Canadá: como os inquilinos foram à luta
Em Toronto, inquilinos insurgiram-se contra o preço abusivo do aluguel e a falta de manutenção dos imóveis. Organizaram comitês. Confrontaram corporações imobiliárias. E venceram… Sua luta mostra: há formas criativas de mobilizar territórios contra o poder do capital
Publicado 05/02/2025 às 18:25
Por Bruno Dobrusin | Tradução: Mariana Ruggieri
Este texto foi publicado no número 2 do volume 10 da Revista Rosa, parceira editorial de Outras Palavras
“Isso vai durar o quanto for necessário, até que a empresa ceda às nossas demandas”, dizia Beverly Henry ao canal de televisão estatal CBC. Em 1º de junho de 2023, Beverly e mais quinhentos inquilinos de um prédio no subúrbio York South-Weston, em Toronto, Canadá, começaram uma greve total de aluguéis em protesto aos aumentos excessivos realizados pela empresa proprietária do edifício, a Dream Unlimited. Um mês depois, mais cem vizinhos de um prédio vizinho se juntaram à greve contra a mesma empresa. No 1º de outubro, mais dois prédios, com mais ou menos duzentos inquilinos, haviam começado sua própria greve contra outra empresa, a Barney River. Quase dezesseis meses depois de iniciada a greve, ela finalmente chegou a um fim exitoso. À meia-noite de um sábado, a empresa proprietária enviou uma nota com as condições para iniciar a negociação e buscar uma resolução. Inédito e inesperado, centenas de inquilinos se sentaram à mesa para discutir frente a frente com uma empresa multinacional. É a união — e o número das pessoas participando — que faz a força. Pouco mais de um ano depois de decidir pela greve de vizinhos, ela alcançou vitórias significativas, como a diminuição dos aluguéis, compensações por anos sem reparos nos apartamentos e o reconhecimento do sindicato de inquilinos como um ator legítimo e coletivo. E o mais importante: ninguém perdeu a sua casa.
Como chegamos a essa situação?
Estamos em um bairro da cidade com forte tradição de lutas de inquilinos? Na verdade, não. A maior parte das pessoas que participaram da greve de aluguéis não possuía nenhuma experiência prévia com movimentos sociais ou outras atividades políticas. O bairro de York South-Weston é um subúrbio em Toronto, onde em geral não costumam ocorrer os movimentos políticos mais relevantes da vida da cidade. Os subúrbios foram desenvolvidos para despolitizar e desconectar a população. Mas a organização de inquilinos, composta sobretudo por enfermeiras, cuidadoras de idosos, trabalhadores da rede hoteleira e da indústria, está rompendo esse padrão de se organizar com base no mercado, e está construindo uma organização com base na classe de inquilinos.
O Sindicato de Inquilinos de York South-Weston [YSW Tenant Union] surgiu há 5 anos com objetivos muitos mais modestos do que realizar greves de aluguel. Queríamos juntar as vozes dos inquilinos e das inquilinas do bairro e fazer força política contrária ao processo de deslocamento da classe trabalhadora e da apropriação de todos os espaços de vida por parte das grandes corporações. Mas percebemos rapidamente que nada disso seria simples, e que a luta contra essas corporações precisava ser muito mais profunda do que se imaginava. Essas corporações são parte daquilo que chamamos de o Complexo Industrial de Proprietário [Landlord Industrial Complex]. Controlam os empreendimentos imobiliários, as políticas de moradia dos governos (ou a sua ausência), são os principais doadores de campanhas e possuem uma política declaradamente antissindical contra qualquer organização coletiva de inquilinos.
Encarados por esse monstro de mil cabeças, aprofundamos a organização de base. Fazemos isso a partir de uma base territorial que são os prédios. A grande maioria dos inquilinos do bairro vivem em grandes edifícios, com quinze a trinta andares, com uma empresa que administra todo o edifício. O sindicato se organiza a partir de associações ou comitês em cada prédio, que se encarregam de manter a organização operante e a coordenar as lutas conjuntas com os outros prédios. Atualmente temos em torno de quinze prédios organizados, com ao redor de 2 mil inquilinos ativos no bairro. A organização em comitês locais é fundamental porque não remuneramos ninguém que possa dedicar seu integral à vida do sindicato, de modo que a base depende muito do contato dentro de cada edifício.
Durante esses anos, as lutas têm crescido em tamanho e em relevância política. Se no começo as principais demandas eram por falta de manutenção nos apartamentos, agora elas abrangem outras questões.
Como se faz e se sustenta uma greve de inquilinos?
Deflagrar uma greve de inquilinos não é fácil e nem pode acontecer de um dia para o outro. Em nosso sindicato já estudávamos há alguns anos as melhores estratégias para confrontar as empresas, especialmente quando elas ignoravam ou não cumpriam com os acordos que havíamos conseguido. No caso do prédio localizado em 33 King St, com mais de 400 apartamentos, uma maioria de inquilinos chegou a esse ponto de saturação durante o inverno de 2023, quando a empresa proprietária do edifício, a Dream Unlimited, negou-se a cumprir o acordo assinado seis meses antes e a devolver o dinheiro pelos aumentos abusivos dos aluguéis. Embora o acordo tenha sido validado pelo Tribunal de Inquilinos e Proprietários da província, a empresa não estava obrigada a cumpri-lo. Depois de anos de mobilização diante da empresa, da casa do CEO e de outros empreendimentos da Dream na cidade, ficou evidente que a única alternativa possível para forçar a empresa a cumprir o acordo e se sentar para negociar as outras demandas do sindicato era realizar uma greve total de aluguel com a adesão maior de inquilinos do edifício.
Foi assim que, entre março e junho de 2023, um grupo grande de inquilinos organizados no edifício se deu como tarefa convencer um mínimo de duzentos apartamentos a se juntarem à greve. Esse número indicava a metade mais um dos apartamento do prédio e um apoio, portanto, incontestável à greve. Para chegar a esse número foi preciso bater em portas semanalmente, organizar grupos de Whatsapp, ir aos pontos de ônibus pela manhã cedo, fazer eventos sociais, tudo para conseguir ter conversas cara a cara com as pessoas potencialmente interessadas na greve. Após três meses de preparação, se chegou ao número estabelecido de apartamentos e se declarou, a partir de 1º de junho de 2023, a greve no edifício. Essa greve foi crescendo e se expandido aos demais prédios que fazem parte do sindicato.
Muitas vezes nos perguntam sobre a legalidade das greves e sobre os medos de despejos por parte das autoridades. A realidade é que as greves constituem uma ruptura do contrato entre inquilino e proprietário. Mas esse contrato já havia sido rasgado em mil pedaços pelos abusos das empresas, e é isso que os inquilinos respondem. O fato de nenhum das centenas de inquilinos participando das greves terem sido despejados se deve, essencialmente, ao número de pessoas envolvidas.
Para realizar um despejo, seria preciso desalojar centenas de pessoas ao mesmo tempo. E essas pessoas estão organizadas, preparadas para isso e dispostas a lutar. Até o momento, nenhum juiz assinou essa ordem. Além disso, existe uma estratégia legal que complementa a ação coletiva. Essa estratégia é, essencialmente, demonstrar as violações constantes dos direitos dos inquilinos por parte das empresas proprietárias. Isso dificulta que elas acionem mecanismos judiciais.
Dizemos, então, que a greve se sustenta por sua massificação e também pelo seu ativismo. Não podemos ser ingênuos e esperar que um tribunal resolva a questão. A pressão sobre as administradoras é contínua e buscamos realizar ações que perturbem a sua vida pelo menos uma vez por semana.
Para onde vai o movimento?
As greves em Toronto têm demonstrado que os vizinhos organizados não têm por que temer as grandes empresas que concentram as moradias e nem o discurso dominante que indica que ser inquilino é ser menos, ou que apenas a propriedade faz a felicidade. Além da manutenção das unidades, meses de aluguel em compensação e mudanças nas dinâmicas de vida nos prédios, os inquilinos ganharam dignidade e constroem uma experiência coletiva que lhes dá esperança.
Essas greves podem ser reproduzidas em outros lugares? Acreditamos que sim. Elas triunfaram apesar de serem totalmente ilegais e de romperem com as normas estabelecidas de protesto. Triunfaram, essencialmente, porque centenas de pessoas se juntaram e consolidaram uma luta coletiva, em tempo que essas lutas parecem ser minoritárias. Desde o começo da greve, e sobretudo a partir da vitória, chegaram inúmeros chamados e mensagens de inquilinos de toda a província e de todo o país, pedindo apoio para construírem suas próprias greves.
Está claro que o movimento de inquilinos pode se converter em um dos movimentos populares mais importante de nossa época. O desafio agora é dar a ela uma base de sustentação que permita responder a esses chamados, consolidar a organização e ampliar, assim, mais conflitos pela cidade, pela província e pelo país. Sabemos que não será fácil, mas parece que estamos em um bom caminho.