Rodolfo Walsh: Cartas de um pai revolucionário

Através dos escritos do renomado jornalista à sua filha morta, lançamento do Selo Manjuba explora os ecos da ditadura argentina e o significado de ser filho de um “subversivo”. Leia, com exclusividade, um trecho da obra. Sorteamos um exemplar

Imagem: latinta.
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Dia 1º de outubro de 1976, três horas da tarde, o jornalista e militante argentino Rodolfo Walsh recebia a notícia da morte de sua filha María Victoria Walsh, militante montonera, assim como seu pai.

Vicki, como era chamada por Walsh, faleceu em um enfrentamento com o exército argentino, um dia após seu aniversário de 26 anos. Ao se ver rodeada e sem a possibilidade de escapar, ela e Alberto Molina, em um gesto de coragem levantaram os braços e bradaram “Ustedes no nos matan, nosotros elegimos morir” (vocês não nos matam, nós é que escolhemos morrer). O fato ficou conhecido como O massacre da Rua Coro (La masacre de la calle Corro).

Em dezembro, seu pai publicou uma mensagem chamada Carta a mis amigos (carta aos meus amigos), na qual relata as circunstâncias do acontecimento e diz:


 “Vicki podia ter escolhido outros caminhos, que eram diferentes sem serem desonrosos, mas o que ela escolheu era o mais justo, o mais generoso, o mais racional. Sua lúcida morte é uma síntese da sua curta e bela vida. Não viveu para ela, viveu para os outros, e esses outros são milhões”


Assim como Vicki, Walsh também viveu para milhões. Aderiu à esquerda revolucionária peronista e chegou a ser uma liderança do movimento Montoneros.

No ano seguinte à morte de sua filha, foi capturado e assassinado por esquadrões da morte vinculados ao governo argentino. Um dia antes, havia enviado para amigos e colaboradores as primeiras cópias de uma carta aberta que denunciava as violações dos direitos humanos cometidas pelo regime militar de então. O local onde foi assassinado, uma das estações do metrô de Buenos Aires, atualmente leva seu nome, e Sua Carta aberta à Junta Militar é hoje um símbolo de resistência à repressão.

O escritor que entrelaçava jornalismo, escrita literária e a própria militância, ficou eternizou na história como um dos precursores e expoentes do que o autor norte-americano Tom Wolfe chamou de new journalism — uma abordagem jornalística que combina elementos de literatura e reportagem e que, na tradução para o português, é conhecida como jornalismo literário. Seu romance-reportagem Operación massacre (1957) é considerado uma das primeiras e mais significativas obras do gênero.

A escritora argentina María Moreno narra a vida de pai e filha no livro Oração – Carta a Vicki e Outras Elegias Políticas, que acaba de ser lançado pelo Selo Manjuba, selo de não-ficção da Editora Mundaréu.

Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de Oração – Carta a Vicki e Outras Elegias Políticas, de María Moreno, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 9/9, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

O escrito se concentra na vida e morte de Vicki Walsh, com base nas cartas que seu pai escreveu para ela: Carta a Vicki e Carta aos Meus Amigos, ambas escritas após a morte de sua filha. Além disso, se destaca a estrutura inovadora da obra, onde Moreno investiga profundamente o que essas cartas expressam e o que deixam de revelar.

Algo que a narradora observa com perspicácia é o que ela chama, em entrevista ao periódico argentino Página 12, de “protofeminismo” de Walsh, que vai além da perspectiva de uma pai desolado com a morte de sua filha e a enxerga como “a heroína que decidira ser dona da sua morte”.

O livro tece ainda uma rede de histórias que abrange ensaio literário, investigação jornalística, relato histórico e autobiográfico, e um registro antropológico e político que apresenta múltiplas camadas de sentido.

Moreno explora a figura mítica de Rodolfo Walsh através de seu relacionamento com suas filhas Patrícia e Vicki, colocando em questão o significado de ser filho ou filha de um subversivo. O livro também faz conexões com diversas obras de teatro, cinema e literatura, além de abordar histórias de outras pessoas na mesma situação de Vicki: separadas de seus pais pela ditadura argentina.

Ao contrário do que Rodolfo Walsh disse, na verdade, ambos não “morreram na escuridão”, seguem e seguirão vivos na memória, são faróis para os que vêm depois — cabe a nós seguir refletindo seus legados.

Leia logo abaixo, com exclusividade, um trecho da obra disponibilizado pelo Selo Manjuba para quem acompanha o Outras Palavras.

Boa Leitura!

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CARTA A VICKI

por Rodolfo Walsh

1º de outubro de 1976

Querida Vicki. Recebi a notícia da tua morte hoje às três horas da tarde. Estávamos em reunião… quando começaram a transmitir o comunicado. Escutei o teu nome, mal pronunciado, e demorei um segundo em assimilá-lo. Comecei a me benzer maquinalmente, como quando era criança. Não completei o gesto. O mundo ficou parado nesse segundo. Depois eu disse para Mariana e Pablo: “Era minha filha”. Suspendi a reunião.

Estou aturdido. Muitas vezes temi por isso. Pensava que era sorte demais não ser golpeado, quando tantos outros são golpeados. Sim, tive medo por você, como você teve medo por mim, mesmo sem dizermos um ao outro. Agora o medo é aflição. Sei muito bem por que coisas você viveu e combateu. Estou orgulhoso dessas coisas. Eu te amei, você me amou. No dia em que te mataram, você acabava de fazer 26 anos. Os últimos foram muito duros para você. Gostaria de te ver sorrir mais uma vez.

Não vou poder me despedir, você sabe por quê. Nós morremos perseguidos, na escuridão. O verdadeiro cemitério é a memória. É aí que eu te guardo, te embalo, te celebro e talvez te inveje, minha querida.

5 de outubro. Falei com tua mãe. Ela está orgulhosa na sua dor, certa de ter entendido tua curta, dura, maravilhosa vida.

Ontem tive um pesadelo torrencial, com uma coluna de fogo, poderosa mas contida nos seus limites, que brotava de alguma profundeza.

Hoje no trem um homem dizia: “Estou sofrendo muito. Queria me deitar para dormir e só acordar daqui a um ano”. Falava por ele, mas também por mim.

13 de outubro. (Carta a Emiliano Costa, genro de Rodolfo Walsh, então detido.)

Emiliano: Quando Vicki morreu, a menina ficou nas mãos do Exército. Depois a entregaram ao teu pai. Vicki queria que ela ficasse conosco. Hoje isso não parece possível sem desencadear um conflito familiar com consequências difíceis de calcular. Por isso estamos propondo ao teu pai um acordo que, sem alterar essa situação de fato, reconheça aos familiares da Vicki, que antes da sua morte mais conviviam com a menina — e portanto mais se afeiçoaram —, o direito de vê-la e ficar com ela dois dias por semana. Eu garanto o cumprimento desse acordo. Assim, o pai poderia ver a menina regularmente, a memória que ela tem da mãe não seria apagada e aqueles que a amam poderiam continuar a vê-la. Como, por um lado, temo que tua família possa opor reparos e, por outro, entendo que tua opinião é a que pode pesar mais na solução do problema, escrevo para pedir teu apoio nessa proposta. De resto, eu te acompanho na tua dor como sei que você me acompanha na minha. Envio esta carta em duas vias. Uma delas é para o teu pai, que está autorizado a lê-la. Espero tua resposta. Um abraço. CAPITÃO

CARTA AOS MEUS AMIGOS

por Rodolfo Walsh

29 de dezembro de 1976

Hoje se completam três meses da morte da minha filha, María Victoria, depois de um combate com forças do Exército. Sei que a maioria dos que a conheceram choraram por ela. Outros, que são amigos ou conhecidos distantes, gostariam de ter me enviado uma palavra de consolo. Eu me dirijo a eles para agradecer, mas também para explicar como Vicki morreu e por que ela morreu.

O comunicado do Exército publicado nos jornais, desta vez, não difere muito do ocorrido. De fato, Vicki era 2º oficial da organização Montoneros, responsável pela imprensa sindical, e seu nome de guerra era Hilda. De fato, naquele dia estava reunida com quatro membros da Secretaria Política, que combateram e morreram com ela.

Não sei os detalhes da sua entrada nos Montoneros. Aos 22 anos, idade que ela devia ter ao entrar na organização, já se destacava pelas decisões firmes e claras. Por essa época começou a trabalhar no jornal La Opinión e em pouco tempo se tornou jornalista. O jornalismo em si não lhe interessava. Foi eleita delegada sindical pelos colegas. Nessa função teve de enfrentar, num conflito difícil, o diretor do jornal, Jacobo Timerman, que ela desprezava profundamente. O conflito se complicou, e, quando Timerman começou a denunciar seus próprios jornalistas como guerrilheiros, ela pediu uma licença e não voltou mais.

Começou a militar numa villa miseria. Foi seu primeiro contato com a pobreza extrema em nome da qual combatia. Saiu dessa experiência convertida a um ascetismo que impressionava. O marido, Emiliano Costa, foi detido no início de 1975, e ela nunca mais o viu. A filha dos dois nasceu pouco depois. O último ano da minha filha foi muito duro. O senso do dever a levou a renunciar a toda gratificação individual, a se empenhar muito além das suas forças físicas. Assim como tantos rapazes que de repente viraram adultos, viveu aos solavancos, fugindo de casa em casa. Nunca se queixava. Só seu sorriso esmorecia um pouco. Nas últimas semanas, vários dos seus companheiros foram mortos; não pôde parar e chorar por eles, por causa de uma terrível urgência em criar meios de comunicação na frente sindical, que era sua responsabilidade. Nós nos víamos uma vez por semana; a cada quinze dias. Eram encontros curtos, caminhando pela rua, às vezes dez minutos no banco de uma praça. Fazíamos planos de morar juntos, ter uma casa onde conversar, recordar, ficarmos juntos em silêncio. Pressentíamos, no entanto, que isso não ocorreria, que um daqueles encontros fugazes seria o último, e nos despedíamos simulando coragem, consolando-nos da perda antecipada.

Minha filha estava disposta a não se entregar com vida. Era uma decisão amadurecida, refletida. Ela sabia, por uma infinidade de testemunhos, o trato que os militares e marinheiros dispensam a quem tem a desgraça de cair prisioneiro: o esfolamento em vida, a mutilação de membros, a tortura sem limites no tempo e no método, que tenta ao mesmo tempo a degradação moral e a delação. Ela sabia perfeitamente que, numa guerra com essas características, o pecado não era falar, e sim cair. Levava sempre com ela uma cápsula de cianureto — a mesma com que nosso amigo Paco Urondo se matou —, com a que tantos outros conseguiram uma última vitória contra a barbárie.

Em 28 de setembro, quando ela entrou na casa da rua Corro, estava completando 26 anos. Levava a filha no colo, porque na última hora não teve com quem deixar a menina. Foi se deitar com ela, de camisola. Usava umas absurdas camisolas brancas, sempre muito folgadas.

Às sete da manhã do dia 29, foi acordada pelos megafones do Exército, pelos primeiros tiros. Conforme o plano de defesa estipulado, subiu no terraço com o secretário político Molina, enquanto Coronel, Salame e Beltrán respondiam ao fogo no térreo. Vi a cena com seus olhos: o terraço sobre as casas baixas, o céu amanhecendo, o cerco. Um cerco de 150 homens, os FAP [1] posicionados, o tanque. Recebi o testemunho de um desses homens, um recruta.

“O combate durou mais de uma hora e meia. Um homem e uma moça atiravam de cima. A moça nos chamou a atenção, pois cada vez que disparava uma rajada e a gente se jogava no chão, ela dava risada.” Tentei entender essa risada. A submetralhadora era uma Halcón, e minha filha nunca tinha atirado com ela, embora tivesse aprendido a operá-la nas aulas de instrução. As coisas novas, surpreendentes, sempre a fizeram rir. Sem dúvida era novo e surpreendente para ela que, com uma simples pressão do dedo, brotasse uma rajada e que essa rajada fizesse 150 homens mergulharem nos paralelepípedos, a começar pelo coronel Roualdes, chefe da operação.

Os caminhões e o tanque receberam o reforço de um helicóptero, que girava em torno do terraço, contido pelos tiros. “De repente”, diz o soldado, “houve um silêncio. Ela largou a metralhadora, subiu no parapeito e abriu os braços. Paramos de atirar sem receber a ordem de ninguém e pudemos ver bem a moça. Era magrinha, tinha o cabelo curto e estava de camisola. Começou a falar em voz alta, mas muito tranquila. Não me lembro de tudo o que ela disse. Mas me lembro da última frase; na verdade, não me deixa dormir. ‘Vocês não nos matam’, disse, ‘nós é que escolhemos morrer.’ Aí ela e o homem apontaram uma pistola pra cabeça e se mataram na frente de todos nós.” 

Embaixo já não havia resistência. O coronel abriu a porta e lançou uma granada. Depois entraram os oficiais. Encontraram uma bebê de pouco mais de um ano, sentadinha numa cama, e cinco cadáveres.

De lá para cá, tenho refletido sobre essa morte. Eu me perguntei se minha filha, se todos os que morrerem como ela, tinham outro caminho. A resposta sai do fundo do meu coração e quero que meus amigos a conheçam. Vicki podia ter escolhido outros caminhos, que eram diferentes sem serem desonrosos, mas o que ela escolheu era o mais justo, o mais generoso, o mais racional. Sua lúcida morte é uma síntese da sua curta, bela vida. Não viveu para ela, viveu para os outros, e esses outros são milhões.

Sua morte, sim, sua morte foi gloriosamente dela, e nesse orgulho me afirmo e sou quem dela renasce.

É isso que eu queria dizer aos meus amigos e o que desejaria que eles transmitissem a outros pelos meios que sua bondade ditar.

VI A CENA COM SEUS OLHOS: o terraço sobre as casas baixas, o céu amanhecendo e o cerco. O cerco de 150 homens, os FAP posicionados, o tanque. Mas eu não a vi, eu a li. E a recitei como uma oração. Por ela, a moça. A de olhar claro, cabelo curto, a que apareceu nos jornais, dizia a canção.

Lembro dos seus traços vietnamitas, como se a anatomia, por conta própria, tivesse tentado encarnar um ideal, uma causa, e a tivesse xerocado, dando a ela um rosto que podia parecer mestiço — era escura, forte e esguia, aquela cabeleira sacrificada —, mas que era também irlandês, embora nessa genética tivessem se perdido os olhos azuis do pai. Essa mulher não é “Essa mulher”, um butim, um monumento escondido, um símbolo ou um álibi. Mas não consigo parar de lembrar dela, de pensar no seu último gesto. Se matar. Fazer isso diante de um exército. Antecipar a jogada para não se entregar viva. Na sua glória.

Eu não a conhecia pessoalmente. E, se a tivesse conhecido, penso agora, ela teria me desprezado. Cheguei a vê-la em alguma mesa do bar El Pulpito, na esquina do jornal onde eu trabalhava. Acho que nunca ouvi sua voz em meio às outras — a de um jornalista-estrela que intercambiava informações aos brados com um membro da SIDE [2], decidido a dar o nome de não sei quem em troca de que não se publicasse não sei o quê; um cronista policial que anunciava um furo como quem saca um ás na jogatina; dois redatores de jornais rivais contando piadas misóginas, negociando assim suas tensões cotidianas em torno de uma manchete.

Sempre tive medo dela. Fomos apresentadas fugazmente na penumbra de um teatro. Não sorriu — já não tinha tempo para nenhum protocolo, nenhum beijinho burguês de cumprimento convencional. Olhou para algo atrás de mim, não a retive — poderia ter retido, tínhamos tanta coisa em comum, nomes de jornalistas, redações, a peça encenada, que não recordo, mas que ela já tinha visto (estava de saída).

— A gente poderia dizer — diz Alejandro, o legista — “morreu em consequência de um disparo de arma de fogo realizado com o cano encostado”. Se foi ela mesma que o encostou, o companheiro que estava ao seu lado ou um milico, isso eu não posso dizer.

— No peito?

— Não, no parietal.

— Mas os milicos estavam nos terraços. Não teriam chegado até a casa…

— Há uma versão de que ela e o companheiro se abraçaram e atiraram um no outro. E eu diria que a arma não era militar.

— Isso reforça a hipótese do suicídio.

—Totalmente. E quando o tiro é dado com o cano encostado, a arma deixa um anel de pólvora. Não adianta escovar o crânio, que não sai. Esse anel ninguém apaga.

Tinha o apelido de “Cabeçuda”, como eu — lembro que nessa época se usavam as capelinas, e quando eu fui comprar uma, a balconista da chapelaria foi esvaziando a prateleira, e só a última coube na minha cabeça, e a moça dava risada —, mas não era por isso que eu me identificava com ela. Eu queria ser jornalista, mas não me atrevia a pensar nisso. Aos 23 anos, Vicki Walsh já escrevia na revista Primera Plana. Impossível igualar esse prodígio. Procurei na sua prosa precisa e fresca algo para criticar. Não encontrei. Evitei a justificativa presunçosa: “Mas também, com esse pai…”.

A julgar pelas fotografias em que ela posava com expressão séria contra um fundo de paisagem provinciano — a chefia da revista lhe confiava coberturas fora da cidade —, era bonita.

No fim de 77, nas rodas de jornalistas que resistiam acuados na imprensa sob censura, já abalada pela prática do assassinato e do desaparecimento — a cada ano os nomes se encadeavam mais rápido: Pedro Barraza, Jorge Money, Ernesto Fossati, Luis Guagnini… —, comentava-se que Vicki Walsh se suicidara durante um confronto. No jornal La Opinión, a notícia do aniquilamento de um grupo de militantes montoneros numa casa da rua Corro tinha saído na primeira página e merecido uma página interna dupla, mas não se falava em suicídio. Rumores desse tipo se naturalizavam até a ausência de qualquer gesto de rebelião — a paranoia se desatava a portas fechadas —, circulando na surdina, mas se tratava da atonia do terror.

Depois, apagão, anestesia, hiato. Quando li “Carta a Vicki” pela primeira vez (na verdade, não é uma carta, depois do seu nome há um ponto e não dois, mas resolvi chamá-la como todos a chamam) e “Carta aos meus amigos”, tive um choque. Nas duas, uma crônica de minuciosidade implacável, um réquiem com detalhes horários em que se agitavam imagens cristãs, dados jornalísticos e apólogos militantes para a construção de uma heroína que decidira ser dona da sua morte.

Imagino que tenha ocorrido algo assim como um retorno do recalcado — não é o caso de corrigir a vulgata. Na época eu era secretária de redação do jornal Tiempo Argentino: dizer que com a volta da democracia meu estilo atingira um preço razoável no mercado da abertura é mais correto do que supor que eu tinha emergido das trevas da censura através da minha participação em alguma forma de resistência.

“Carta a Vicki” e “Carta aos meus amigos” me remeteram a outras páginas em que a experiência vivida mesclava o informe clandestino com a pedagogia da catástrofe, o testemunho com a ficção, esse gênero que a épica revolucionária proscreveu sem nunca abandonar.

Quis escrever. Pensei que, se não o fizesse, não conseguiria escrever mais nada. Demorei, desisti, voltei a tentar. Hesitei. Até que o prazo que tinha dado a mim mesma venceu: já tenho idade para morrer. E então, às pressas, terminei o que eu me impusera como uma dívida. As idas e vindas saltam aos olhos nas mudanças bruscas de registro, nas vozes que se sucedem — às vezes demandantes, imperiosas; às vezes de uma desolada lucidez —, no estilo, temeroso dos dados políticos recém-adquiridos, com medo de cometer erros crassos em pontos cuja seriedade exige do neófito uma cautela respeitosa e grandes escrúpulos. Quis usar a diagramação e os estilos tipográficos ao meu favor, obrigá-los a se engajar: escolhi destacar as palavras do inimigo em itálico com uma fonte diferenciada; o depoimento dos sobreviventes, completos, num capítulo à parte; as entrevistas, quase sempre destinadas ao relato oral; as notas, no mesmo corpo que o texto principal e como parte dele. Que a repetição, a densidade, o avanço penoso fossem para a leitura, como fora para a escrita, uma das formas da oração.

NOTAS

[1] Fuzis Automáticos Pesados. [N. T.]
[2]  Secretaría de Inteligencia del Estado, hoje Secretaría de Inteligencia (SI), órgão que durante a ditadura de 1976-83 atuou subordinado ao Exército, aplicando a política de extermínio instaurada pelas forças golpistas. [N. T.]


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