W.E.B. Du Bois, a primeira voz do pan-africanismo

O pensador foi um dos primeiros a ousar fazer sociologia do ponto de vista dos racializados. Fósforo Editora lança, pela primeira vez no Brasil, coletânea que mescla ensaios, narrativas e poemas do ativista estadunidense. Leia o primeiro capítulo e concorra a exemplares

W. E. B. Du Bois por Carl Van Vechten [1946] | Fonte: Wikimedia commons
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William Edward Burghardt Du Bois (1868), ou apenas “W. E. B.” Du Bois, nascido em Massachusetts, nos Estados Unidos, é considerado hoje um dos pais da sociologia e um patrono do pan-africanismo.

Seus estudos foram pioneiros e fundamentais para firmar a sociologia enquanto uma das ciências sociais. A pesquisa que empreendeu com 5 mil pessoas da população negra da Filadélfia tem especial destaque nesse sentido: foi o primeiro estudo de seu país que se propôs a identificar os desafios sociais dessa comunidade.

Para o movimento negro estadunidense, Du Bois é uma de suas mais importantes figuras, tendo sido um dos fundadores da maior e mais influente organização por direitos civis dos EUA: a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês).

Para Du Bois, o capitalismo é a causa fundante do racismo, portanto, apenas abolindo tal sistema seria possível alcançar o respeito e a justiça entre todas as raças. Por isso, após a Primeira Guerra Mundial, filiou-se ao Partido Comunista e foi simpático ao marxismo até seus últimos dias – ainda que com ressalvas quanto à negligência da questão negra no processo revolucionário e internacionalista.

Com uma produção absolutamente prolífica, ao longo de sua vida publicou pelo menos mais de 20 livros, além de ensaios, novelas, poesias e pesquisas acadêmicas como a já citada.

Sua obra-prima As almas do povo negro (1903), além de ser considerada basilar para o movimento negro dos Estados Unidos do século XX, também estabeleceu uma das maiores contribuições à sociologia ao afirmar que a questão central de seu século seria o problema da linha de cor – divisão global de poder e status baseada na raça e em como ela estrutura o capitalismo e a modernidade.

Outro importante conceito desenvolvido é o de dupla consciência, que, de acordo com o autor, refere-se à necessidade que pessoas negras têm de ter uma clara autoconsciência; em outras palavras, como enxergam a si mesmas, mas também como o mundo as enxerga – a questão de como sua cor é “lida” externamente.

Os leitores brasileiros agora podem acessar mais uma de suas preciosas produções, inédita em português, Água escura: vozes de dentro do véu, recém-lançada pela Fósforo Editora, com tradução de André Capilé, Floresta e Nina Rizzi.

Outras Palavras e Editora Fósforo irão sortear um exemplar de Água escura: vozes de dentro do véu, de W. E. B. Du Bois, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 1/12, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Publicado originalmente em 1920, o volume alterna entre ensaios, narrativas breves e poemas que abordam temas como as leis estadunidenses Jim Crow, a emancipação feminina pelo voto, as disparidades entre trabalhadores brancos e negros, as condições dos trabalhadores domésticos, das mulheres negras e da evasão escolar entre as populações racializadas.

O escritor associa a opressão capitalista do “mundo de cor” aos entraves de uma democracia plena, tecendo sua análise com a poética e as temáticas da religiosidade cristã, que remete ao papel social das igrejas para as afrodiaspóricas.

No decorrer dos escritos, emergem conceitos caros à sua teoria, como a “linha de cor”, o “décimo talentoso”, o “véu” do subtítulo da obra  – que é a divisão que separa as pessoas negras do restante do mundo – e a já citada “dupla consciência”, gerada pelo racismo nos indivíduos negros.

Contudo, ainda que as análises de Du Bois tenham sido de extrema importância à sua época, o pesquisador caiu em ostracismo durante boa parte do século XX. Para o professor Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, isso se deve ao fato de que Du Bois inaugurou a possibilidade de se “fazer uma sociologia do ponto de vista dos colonizados, ou melhor, do ponto de vista dos racializados que não podem prescindir da noção de raça para seu projeto de reconstrução social, cultural e de seu soerguimento moral.”

Portanto, além de ampliar a compreensão do pensamento deste que é um dos principais teóricos da situação racial nos Estados Unidos pós-abolição, o volume serve ao imprescindível resgate de seu legado.

Leia, logo abaixo, o primeiro capítulo da edição. Boa leitura!


Credo [1]

Creio em Deus, que de um só sangue fez todas as nações que na Terra habitam. [2] Creio que todos os homens, pretos, pardos* e brancos, são irmãos, variando conforme o tempo e a oportunidade, em forma, talento e atributos, mas sem diferir em nenhum aspecto essencial, semelhantes na alma e na possibilidade infinita de desenvolvimento.

Em especial, creio na Raça Negra: na beleza de seu gênio, na doçura de sua alma e na firmeza daquela sua mansidão que ainda herdará esta Terra turbulenta.

Creio no Orgulho da raça, na linhagem e no eu: em um orgulho de si tão profundo a ponto de desprezar a injustiça de outros eus; em um orgulho de linhagem tão grandioso a ponto de não desdenhar do pai de nenhum homem; em um orgulho da raça tão galante a ponto de não oferecer bastardia ao fraco, nem implorar laços matrimoniais ao forte, com a consciência de que os homens podem ser irmãos em Cristo, ainda que não sejam irmãos pela lei.

Creio no Serviço — no serviço humilde e reverente, desde o engraxar das botas ao clareamento das almas; pois o Trabalho é o Paraíso, a Indolência é o Inferno, e o Salário é o “Muito bem!” do Mestre, que convocou todos os que trabalham e sofrem, sem fazer nenhuma distinção entre as mãos de algodão pretas e suadas da Geórgia e as primeiras famílias da Virgínia, pois toda distinção que não esteja baseada em feitos é diabólica, e não divina.

Creio no Diabo e em seus anjos, que trabalham arbitrariamente para diminuir as oportunidades de seres humanos esforçados, em especial quando pretos; que cospem na face dos caídos, atacam aqueles que não podem revidar, creem no pior e trabalham para prová-lo, odiando a imagem que seu Criador estampou na alma de um irmão.

Creio no Príncipe da Paz. Creio que Guerra é Morte. Creio que os exércitos e as marinhas são, no fundo, o ouropel e a gabarolice da opressão e do mal, e creio que a perversa conquista das nações mais enfraquecidas e escuras pelas nações mais brancas e fortes tão somente prenuncia a morte dessa força.

Creio na Liberdade para todos os homens: no espaço para estenderem os braços e a alma, no direito de respirar e no direito ao voto, na liberdade de escolherem suas amizades, de desfrutar da luz do sol e viajar pelas estradas de ferro, livres da maldição da cor; pensar, sonhar e trabalhar ao bel-prazer em um reino de beleza e amor.

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Creio na Educação das Crianças, tanto pretas como brancas; na condução das pequenas almas para pastagens verdes junto de águas calmas, não para riqueza ou paz, mas para uma vida iluminada por alguma grandiosa visão de beleza, bondade e verdade; para que não deixemos que os filhos de pais como Esaú permutem, em uma nação poderosa, seu direito inato por mera carne.

Por fim, creio na Paciência — na paciência diante da fraqueza dos Fracos e da força dos Fortes, do preconceito do Ignorante e da ignorância dos Cegos; paciência diante do triunfo tardio da Alegria e do louco castigo da Dor; na paciência diante de Deus!

NOTAS

*No original, brown. Optou-se por “pardos” como um termo datado. A referência usada foi Lima Barreto, “Clara dos Anjos” [1920]. Histórias e sonhos. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2008. (Esta e as demais notas de rodapé são da tradução.)

[1] O uso da linguagem religiosa cristã é uma das características mais expressivas dos textos de Du Bois e um traço constitutivo da tradição literária afro-americana. O texto “Credo” ocupa um lugar de destaque na obra de Du Bois. Conforme afirmou seu biógrafo David Levering Lewis, trata-se de um dos escritos de maior popularidade do autor: “‘Credo’ seria amplamente reimpresso na imprensa afro-americana em formatos ligeiramente maiores que o de uma carta de baralho, por uma gráfica em Memphis”. Ainda segundo Lewis: “Como muitas outras coisas que escreveu, o ‘Credo’ destinava-se a servir um duplo objetivo: manifesto para alguns milhares de brancos influentes, delineando os ideais sociais e direitos civis que Du Bois e seus poucos apoiadores defendiam; e catecismo para um grande número de homens e mulheres comuns de sua raça, cujo orgulho assolapado estava a vacilar […]. O ‘Credo’ era um encantamento majestoso cujos significados superficiais e subliminares eram facilmente mal interpretados. Os leitores brancos de mentalidade hipócrita ou míope ficaram profundamente satisfeitos com a expressão de sentimentos religiosos, tal como a esmagadora maioria do seu próprio povo. Os leitores mais perspicazes, por outro lado, ouviram, num andamento semelhante ao de J’accuse [Eu acuso], de Émile Zola, sons distintos, que ecoavam o desmantelamento da supremacia branca”. (David Levering Lewis, W. E. B. Du Bois: Biography of a Race, 1868-1919. Nova York: Henry Holt, 1993, pp. 312-3.)

Reiland Rabaka, em sua análise da sociologia da religião em Du Bois, afirma que “Credo” é o único texto de sua longa carreira no qual Du Bois fala abertamente que acredita em Deus, mas por ser “um dos primeiros a manifestar-se no início do século 20, expressando um espírito crescente de nacionalismo negro e uma oposição crítica ao conformismo de Booker T. Washington […] declarando que acreditava em Deus e em ‘todos os homens, pretos, pardos e brancos’”. E então seu humanismo radical ficou em segundo plano com relação ao que ele via na época como a necessidade do nacionalismo negro (e, incluiríamos, pan-africanismo) em face do imperialismo europeu e, especificamente, da supremacia branca e do racismo antinegro. (Reiland Rabaka, Against Epistemic Apartheid: W. E. B. Du Bois and the Disciplinary Decadence of Sociology. Reino Unido: Lexington, 2010, pp. 261-2.) Esta e as demais notas de fim são da edição e da revisão técnica.

[2] Observe-se que, quando Du Bois enfatiza que todas as nações são feitas de “um só sangue”, ele está se contrapondo diretamente à teoria racial poligenista que postulava que os homens não tinham uma só origem biológica e que essas diferenças eram a matriz da formação das raças entendidas como humanidades hierarquicamente distintas, tanto do ponto de vista genético como em relação aos valores morais e culturais transmitidos e cultivados.


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