Brasília: ainda mais especulação imobiliária?

Plano Diretor do DF tem um ardil para beneficiar construtoras e imobiliárias: superdimensionar o crescimento populacional, contrariando projeções do Censo. Desvio de recursos para obras desnecessárias e grande vazios urbanos serão as consequências

Foto: Renato Alves / Agência Brasília
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O Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) é um instrumento básico da política de expansão e desenvolvimento urbanos, de longo prazo e natureza permanente, que deve ser consagrado em lei complementar, cujo preparo é de competência privativa do governador (Executivo) do Distrito Federal.

O governo do Distrito Federal (GDF) deve executar o Plano Diretor juntamente com a Lei de Uso e Ocupação do Solo e Planos de Desenvolvimento Local, para promover adequado ordenamento territorial, integrado aos valores ambientais, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo. [Arts. 15, 71 e 163 da Lei Orgânica do DF]

Como instrumento da política territorial do DF, o Plano Diretor tem como objetivos definir e orientar os agentes públicos e privados na gestão adequada dos espaços urbanos e rurais na Capital Federal, bem como nas consequentes infraestruturas necessárias.

Assim, o PDOT é o mais importante instrumento de planejamento para definir como o território do DF será ocupado ao longo do tempo, sendo um dos seus principais desafios compatibilizar a evolução do uso do território com as projeções de evolução da sua população ao longo do período de alcance do Plano.

O Plano Diretor, em revisão pelo governo, não vem levando em consideração as últimas projeções populacionais para o DF e muito menos os resultados do censo de 2022.

Há muito, o governo do Distrito Federal deixou de promover projeções populacionais próprias , o que a Codeplan (Companhia de Planejamento do Distrito Federal) costumava fazer periodicamente. Só se pode contar com as projeções elaboradas em estudos específicos, como as do Plano Distrital de Saneamento Básico – PDSB, por exemplo. Tais estudos, por serem anteriores, não consideram as informações constantes no Censo 2022. O único estudo divulgado que leva em consideração os resultados do Censo é o publicado pelo IBGE em 2024. E, como se mostrará adiante, quando se utiliza os estudos do IBGE 2024 tem-se distorções significativas nos resultados das projeções em comparação aos demais estudos, havendo enormes discrepâncias entre as áreas urbanas e infraestruturas necessárias ao longo do tempo.

A última projeção populacional divulgada pela Codeplan foi para o período de 2020 a 2030, a qual adotou as mesmas populações totais para o DF, ano a ano, constantes da projeção elaborada pelo IBGE, em seu estudo divulgado em 2018, quando estimou as populações totais do DF de 2018 a 2060. O que de fato a Codeplan fez foi distribuir espacialmente a população projetada, ano a ano, pelas regiões administrativas existentes à época.

Neste contexto, é surpreendente constatar que o Executivo local vem ignorando a projeção populacional elaborada pelo IBGE para o DF em 2024 – e o governo, na elaboração do Plano Diretor, do censo populacional 2022. As consequências são graves.

Essa omissão serve para manter o falacioso discurso de que o DF apresenta um crescimento anual médio de 60 mil pessoas, o que indicaria a necessidade de criação de novos empreendimentos urbanos para abrigar os contingentes populacionais decorrentes desse formidável (e fictício) crescimento. Ora, os resultados dos Censos de 2010 e 2022 mostram que a população total do DF passou de 2.570.160 habitantes em 2010 para 2.817.381 em 2022, crescendo 247.221 no período, o que resulta em um crescimento médio de 20.602 habitantes ao ano, ou seja, cerca de 1/3 do que tem sido divulgado aos quatro cantos do DF.

Na verdade, verificou-se uma redução significativa do ritmo de crescimento populacional no DF: a taxa geométrica média anual de crescimento da população passou de 2,32% ao ano no período de 2000 a 2010 para 0,77% ao ano no período de 2010 a 2022.

A segunda grande consequência da atitude do GDF está na majoração das projeções populacionais para o DF para os próximos anos, o que impede que a ocupação territorial do DF seja planejada de maneira adequada e realista e que se possa considerar, nesse planejamento, questões fundamentais como a sustentabilidade ambiental e a necessidade de aumentar a resiliência das nossas cidades no contexto das mudanças climáticas, o que, infelizmente, não vem ocorrendo.

A título de exemplo de descompasso entre as projeções populacionais para o DF e os resultados do Censo 2022, basta destacar que para o ano de 2022 a Codeplan estimava uma população para o DF de 3.130.014 habitantes (312.633 a mais do que apontou o Censo 2022) e o Plano Distrital de Saneamento Básico (PSDB) apresentava uma estimativa de 3.341.579 habitantes (524.198 habitantes a mais do que o levantamento do Censo). Para 2030, a projeção populacional da Codeplan é de 3.402.180 habitantes, enquanto a do PDSB é de 3.770.409 habitantes.

Conforme já mencionado anteriormente, o único estudo de projeção populacional divulgado para o DF que leva em consideração os resultados do Censo 2022 foi elaborado pelo IBGE em 2024, com projeções anuais da população total do DF até 2070.

O novo estudo do IBGE indica que a população do DF a partir de 2043 passa a diminuir!

A maior população no DF se dará em 2042, correspondendo a 3.118.159 hab. Ou seja, pela projeção populacional do IBGE, o DF terá um incremento populacional máximo, a partir de 2022, de 300.778 habitantes. Por esse estudo do IBGE a projeção populacional do DF para 2067 é de 2.810.837 habitantes, valor menor do que aquele verificado no Censo de 2022 (2.817.381 habitantes). Estes números se coadunam com a expectativa do IBGE de que a população do país vai parar de crescer em 2041.

A terceira grande consequência da omissão do governo do Distrito Federal em atualizar suas projeções populacionais é errar grosseiramente na estimativa de reais necessidades de infraestrutura urbanas para o DF, incluindo novas áreas urbanizadas, abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana, pavimentação, mobilidade, distribuição de energia, dentre outras. Certamente os estudos existentes precisam ser revistos a fim de se evitar investimentos de dezenas de bilhões de reais de maneira desnecessária.

Feitas essas considerações, algumas questões precisam ser respondidas:

Tendo em vista que o IBGE considera que o DF terá um incremento populacional, máximo de 300.778 e que a partir de 2043 a população começa a declinar, é de fundamental importância compatibilizar o Plano Diretor a essas projeções. Quaisquer planejamentos de incrementos populacionais superiores a esse valor precisam ser justificados de maneira adequada. Assim, pergunta-se:

a) Para além dos diversos parcelamentos do solo destinados a regularização de áreas de interesse social (ARIS) com previsão de população de mais de 160 mil habitantes, parcelamentos estes fundamentais para que se tenha uma cidade sustentável e que se garanta o direito digno a moradia a toda população do DF, o governo está considerando no Plano Diretor várias novas áreas de ocupação no DF, entre as quais a expansão do setor habitacional Taquari para cerca de 100 mil habitantes, a urbanização da área denominada DF 140 para uma população de saturação de quase 1 milhão de habitantes, a Avenida Transbrasiliana para um total de cerca de 250 mil habitantes, a ocupação da bacia do córrego Estiva, para uma população de saturação de cerca de 160 mil habitantes. Que populações ocupariam esses empreendimentos?

Somente esses poucos empreendimentos já demonstram a total dissociação do que está sendo considerado no Plano Diretor com as projeções populacionais elaboradas pelo IBGE e que consideram as informações contidas no Censo 2022. Se se considerar todos os empreendimentos previstos e suas densidades máximas de ocupação, o total de população passível de serem assentadas em todas as novas áreas urbanizáveis no DF é muito superior ao somatório dos valores anteriormente apresentados.

b) A quem interessa essa criação de inúmeros novos parcelamentos urbanos e quem efetivamente será beneficiado com eles?

Certamente os maiores beneficiados serão os especuladores imobiliários e os grandes empresários responsáveis pelas implantações de infraestruturas urbanas (que movimentam dezenas de bilhões de reais). Como consequência dessa dissociação entre expansões de áreas urbanas e crescimento populacional é de se esperar o surgimento de enormes vazios urbanos, conforme já verificado em diversas outras cidades, inclusive na vizinhança do DF, como é o caso do Novo Gama no entorno, que tem vazios de cerca de metade dos seus lotes urbanos. Destaca-se que essa situação de vazios urbanos causa elevados custos de manutenção e de recuperação de infraestruturas ociosas e precocemente inutilizadas, onerando o erário e sobrecarregando injustamente o contribuinte;

c) Quais os motivos que levam o o governo do Distrito Federal a propor tantos novos parcelamentos urbanos, no lugar de promover estudos de aproveitamento das infraestruturas existentes nas áreas já ocupadas (a média de ocupação por domicílio no DF na década de 1980 era de 5,50 hab/dom e em 2022 essa média passou para 2,79 hab/dom, o que implica em implantações de infraestruturas que se encontram ociosas)?

Com o aproveitamento das urbanizações existentes pode-se reduzir os impactos ambientais negativos em tantas novas áreas para a ocupação urbana.

Mais grave, ainda, é constatar que o “planejamento” dessas novas ocupações não considera o impacto das mudanças climáticas e a exigência de cidades mais resilientes. A título de exemplo, a simples verticalização das áreas que apresentam infraestruturas ociosas seria suficiente para absorver a maior parte do crescimento populacional previsto para o DF até o atingimento da sua população máxima prevista para 2042 no estudo do IBGE.

d) Quais motivos levam o governo a não regulamentar integralmente o ZEE – Zoneamento Ecológico-Econômico do DF, aprovado pela Lei Distrital no 6.269/2019?

A grande motivação para a não regulamentação plena do ZEE é que esse instrumento de planejamento e gestão territorial, que também deve ser considerado nas políticas públicas do DF, estabelece a bacia hidrográfica como unidade de planejamento. A consideração do conteúdo do ZEE certamente imporia uma série de novas restrições ao Plano Diretor o que não interessa aos seus reais beneficiários.

Não há dúvidas de que a elaboração do novo Plano Diretor, da maneira que está sendo conduzida pelo GDF, ignora, sem qualquer justificativa, a projeção populacional do IBGE para o DF divulgada em 2024. Não há precedente que justifique tal desprezo. Ao contrário, a Codeplan vinha utilizando a penúltima projeção do IBGE para fazer suas projeções para o período 2020 a 2030. Cabe um mínimo de coerência!

É preciso urgentemente rever os caminhos que estão sendo tomados na revisão do Plano Diretor a fim de que se possa ter um planejamento adequado para a ocupação territorial no DF e que os conceitos adequados de cidades resilientes e de sustentabilidade do meio ambiente sejam considerados. É fundamental a construção de cidades mais humanizadas, estruturadas com o objetivo de suportar as mudanças climáticas em pleno andamento, além de serem coerentes com as estimativas de projeções populacionais existentes para o DF.

[Este artigo contou com contribuições e revisões do eng. Marcos Helano Fernandes Montenegro, graduado e mestre em engenharia urbana e de construções, membro do ONDAS e do Jornalista Márcio Godinho Oliveira, com especialização em Ciência de la Información na Espanha]

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