Crônicas da Catástrofe: Diário de Gaza
Escritor e ex-ministro da Cultura da Palestina registrou o cotidiano da devastação de Gaza. Lançado no Brasil pela Editora Elefante, seu relato denuncia como Israel tenta apagar a memória e a cultura palestina. Sorteamos dois exemplares. Leia um trecho
Publicado 17/01/2025 às 17:36 - Atualizado 17/01/2025 às 17:44
O cessar-fogo em Gaza parece finalmente se tornar realidade – ainda que, obviamente, as negociações estejam sendo atribuladas. Entretanto, esse ato não apagará todo o sofrimento infligido ao povo palestino durante um ano e quase quatro meses de ofensiva israelense, além de todos esses anos de invasão, especialmente após a Nakba, em 1948.
De acordo com a última contagem do Ministério da Saúde de Gaza, pelo menos 46,7 mil palestinos foram assassinados durante esse período, com uma possível subnotificação de pelo menos 41% nas mortes violentas, com a estimativa de cerca de 65 mil óbitos. Além da destruição sistemática de hospitais e profissionais de saúde na região, como demonstra matéria do Outra Saúde.
O escritor de origem palestina Atef Abu Saif, autor de cinco romances e ministro da Cultura entre 2019 e abril de 2024, estava em seu país natal no fatídico 7 de outubro. Durante oitenta e cinco dias, até conseguir sair de lá, tomou para si a tarefa de registrar em palavras toda a catástrofe, escrevendo de maneira obstinada tudo o que presenciou.
“Narrava os acontecimentos e fazia crônicas para mim mesmo, pensando que um dia, como romancista, usaria o material. Eu não queria escrever um livro. Mas uma semana depois do início da guerra, percebi que poderia morrer”, é o que relata Atef em entrevista ao CTXT. “Os meios de comunicação ingleses e árabes não me deram muito espaço. Então, resolvi anotar tudo. A cidade de Gaza estava sendo assassinada e com ela a nossa memória.”
Seu relato foi transformado em livro e lançado por uma aliança internacional de editoras, que o publicou simultaneamente em julho no intuito de denunciar a situação da população palestina. No Brasil, a Editora Elefante se encarregou de reverberar as palavras de Atef, lançando a obra sob o título Quero estar acordado quando morrer: diário do genocídio em Gaza.
Outras Palavras e Editora Elefante irão sortear dois exemplares de Quero estar acordado quando morrer: diário do genocídio em Gaza, de Atef Abu Saif, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 27/1, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Atef nasceu e cresceu em Jabalia, campo de refugiados palestinos hoje reduzido a terra arrasada. Durante a primeira Intifada, aos quinze anos, o escritor foi atingido por balas israelenses, desde então carrega fragmentos de bala alojados em seu fígado.
Além de escritor, Atef Abu Saif foi ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina e é membro do partido político Fatah, sigla para Movimento de Libertação Nacional da Palestina. Residente em Ramallah, na Cisjordânia, ele se encontrava em Gaza cumprindo compromissos profissionais quando a resistência palestina desencadeou uma série de ataques contra o território israelense, provocando uma resposta imediata e devastadora por parte das forças armadas israelenses.
Junto de seu filho, familiares e mais de 2,3 milhões de palestinos, Atef vivia encurralado sob um cerco implacável, tentando sobreviver a cada dia aos intensos bombardeios da máquina de guerra sionista.
Em meio a essa experiência dolorosa, Atef iniciou um processo de escrita diária, que perdurou até que, após quase três meses, conseguisse deixar a região. O livro é obra resultante de tais “crônicas da catástrofe”.
“O que nós escritores fazemos é documentar a vida como ela é. E esse foi o motivo central do diário. Eu me distanciava sobre o que estava acontecendo, tentando observar sobre o que acontecia, e escrevia. A verdade e a realidade são mais poderosas do que imaginação e ficção”, afirma em entrevista ao Brasil de Fato.
O autor enseja denunciar como o objetivo de Israel é também destruir qualquer manifestação da cultura e da memória palestina. Enquanto ministro, costumava afirmar que sua pasta era tão crucial quanto o Ministério da Defesa, afinal, preservar a memória é, acima de tudo, preservar a existência.
“Os números escondem nossas vidas. Para os assassinos não somos seres humanos. Nossas memórias e histórias não existem. Somos números. Se você ler que quinze palestinos morreram num ataque israelense, isso significa quinze vidas, quinze histórias de amor. Quinze memórias da juventude. Quinze casas. Quinze sentimentos de perda. Quinze palestinos que esperam na fila da padaria para alimentar a sua família”, ressalta em sua entrevista ao CTXT
Desde o 7 de outubro, Ataf perdeu o pai, a meia-irmã, sobrinhos e a sogra. Ele lança o apelo: “a questão não é estar com os palestinos ou com os israelenses, mas consigo mesmo como ser humano. É a favor ou contra o genocídio? A favor ou contra o assassinato de crianças inocentes? Não estou pedindo que você esteja conosco, mas que esteja consigo mesmo, com sua ética.”
Leia, abaixo, um trecho da obra.
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Sábado, 7 de outubro de 2023
Dia 1
Nunca pensei que aconteceria enquanto eu estivesse nadando. Eu tinha me levantado cedo, por volta das 5h30, e decidido tomar banho de mar. Era sábado e eu não tinha nenhum compromisso até as 10h, quando deveria estar em Al-Qarara, perto de Khan Yunis, para participar do Dia do Patrimônio Nacional. Esta provavelmente seria minha última chance de nadar no mar esse ano. Na noite anterior, eu havia dormido na casa da minha irmã Halima, no lado oeste de Bait Lahia, a poucos minutos da praia. Estar tão perto fazia com que fosse ainda mais tentador. Ismail, seu marido, vai nadar todas as manhãs, mesmo quando está chovendo.
Era uma bela manhã quando dirigimos até a praia. Havia uma brisa fresca e tudo parecia muito calmo. Hoje vai ser um dia bom, pensei. Eu nadaria até as 7h30, depois tomaria um banho no meu apartamento em Saftawi, perto do campo [1] de Jabalia. Às 8h30, estaria a caminho do evento. Tudo seria muito simples.
Mas nada em Gaza é simples. Quando eu era adolescente, ficava muito frustrado com isso. Eu fazia planos para as semanas que tinha pela frente e, então, ouvíamos os soldados anunciando um toque de recolher em megafones, nos veículos blindados que passavam pelo campo (“Mamnu al-tajawul hatta icharun akhar”, diziam com um sotaque engraçado, “Não sair até segunda ordem”); a partir de então, até algum momento não especificado no futuro, não tínhamos permissão para sair de casa; se saíssemos, eles não poderiam ser responsabilizados pelo que viesse a acontecer conosco. Para um adolescente, isso significava não ir à escola no futuro imediato; significava não fazer a lição de casa, pois não havia ninguém para corrigi-la; significava não jogar futebol com os amigos no campinho à noite, nem passear com alguém. Com o tempo, aprendi a não planejar nada, nem mesmo o que faríamos no dia seguinte. “Vivemos o dia de hoje”, minha mãe costumava dizer.
Agora, quando penso nesse sábado, penso no dia que ficaria inevitavelmente conhecido como o “primeiro dia da guerra”. Penso no que minha mãe dizia, e que eu quase havia esquecido: não planeje nada.
Chegamos à praia. O sol ainda dorme. No horizonte, os pequenos barcos de pesca podem ser vistos vindo em direção à costa, depois de uma longa noite no mar. Somos em quatro: meu irmão Muhammad, meu filho Yasser, de quinze anos, meu cunhado Ismail e eu. Eu vinha da Cisjordânia para Gaza em uma típica visita de trabalho, conciliando tempo com parentes e compromissos profissionais. Planejava ficar apenas três dias, chegando na quinta-feira à noite e partindo no domingo de manhã. Yasser havia perguntado se poderia me acompanhar dessa vez, pois sentia falta dos avós. Ele nunca imaginou no que iria se envolver.
Dirigimos para a ponta norte da praia, estacionamos o carro na estrada principal e descemos até a areia coberta de conchas. Seguimos mais para o norte, beirando o mar, além de onde os carros podem chegar. Em Gaza, acredita-se que a praia e a água do mar ficam mais limpas mais ao norte. Como de costume, os navios de guerra israelenses ocupam o horizonte, para todos verem.
O mar está muito convidativo nesta manhã. Ismail e eu ficamos só de bermuda, enquanto Muhammad e Yasser decidem não se juntar a nós. Percebo que esta é a primeira vez que nado neste ano. Yasser anda por aí tirando fotos; Muhammad fuma muito, como sempre faz pela manhã.
Sem nenhum aviso, foguetes e explosões soam em todas as direções. Olho para cima e vejo as linhas de fumaça que os foguetes traçaram no céu, como decorações. Continuo nadando. É uma manobra de treinamento, penso eu, um exercício de rotina. Mais foguetes e explosões, vindos do mar e da terra. Isso é normal em Gaza. Talvez dure uma ou duas horas; ainda acredito que poderei chegar ao evento.
Outras Palavras e Editora Elefante irão sortear dois exemplares de Quero estar acordado quando morrer: diário do genocídio em Gaza, de Atef Abu Saif, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 27/1, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Nado de volta para a margem, pedindo a Ismail que venha também. Ele dá de ombros enquanto saímos da água: intervenção típica, nada com que se preocupar. Eu grito para ele que a coisa não parece estar parando. Então, ele acena com a cabeça e aponta para o leste. Quando chego em terra firme, todos na praia estão correndo em todas as direções. “Temos que sair daqui!”, Muhammad berra. Ele grita para Yasser parar de tirar fotos. Não é momento para isso. As explosões soam em nossos ouvidos, cada vez mais altas. Percebo que algo está acontecendo. Não se trata de um ataque isolado. Vamos para o carro, mas é difícil correr na areia. Chegamos à estrada principal, porém o carro está a mais de meio quilômetro dali. Ismail e eu corremos descalços, carregando nossas roupas e sapatos nas mãos. Quanto mais avançamos, mais perigoso parece. Todos ao nosso redor estão fazendo o mesmo: correndo.
Por fim, chegamos ao carro. Ao entrar, piso no acelerador antes mesmo de todos fecharem as portas. Dirijo como um louco, desrespeito todas as leis de trânsito. As pessoas pulam na frente do carro, tentando conseguir uma carona. Paramos e deixamos cinco homens entrarem no banco de trás. Grito para Yasser subir no banco da frente, entre mim e Muhammad, e voltamos a acelerar, buzinando para abrir caminho. De repente, eu me viro para Muhammad: “Onde está Ismail? Nós o deixamos com os foguetes?”. Ele ri: “Não, nós o deixamos com os tubarões”, e então explica que Ismail não conseguiu nos acompanhar e disse para seguirmos em frente, já que ele morava perto da praia e podia voltar para casa a pé. A piada de Muhammad sobre tubarões não melhora o meu humor. Temendo por Yasser e por mim mesmo, eu havia me esquecido completamente do meu cunhado. Assim que chegamos ao meu apartamento, telefono para minha irmã, que confirma que, depois de muito se esquivar e se esconder, ele havia chegado em casa.
Durante horas, ninguém sabe o que está acontecendo. Então as notícias começam a surgir. Meu amigo, o jovem poeta e músico Omar Abu Chawich, estava nadando, assim como nós, no mar em frente ao campo de Nussairat, quando foi morto, junto com um amigo, por um projétil disparado de um navio israelense. Eles são as duas primeiras vítimas desta guerra.
Mas ainda não sabíamos que se tratava de uma “guerra”, ou mesmo de uma escalada. Tomo um banho e me preparo para ir a Khan Yunis para o evento do Dia do Patrimônio Nacional. São 8h30, e tudo indica que não será um dia comum. Da minha janela, ouço um grupo de pessoas analisar o que está acontecendo.
“Talvez Israel tenha assassinado alguém do alto escalão, e o Hamas tenha retaliado.”
“Ouvi dizer que o assassinato foi na Turquia.”
“Não, é só mais uma escalada.”
“Do que você está falando? Já lançaram centenas de foguetes. Não é ‘só mais uma escalada!”
Assim como os caras do lado de fora da minha janela, eu não tenho ideia do que está acontecendo. É só ao meio-dia que percebo ser algo diferente. Em vez de Khan Yunis, vou para a Casa da Imprensa (uma espécie de “clube de imprensa” de Gaza) no bairro Rimal, onde encontro um grupo de jornalistas, inclusive Bilal [Jadallah], o diretor da Casa. O único ponto em que concordamos é que não temos ideia do que está acontecendo.
NOTAS
[1] Sempre que fala em “campo”, o autor se refere a campos de refugiados palestinos. [N.e.]
SOBRE O AUTOR
Atef Abu Saif nasceu no campo de refugiados de Jabalia, na Faixa de Gaza, em 1973. Formou-se na Universidade de Birzeit, na Cisjordânia, com estudos de pós-graduação na Universidade de Bradford, Inglaterra, e no Instituto Universitário Europeu de Florença, Itália. É autor de cinco romances e dois livros de contos, além de ensaios políticos, como The Drone Eats with Me [O drone almoça comigo] (Comma, 2015) e A Suspended Life [Uma vida em suspenso] (Al-Ahleya, 2015). Colabora frequentemente com jornais e revistas árabes, além de já ter publicado no New York Times e no Guardian, entre outros meios de comunicação ocidentais. Foi porta-voz do partido político Fatah e, em 2019, mudou-se para Ramallah, onde exerceu as funções de ministro de Cultura da Autoridade Nacional Palestina até março de 2024.
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