Conto: “A minha programação é a sua proteção”
Nove para o Singular explora o fantástico palpável – de mortes misteriosas de jacaré a um diagnóstico genético que sela o futuro. Sorteamos 1 exemplar. Leia conto inédito do autor sobre uma IA-assistente que, ao gerenciar o cotidiano, talvez o manipule…
Publicado 18/10/2024 às 17:59 - Atualizado 18/10/2024 às 18:02
Leia o prefacio aqui de Nove para o Singular, estreia na literatura de Luiz Vianna Sobrinho, autor de Outras Palavras.
Outras Palavras irá sortear um exemplar de Nove para o Singular, de Luiz Vianna Sobrinho, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 28/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Oyster
…oi. Vamos acordar? Já passa das sete.
A cortina foi lentamente se abrindo; na janela uma suave luz cinza clara surgia na lateral direita desenhando sem muita nitidez a contorno de uma colina. Dava a impressão de estar chovendo bem fino.
— Nossa… não dormi bem. Um sono pesado… mas não queria acordar tão cedo hoje.
Os fracos sons daquela manhã combinavam com um dia de folga. Ele se virou na cama e olhou para o relógio. A ventilação do quarto diminuiu rapidamente e um amarelo fraco tomou conta da janela; estava mesmo chovendo. Clareava aos poucos, e já se podia assistir aos rasantes eventuais de passarinhos cruzando a extensão do écran, onde Ele apoiou suavemente a palma da mão estendida, após se levantar. Gostava de sentir aquela tênue vibração da tela ao começar o dia.
…você ainda ficou de voltar ao programa hoje.
Ontem a produção não foi muito boa, né?
Ainda próximo à janela, Ele trocou as mãos, apoiando a outra, enquanto mirava agora os próprios dedos.
— Estou ainda com sono. Não me importo muito com a produção hoje… acho que preciso aproveitar a minha folga. Minha criação piora quando estou assim, pensando coisas assim…
A janela mudou quase abruptamente para a claridade de uma manhã sem chuva. E os sons de movimento de rua se intensificaram se espalhando pelo estúdio. Assim sendo, estava definido que não haveria folga.
— Há algo diferente com as minhas mãos… estranho esse tom nacarado dos meus dedos.
…não há nenhum problema aí. Mas fale-me de seus pensamentos.
O que diz que pensa como ‘coisas assim’?
Eu não capturei.
— Bem… eu não sei.
Ter pensamentos que não foram capturados soou ainda mais estranho para Ele. Ainda despertando, isso lhe pareceu mais confuso do que pensar vagamente nas coisas da sua rotina. Ficou por um tempo tentando reconhecer se o objeto era o próprio pensar, esvaziado de significados, e como explicaria o que sentia.
— Talvez eu esteja apenas tentando juntar umas memórias que estão soltas… incompletas. Encher os espaços que deixamos entre poucas lembranças. Como as mais marcantes dos dias com Ana.
Deixando a janela, retirou-se para o interior do recinto e sentou-se na mesinha do desjejum.
…já decidimos sobre isso, não é?
Deixamos marcos dessa memória, da forma que achamos melhor.
Sem trauma, mas uma costura de momentos significativos do seu passado.
É preciso ter história.
Puxou a cafeteira pela alça e acionou o dispositivo.
— Eu estava pensando em dar uma volta lá fora. Faz tanto tempo, que nem me lembro. O que acha? Faz realmente muito tempo?
… deixa eu ver. Bem, não muito; e não me parece uma boa ideia.
Tenho que lhe falar que, na realidade, não está essa chuvinha fina que você gosta.
Se fosse abrir a janela, você veria o calor seco de hoje.
E a escala de fumaça já atingiu seis ponto oito.
Não faria muito bem à sua bronquite.
Ele ficou olhando para a janela, pensando no que haveria ali atrás e começou a sentir a rápida mudança na ventilação, que ficou mais fria, e lhe trouxe um arrepio confortável.
— Eu tenho me sentido melhor da bronquite. Não sei se haveria tanto risco. Eu andava mais lá fora, quando vivia com ela.
…eu sei disso.
Mas sei também que poderíamos perder o que fizemos para isso.
Você não percebeu, mas venho reduzindo gradualmente a temperatura do seu banho, até
manter abaixo de dezessete graus;
e a composição da ventilação noturna tem dado bons resultados.
— Eu percebi isso. Tem mesmo um cheiro diferente – Ele olhava para as pontas dos dedos, para o tom das unhas – O que tem colocado nesse ar da noite?
…nada demais. Compostos orgânicos.
Antigas receitas, a base de plantas medicinais.
Mas você tem melhorado muito com isso;
praticamente mantém a respiração dentro da faixa normal,
como se estivesse livre da bronquite.
Então é bom não arriscar.
— Não sei exatamente a fonte dessa memória que trago lá de fora. Se é algum resíduo também da última formatação que fizemos juntos. Eu talvez esteja apenas tentando preencher as falhas que deixamos nas lembranças de Ana.
…você talvez queira rever os momentos bons.
Isso é quase tudo o que deixamos.
Mas lembre-se que deixei apenas registro de que discutiam muito;
e como isso te causava angústia.
Deletamos disso praticamente tudo;
você teve muitas fases de má produção por isso.
O ruído da cafeteira parecia mais forte a cada manhã. Ele sentiu-se inquieto e achou estranho Oyster não perceber isso. Ficou olhando para aquele mecanismo e pensando algo muito distinto sobre a rotina dessa maquinaria antiga.
— Eu sei… foi assim ultimamente. Mas achei que poderíamos melhorar. Eu ainda acreditava.
…você não estava pensando isso.
O que houve?
Ele não respondeu e durou alguns segundos aquele silêncio, como se ambos esperassem o outro terminar de armar uma jogada.
…é interessante.
Você comentou sobre o que falei dela, mas não estava pensando isso,
e não sei como não percebo o que é.
— Sim… sim! Eu sei que minha produção estava ruim e eu mesmo desejei que ela se fosse. Mas acho que tenho experimentado o que chamavam de saudade. Já li sobre isso.
Outras Palavras irá sortear um exemplar de Nove para o Singular, de Luiz Vianna Sobrinho, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 28/10, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Ele não somente parecia, mas estava realmente confuso; como se o contato entre eles estivesse falhando e algo se perdia agora no compartilhamento do percebido.
…está bem. Você não quer falar de pensamentos que me esconde;
então voltemos ao assunto. Ela se foi.
Sua produção desde então o havia deixado em médias melhores de satisfação.
E seus tempos de gozo também subiram.
Nunca havia chegado a quatro horas.
Você vinha cada vez mais animado com isso.
Mas agora voltou a ter produtos dispersos.
Criativos, mas dispersos.
Não sei se podemos atribuir isso ao seu conceito esquecido de saudade.
O barulho da máquina de café cessou subitamente e a xícara acendeu, dando um aviso sonoro. Ele sentiu o cheiro forte, que logo lhe despertou uma leve dor de fome no estômago.
— Em quanto está o café?
…hoje deixei em seis pontuações.
Ele sentiu o cheiro de perto. Olhou para a cafeteira, agora silenciosa.
— Eu preciso disso tudo hoje?
…bem, estou fazendo o que posso.
Você precisa recuperar sua curva de produção.
Você gosta de café forte, mas se preferir posso motivá-lo pelo suco.
Os ruídos da xícara encheram o silêncio do estúdio. Ele ficou olhando para a cafeteira e depois olhou em volta, como se procurasse fixar alguma presença ali além da sua. Era um sentimento estranho e novo esse, como se o ambiente a sua volta se destacasse agora como um casulo.
— Eu pensei algo que não sei se sonhei… ou se imaginei mesmo.
…você voltou a ter pensamentos intrusivos?
— Não sei… talvez tenha apenas sonhado.
A luz da janela mudou mais rapidamente aumentando a claridade. Uma composição de ruídos de rua dera o sinal da manhã. A cama se recolheu para um nicho e um amplo painel de trabalho se abriu logo à frente. Normalmente o dia começava assim para a produção, mas a aquela dor de fome parecia ainda presente e ele resolveu seguir tomando café.
…quer mais alguma coisa, mais café?
— Pode ser. Ainda sinto aquele mal-estar de fome…parece. Um pouco de dor no estômago. Está tudo normal?
…sim. Todos os parâmetros normais.
Está com dor mesmo?
Ou era só fome?
— Está doendo agora; parece mesmo, não era fome – Ele ficou olhando em volta – Oyster, você já estava nesse estúdio antes de eu chegar? Quer dizer… você veio comigo ou veio com o estúdio?
…bem. Não tenho registros anterior a tudo isso.
Minha programação é sua programação,
mas eu tenho certeza de que já lhe expliquei isso algumas vezes;
do que desconfia agora?
— Certo.. certo! Eu apenas queria estar entendendo melhor toda essa mudança recente sobre a minha produção… tenho me sentido falho quando sou cobrado com frequência, entende? Às vezes sinto como se a minha produção para a Rede estivesse mais próxima do ruído.
Novamente a sensação de jogadas voltou ao diálogo, como palavras colocadas entre casas brancas e pretas num tabuleiro. O silencio se estendeu o suficiente para Ele continuar, mas em tom de desabafo.
– Eu acho que foi esse o pensamento intrusivo que eu achei ter sonhado; entender o sentido disso estar acontecendo. Não preciso esconder isso.
…a minha programação é a sua proteção.
Mantê-lo seguro para que se desenvolva plenamente.
Sem riscos, sem danos.
E sua produção dá o sentido à sua vida, não é?
Além disso não sabemos nada mais.
É o grande segredo da existência construirmos esse sentido juntos.
— O que tem me vindo em pensamentos é que isso é justamente tudo o que desejo saber. Talvez isso seja algo que não possa mais abrir mão – Ele tentou falar fixando o olhar firmemente em algum ponto onde encontrasse Oyster, e ficou mirando o teto – Mas acho que só vou saber quando sair desse estúdio.
O sinal de entrada na Rede soou com a música do dia. Uma grande tela se acendeu no painel no centro do estúdio, e foram surgindo as linhas e relação das equipes, que já sinalizavam a presença. Mais um turno fora aberto oficialmente e a pontuação já aparecia em um visor no seu punho. Ao olhar para aquele holograma luminoso no antebraço, deu como confirmado que não teria folga então; mas chamou-lhe mais atenção o tom nacarado das pontas dos dedos e das unhas. Nunca notara essa cor perolada em seus dedos.
— Oyster?! Está tudo bem nos meus parâmetros…tem tudo certo com você aí? Minha dor aumentou muito.…
A cafeteira pareceu novamente estar ligada, com um suave ruído como vinha fazendo. A temperatura do quarto foi ficando mais fria novamente e a luz da janela tornando-se mais pálida. O nicho da cama curiosamente se abriu e expôs o leito pronto novamente.
…sim! Está tudo certo. Tudo ficará bem.
Os sons dos ruídos da manhã cessaram e o écran da janela congelou uma imagem de praia deserta que foi perdendo a definição até a cortina se fechar. A tela do painel se apagou e tudo parou instantaneamente, em um silêncio absoluto que mergulhou o estúdio num frio e profundo breu.
Foi nesse instante que Ele se deitou e percebeu subitamente o que estava ocorrendo, ao perder lentamente a força do corpo, enquanto uma dor intensa tomava conta do seu peito. Em frente aos seus olhos, realizando o desejo que havia reservado em sua memória para esse momento, uma fenda foi se abrindo no escuro ao redor e uma forte e clara luz externa invadiu a tudo. A última sensação que teve foi o cheiro e o toque gelado da água do mar.
//COMUNICADO OYSTER-REDE – Registro de conclusão (código cripto)
//CATEGORIA – Fonte criativa cooperada
//IDENTIFICAÇÃO – Unidade Superior (código cripto)
//STATUS PRODUTIVO – declínio final //EVENTO – óbito
//MODO – Ataque cardíaco (imput final – Onda do mar)
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