A Praça do Quadrado e sua singela insurgência
Em Cidade Tiradentes – um bairro paulistano esquecido pelo Estado e desprezado pelo mercado – ação de dois coletivos mobiliza a comunidade, reurbaniza praça e relembra: consciência política é impulsionada também por gestos despretensiosos, mas carregado de valores antissistêmicos
Publicado 26/03/2025 às 18:56

A Cidade Tiradentes é um dos mais emblemáticos entre os diversos e heterogêneos bairros de São Paulo. O distrito está localizado no extremo leste da periferia da cidade, e possui o maior complexo de conjuntos habitacionais verticais populares da América Latina. Seu surgimento nos anos de 1980 sucede parte das ações da Companhia Metropolitana de Habitação – Cohab – para enfrentamento do déficit de moradia popular (Cordeiro, 2013). Todo processo institucional desse programa de habitação popular foi condicionado a um planejamento urbano que redesenhou a cidade em polos socioespaciais, cujo objetivo expressa a estratificação socioeconômica por meio da periferização paulistana. Neste sentido, o programa afastou intencionalmente os trabalhadores das centralidades que condensaram as experiências das pessoas, inserindo-as em circunstâncias de escassa infraestrutura urbana, dificultando o acesso a serviços essenciais e a mobilidade do território (Cordeiro, 2013).
O paradoxo das vivências desse território é marcado há décadas pelas discrepâncias econômicas e sociais urbanas. Entre as promessas políticas da municipalidade de melhorias estruturantes, e os anseios de melhoria de vida, dados sobre o território nos revelam o gritante aspecto de desigualdade face a outros bairros da cidade. A análise de indicadores relacionados a dados sobre mortalidade, trabalho, cultura e lazer, esporte e saúde pública, indicam o contraste com os bairros mais ao centro da cidade. O Mapa da Desigualdade do ano de 2023 identificou que a Cidade Tiradentes tem a menor taxa de emprego formal da cidade de São Paulo. O mesmo estudo apontou no quesito equipamento esportivo público que o bairro também apresenta um índice reduzido de equipamentos esportivos para cada 10 mil habitantes por distrito.
Nessa conjuntura de discrepâncias da cidade, resultado de um planejamento urbano que privilegiou territórios e esqueceu outros, despontam potências coletivas de transformação nessas áreas desguarnecidas de infraestruturas e serviços. Desde seu nascedouro, o bairro de Cidade Tiradentes suscita o trabalho coletivo, seja entre os mutirões para construção das casas ou na atuação política pela reivindicação de políticas públicas junto aos órgãos públicos. As associações de bairro sempre batalharam por melhorias na infraestrutura do bairro (Cordeiro, 2013). Diante do contexto de segregação e da estadia do abandono do Estado, novas experiências de reivindicações por direitos sociais surgiram nesse espaço vivido e praticado (Ribeiro, 2009) na cidade de São Paulo.
Importante destacar, que esses coletivos sociais estão habitados na contextualização constitucional de um Estado Democrático de Direito, pois a Constituição Federal de 1988 assegurou a participação popular no Brasil no exercício de suas aspirações diretamente acerca do meio social. A vista disso, o Estatuto das Cidades objetiva o pleno desenvolvimento das funções sociais e a participação da sociedade nas cidades para execução de planos e projetos. Seu artigo. 2º, inciso II, estabelece “…participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano...”.
Mesmo a partir desse ponto de vista constitucional normativo brasileiro, que colabora com a atuação desses coletivos, os mecanismos de participação são regidos de travas tecnoburocráticas (Bresser-Pereira, 1977), que desviam o interesse da sociedade na participação e na intervenção social nas questões das cidades como moradia, espaço de lazer, entre outras demandas sociais.
Fato é, que, mesmo com esse contorno institucional normativo de participação popular nas cidades, vem sendo observada formas diversas de intervenção e participação social no jogo das cidades, com destaque para as ações sociais insurgentes que muitos grupos fomentam em áreas de precária oferta de serviços, a exemplo dos territórios periféricos. Essas ações insurgentes planejadoras (Miraftab, 2016) são contra hegemônicas, e estabelecem métodos colaborativos do fazer, com ações diretas de intervenção nos territórios.
Em um de seus textos “Planejar por quê?” (Limond, 2021) a professora Ester Limond eleva o sentido das ações sociais nos territórios brasileiros frente a tantas desigualdades e mazelas no país. Para ela, chegam ser utópicas essas intervenções, mas é essa utopia das ações sociais a força propulsora de planejar cidades com seus próprios arranjos sociais coletivos. Essas ações procuram conceber territórios justos e igualitários. É essa força que move a utopia das ações sociais insurgentes de transformar e sacudir o cotidiano dos espaços vivido e praticado.
Tais ações atropelam os discursos do planejamento institucional atravessados de discursos da modernidade urbana tecnológica, da tecnoburocracia e dos interesses políticos de preservar o poder. O planejamento, via de regra, deixa de lado, assim, os pobres, favorecendo a exclusão social (Limond, p. 18). São ações aparentemente simplórias, mas que abrangem impactos relevantes nos territórios periféricos. A produção e ressignificação de espaços banais, como uma praça por exemplo, trará benefícios imediatos em uma comunidade desprovida de equipamentos. Esse planejamento institucional da exclusão regressa no território periférico com discursos envernizados de modernidade tecnológica, onde o atraso estatal é a regra.
A perspectiva da ação social insurgente é o direito à cidade. Não se trata do direito normatizado da participação popular, mas o direito a agir na cidade com regras coletivas; o direito à pluralidade de ações sociais na cidade; o direito de transformar as cidades fora das linhas normativas; o direito de ocupar e transformar cidades. Essa utopia não é ideológica, ela é necessária frente aos contrastes sociais brasileiros. O direito à cidade se relaciona a utopia da transformação, é o direito de lutar pela cidade, de labutar por cidades igualitárias.
A busca do direito à cidade através das ações sociais é necessária e importante. As ações sociais nos territórios periféricos partem da conjuntura estrutural do descaso estatal, da carência material do território e dos mecanismos que atravessam as subjetividades dos atores envolvidos na ação e da própria comunidade do território.
As complexidades das relações Estado-burocracia e a comunidade periférica com seus interesses de bem-estar social no território se colocam em choque no sistema de interesses hegemônicos espórios centralistas. Nesse contexto, as práticas insurgentes ou até mesmo ações insurgentes despontam de características essenciais para estabelecer uma ação contra-hegemônica, uma ação transgressora e uma ação criativa (Miraftab, 2014).
As ações sociais insurgentes têm como eixo dorsal a criação de estratégias anti-hegemônicas, que constituem eventos afastados da ordem do sistema econômico e político institucional, ou seja, são processos de participação coletiva para criação de espaço de decisão e iniciativa entre os envolvidos no objeto. Um exemplo clássico e popular é o rateio de custos por meio da famosa “vaquinha”, onde todos apoiadores (envolvidos ou não diretamente) participam de alguma forma na execução de uma ação por meio da contribuição financeira.
Esse processo pode ser considerado transgressor, pois está desviado do amparo normativo estatal, e desafia as fronteiras do fazer (Certeau, 2011). Nesse sentido, rompe com a dicotomia do Estado-Poder operando ações transgressoras de construção e ressignificação no território.
O vigor desse processo está na criatividade, na construção de pontes que estabeleçam a relação do imaginário vivido no cotidiano do território, articulado com o presente e vislumbrando um futuro de cidadania contínua.
Nesse cenário, as ações insurgentes das (os) sujeitas (os) periféricas (os) (D´andrea, 2022) na construção de possibilidades do concreto e do imaginário, viabilizam rupturas do estado das coisas. Esse corte do pensamento único que condiciona apenas o poder de ação planejadora nos territórios nas cidades apenas ao Estado-Poder, é rompido por eventos insurgentes de ocupação do fazer nos territórios periféricos.
Para que possamos compreender um pouco esse referencial e conceitos, vamos ao caso concreto da intervenção realizada por dois coletivos que atuam no bairro da Cidade Tiradentes em uma área de praça que estava em abandono, a chamada Praça do Quadrado.
Para melhor compreensão, é importante conhecermos um pouco dos dois coletivos de forte impacto de ações e intervenções no território. O primeiro é o coletivo Academia Carolinas que tem como proposição: “Lutamos pelo empoderamento de mulheres e pela transformação social”. Em uma entrevista ao canal alternativo TV Social, a presidente do coletivo, professora Simone Rego, disse que o sentido da entidade é o “empoderamento de pessoas” (Tv Social, 2022). A linha de frente do trabalho deste coletivo preenche a dedicação em direitos fundamentais importantes, como educação, capacitação, geração de renda e fortalecimento de vínculo familiar e social.
O outro coletivo é o Love CT (Instagram), que transmuta o ideário de transformação de pessoas a partir da prática de skate, tendo como fundamento central a educação, arte e a cultura do território. O coletivo é formado pelos principais skatistas brasileiros que moram no território (Machado, 2022). O anseio de transformação de pessoas e do território a partir da prática de skate, mobilizou esses skatistas a estabelecerem uma conexão de responsabilidade social junto à comunidade local com a vivência do skate, e ao lado da Academia Carolina se constituíram em referências de ação social no bairro.
A intervenção de ocupação e ressignificação do espaço público na Praça do Quadrado, foi realizada por uma chamada convocatória nas redes sociais dos dois coletivos. A chamada tinha como intenção o pedido de apoio voluntário financeiro e captação de mão de obra voluntária para a revitalização do espaço. O evento foi realizado no em 8 de fevereiro com “mão na massa”, brincadeiras, eventos esportivos, muito skate e com a presença especial das crianças (folder do evento no Instagram) do território.
A primeira reflexão que nos provoca a partir dessa ação, é o formato de chamamento público nas redes sociais para que não apenas os coletivos participassem do ato, mas a própria comunidade local, estabelecendo assim, laços de sociabilidade da ação. A diversidade das formas de participação conecta as pessoas a partir do entendimento de que toda ajuda importa; e independe qual seja sua habilidade ou tarefa, importa a participação, convocando à ação na dinâmica da intervenção na ressignificação dos espaços dos laços de vivência.
A colaboração financeira é outro eixo importante na ação. Como vimos, uma das características da ação social insurgente é ser contra-hegemônica; nesse sentido, não receber recursos financeiros de ordem estatal nem de ente privado. Mesmo que a ação comporte a colaboração de estrutura para o evento de uma entidade normatizada, ela não foi o motor que regeu a ação de revitalização do espaço; pelo contrário, foi a ação dos coletivos e da comunidade local.
A razão motriz desse encontro social para dar luminosidade (Ribeiro, 2012) para esse espaço apagado, foi a comunidade local e suas crianças. Cada uma delas trouxe suas particularidades, sua alegria e sua espontaneidade para reacender a luz de vida dessa praça.
Nessa perspectiva, o intento desse texto foi mostrar que as(os) sujeitas(os) periféricas(os) ainda ascendem às ações sociais insurgentes de planejamento nesses territórios. Mesmo com todos os processos normativos ao longo da história brasileira após redemocratização de 1988, os espaços de participação ativa e interventiva ainda são burocráticos. Por isso, não é nada fácil receber apoio e recursos públicos da municipalidade para fazer uma intervenção de revitalização em uma praça, requer-se de processos documentais de comprovação de muitos itens e cumprimento de exigências legais.
Já a iniciativa e coragem desses coletivos, que moram e conhecem as dificuldades materiais e normativas, que compreendem os melindrosos caminhos institucionais de melhoria de seus territórios, ergue as manga e colocam a “mão na massa”. O direito à cidade é esse comportamento audacioso de quebrar barreiras institucionais e construir cidades, reformar parques e praças, fazer picos de skate, fazer rodas de samba, dar cursos ao ar livre, estimular arte de rua (grafismo), fazer brincadeira nas ruas, usar e mudar cidades.
Temos nessa intervenção destemida desses dois coletivos uma demonstração da ação social insurgente nos territórios periféricos, diga-se de passagem, como tantas outras existentes em outros territórios periféricos. A revitalização da Praça do Quadrado é uma referência de ação no território vivido e praticado, uma práxis do cotidiano do território sabotado, um molde de direito à cidade a ser seguido no espaço democrático de ações. Trata-se de medida correta face à omissão e desprezo do Estado, um exemplo a ser seguido por todos brasileiros, de forma coletiva.
É importante fazer mais uma reflexão sobre ações sociais insurgentes como o caso da Praça do Quadrado. Essas ações coletivas estão presentes na memória de muitos brasileiros/as em diferentes períodos do ano e que carregam marcas culturais da nossa forma de organização. Lembremos dos blocos de carnaval dos bairros, que surgiram a partir da ideia de amigos e colaboradores; da pintura dos tapetes coloridos nas ruas das igrejas em dia de Corpus Christi; das ruas pintadas a cada quatro anos, na Copa do Mundo. Isso! Na Copa do Mundo! Todo ano de Copa do Mundo de Futebol, as pessoas se mobilizam, se organizam, fazem “vaquinhas”, colocam a “mão na massa” para colorir nossas cidades de verde e amarelo. As ruas ficam coloridas, enfeitadas, alegres e cheias de vida. E o verde e amarelo desponta nas paredes cinzentas, nas guias embranquecidas, na calçada do vizinho importuno que abre o sorriso para a criançada que ali está pintando sua calçada. A união de forças, a mão na massa, as moedas contadas, e o verde e amarelo surge como uma grande ação social insurgente da torcida brasileira da “Seleção Canarinho”.
Tais ações deveriam ser despertadas todos os dias no Brasil, como na ação social dos coletivos Academia Carolinas e Love CT, que fizeram o famoso mutirão e, com a “vaquinha”, mobilizaram a comunidade local e colocaram a criançada para pintar, revitalizar e brincar na praça.
Obviamente, não podemos esperar a cada quatro, dez ou vinte anos para cuidar da praça abandonada, de um parque cheio de entulho, de uma quadra poliesportiva quebrada. Façamos isso sempre, o aqui e agora. Sigamos essas ações sociais insurgentes desses dois coletivos da periferia da zona leste de São Paulo. O direito à cidade agradece!
Referências
Academia Carolinas. Disponível link da rede social Instagram: https://www.instagram.com/academiacarolinas/. Acesso em 17 de fev. de 2025.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Notas introdutórias ao modo tecnoburocrático ou estatal de produção. CEBRAP (Impresso), v. 20, p. 77, 1977. Disponível em:https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/bresser_-_notasintrodutoriasmodotecnoburocratico.pdf
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Rio de Janeiro, RJ: Editora Vozes. Petrópolis, 2011.
Chamada convocatório de revitalização da praça do Quadrado pelas redes sociais do dois coletivos, disponível no link: https://www.instagram.com/academiacarolinas/reel/DFXxjajuN8X/-revitaliza%C3%A7%C3%A3o-da-pra%C3%A7a-do-quadrado-voc%C3%AA-pode-fazer-parte-dessa-transforma%C3%A7%C3%A3o-es/. Acesso em 17 de fev. de 2025.
CORDEIRO, Simone Lucena. Cidade Tiradentes e Cohab: mordia popular na periferia de São Paulo: projetos e trajetórias de 1960-1980. São Paulo: Alameda, 2013.
D´ANDREA, Tiaraju Pablo. A formação das sujeitas e dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. 1ª ed. São Paulo: Editora Dandara, 2022.
Folder do evento disponível no link: https://www.instagram.com/p/DFyPz2VPf0G/. Acesso em 17 de fev. de 2025.
LIMONAD, Ester. Planejar por quê?. In: LIMONAD, E.; MONTEIRO, J. C.; MANSILLA, P. (orgs.) Planejamento territorial: reflexões críticas e perspectivas, vol. 1. São Paulo: Editora Max Limonad, 2021.
Love CT. Disponível link da rede social Instagram: https://www.instagram.com/lovect_skate/. Acesso em 17 de fev. de 2025.
MACHADO, Giancarlo Marques Carraro. A cidade do skate: sobre os desafios da citadinidade. 1ª ed. São Paulo: Hucitec, 2022.
MIRAFTAB, Faranak. Insurgência, planejamento e a perspectiva de um urbanismo humano. Revista Brasileira de Estudos Urbanos. (Online). Recife, v.18, n.3, p.363-377, 2016.
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Cartografia da ação social: região latino-americana e novo desenvolvimento urbano. En: PUGLIESE, H.; EGLER, T. C. (Compiladores). Otro desarrollo urbano: ciudad incluyente, justicia social y gestión democrática. Buenos Aires: CLACSO, pp. 147-156, 2009.
___ Homens Lentos, Opacidades e Rugosidades. Redobra, n. 9, ano 3, 2012. Disponível em: http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2012/04/redobra9_Homens-Lentos-Opacidades-e-Rugosidades.pdf. Acesso em 17 de fev. 2025.
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TV Social, 2022, canal do Youtube disponível o link em: https://www.youtube.com/watch?v=Pf7KfZ4IUNo. Acesso em 17 de fev. 2025.
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