania”11.
Assim, a FELIZS idealizada pelos “sujeitos periféricos” do Sarau, organizados em coletivos culturais, contribui com um projeto cultural para as periferias que supera o lugar de consumidor e avança para a conquista do lugar de criação e direitos, especialmente o Direito à Cultura, o Direito à Literatura, o Direito à Cidade e os nossos Direitos Territoriais. Consolidando uma cultura política que potencializa e melhora a nossa condição de exercer a cidadania. Isso se consagra na consolidação da FELIZS em sua décima edição em 2024, celebrando uma trajetória importante, sobretudo nas periferias da zona sul de São Paulo. Viva a FELIZS!
Notas
1 GONÇALVES, Thiago Andrade. Espaço, cultura e política na periferia do município de São Paulo: usos do território da Feira Literária da Zona Sul (FELIZS). 95 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Geografia) – Instituto das Cidades – Campus Zona Leste, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2024, p. 24.
2 FELIZS. Feira Literária da Zona Sul. Disponível em: http://www.felizs.com.br/music. Acesso em: 02 out. 2024.
3 Sobre o conceito de “Sujeitos Periféricos” ou “Sujeitas e Sujeitos Periféricos” conforme aperfeiçoamento do conceito presente no último livro publicado por Tiaraju Pablo D’Andrea (2022), no qual diz que “a definição do conceito de sujeitas e sujeitos periféricos é uma tentativa de objetivação sociológica de processos sociais ocorridos nas periferias urbanas paulistanas nas últimas décadas” (D’Andrea, 2022, p. 237). Onde esses agentes sociais-sujeitas e sujeitos periféricos, não partem de uma definição prévia do que seja a política, mas formulam essa definição a partir de sua atuação. Para o autor, “nas últimas décadas, o principal produtor e veiculador de uma narrativa ressemantizadora de periferia foi o movimento artístico e cultural, que também auxiliou no processo social de tomada de consciência de pertencimento a um determinado espaço por parte de moradoras e moradores. Quando essa tomada de consciência foi motivo de orgulho, e não de vergonha, construiu-se um novo entendimento de si próprio. Quando o indivíduo portador desse orgulho agiu politicamente no espaço para a superação das desigualdades urbanas, econômicas, sociais, raciais, de gênero e contra todo tipo de opressão, conceitua-se como sujeita e sujeito periférico” (Idem, p. 238). – D’ANDREA, Tiarajú Pablo. A formação das sujeitas e dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Editora Dandara, 2022.
4 DUARTE, Diego Elias Santana. Sarau do Binho vive! Identidades alteradas e o sarau como processo de identificação periférica. 2015. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
5 BINHO & SUZI SOARES (org.) Sarau do Binho: Antologia II. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial/Sarau do Binho, 2015, p. 7.
6 LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 111.
7 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007, p. 107.
8 RAIMUNDO, Sílvia Lopes. Território, cultura e política: movimento cultural das periferias, resistência e cidade desejada. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017, p. 146.
9 Idem, p. 146.
10 Idem, p. 147.
11 Idem, p. 147.