Aldo Moro: o caso silenciado
O sequestro do ex-premiê italiano até hoje é motivo de teorias da conspiração. A recusa do Estado em negociar gera inúmeras suspeitas. Livro recém-lançado pelo Selo Manjuba revive o drama e as hipóteses sombrias por trás do episódio. Leia um trecho e concorra a um exemplar
Publicado 12/12/2025 às 16:33 - Atualizado 12/12/2025 às 18:39

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No dia 16 de março de 1978, a Itália foi palco de um dos episódios mais marcantes da década, mas que caiu no esquecimento: o sequestro do então presidente do Partido Democrata Cristão, à época partido hegemônico na Itália, e ex-primeiro-ministro Aldo Moro.
No dia em questão, Moro saiu de sua casa, em Roma, com destino ao Parlamento. No entanto, o trajeto nunca chegou a ser completado, pois o líder político acabou sequestrado pelas Brigadas Vermelhas – organização paramilitar de guerrilha comunista italiana.

À época, o jornalista Leonardo Sciascia (1921-1989) cobriu o acontecimento e ainda no ano de 1978 lançou a obra O caso moro, que acaba de ganhar uma edição brasileira, com tradução de Federico Carotti e pelos esforços editoriais do Selo Manjuba, selo de não-ficção da Editora Mundaréu.
Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de O caso moro, de Leonardo Sciascia, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 19/12, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Durante os 55 dias em que esteve em cativeiro, Moro enviou uma série de cartas à sua família e seus correligionários. O livro parte dessas missivas para analisar o que realmente estava em jogo e se outra saída era possível.
O líder político seria o homem que levaria a frente uma ampla coalizão política, contudo, ele não chegou a ser resgatado e acabou por ser assassinado.
O curioso do caso é que o governo italiano se recusou a negociar a libertação, elemento que gera até hoje diversas teorias. Um estudo intitulado “Chi ha ucciso Aldo Moro?” (Quem matou Aldo Moro?), empreendido pelo historiador Webster Tarpley, buscou esclarecer a ligação entre as Brigadas Vermelhas e a loja neofascista P2 – uma loja maçônica que operou entre 1945 e 1976 de maneira legal e até 1981 ilegalmente. O autor chega à conclusão de que toda ação foi, na realidade, orquestrada pela OTAN, por meio da Operação Gladio, com o objetivo de enfraquecer a opinião pública em relação aos comunistas e sua influência no poder.
Sobrou até para o filósofo Antonio Negri, que chegou a ser preso sob a acusação de ser o inspirador da ação e do consequente assassinato do parlamentar – a relação foi desmentida anos depois.
Além do terrível caso de sequestro, Moro é lembrado por implementar uma série de reformas sociais e econômicas que modernizaram o país – além de ser considerado um dos pais da centro-esquerda moderna.
O caso Moro revela as entranhas podres do poder, seu assassinato foi o triste fim do sonho de transformações sociais institucionais pela via democrática.
Leia, logo abaixo, um trecho da obra. Boa leitura!
[O trecho abaixo inicia-se com uma carta de Aldo Moro, publicada no dia 27 de abril de 1978, em um jornal romano, seguida pela análise sobre o poder, de Leonardo Sciascia. Moro estava sob o cárcere das Brigadas Vermelhas desde o mês anterior e tentava, frustradamente, como veríamos, negociar sua liberdade.]
Depois de minha carta surgida em resposta a algumas posições ambíguas, incoerentes, mas essencialmente negativas da DC sobre meu caso, não aconteceu nada. Não que não houvesse matéria a ser discutida. Havia, e muita. Porém faltava ao partido, a seu secretário, a seus expoentes a coragem civil de abrir um debate sobre o tema proposto, que é o da salvação de minha vida e das condições para realizá-la dentro de um quadro equilibrado. É verdade: sou prisioneiro e não estou de ânimo alegre. Mas não sofri nenhuma coerção, não estou drogado, escrevo com meu estilo, por mais feio que seja, tenho minha caligrafia habitual. Mas sou, diz-se, um outro e não mereço ser levado a sério. Assim, a meus argumentos nem se responde. E se faço o honesto pedido para que a direção ou outro órgão constitucional do partido se reúna, porque estão em jogo a vida de um homem e a sorte de sua família, em vez disso continua-se em degradantes conciliábulos, que significam medo do debate, medo da verdade, medo de assinar com o próprio nome uma condenação à morte.
E devo dizer que me entristeceu profundamente o fato (não o acreditaria possível) de que alguns amigos, desde o mons. Zama ao adv. Veronese, a G. B. Scaglia e outros, sem conhecer nem imaginar meu sofrimento, não desvinculado da lucidez e liberdade de espírito, tenham duvidado da autenticidade daquilo que eu estava sustentando, como se escrevesse sob ditado das Brigadas Vermelhas. Por que esse aval à minha pretensa não autenticidade? Mas entre as Brigadas Vermelhas e mim não há a mínima comunhão de visões. E com certeza não se configura como identidade de visões a circunstância de que eu tenha sustentado desde o início (e, como demonstrei, muitos anos atrás) que considerava aceitável, como ocorre na guerra, uma troca de prisioneiros políticos. E tanto mais que, não havendo troca, um continua em grave sofrimento, mas vivo, e o outro é morto. Na prática, a troca beneficia (e é um ponto que com humildade me permito submeter ao S. Padre) não só quem está do outro lado, mas também quem corre o risco de ser morto, o lado não combatente, essencialmente o homem comum como eu.
Outras Palavras e Selo Manjuba irão sortear um exemplar de O caso moro, de Leonardo Sciascia, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a segunda-feira do dia 19/12, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!
Disso se pode deduzir que o Estado cairá em ruínas se, por uma vez, um inocente sobrevive e, em compensação, outra pessoa, em lugar da prisão, vai para o exílio? É disso que se trata. Nessa posição, que condena à morte todos os prisioneiros das Brigadas Vermelhas (e é previsível que os haja), encastela-se o governo, encastela-se obstinadamente a DC, encastelam-se os partidos em geral, com alguma reserva do Partido Socialista, reserva esta que é desejável ser esclarecida com urgência e positivamente, visto que não há tempo a perder. Numa situação desse tipo, os socialistas poderiam ter função decisiva. Mas quando? Uma desgraça, caro Craxi, se uma iniciativa sua fracassasse. Gostaria agora de voltar um momento atrás com esse raciocínio que se desenrola como se desenrolavam meus raciocínios de outrora. É preciso mesmo voltar a dizer para esses obstinados imobilistas da DC que, no passado, em inúmeros casos foram feitas trocas, em toda parte, para salvaguardar reféns, para salvar vítimas inocentes. Mas é hora de acrescentar que, sem que a DC pelo menos ignorasse, concedeu-se a liberdade (com a expatriação) a palestinos numa quantidade razoável de casos, a fim de deter a grave ameaça de retaliações e represálias capazes de trazer dano relevante à comunidade. E, note-se, eram ameaças sérias, temíveis, mas não com o grau de imanência das que hoje nos ocupam. Mas então o princípio fora aceito. A necessidade de abrir uma brecha na regra da legalidade formal (em troca havia o exílio) fora reconhecida. Há testemunhos irrepreensíveis que permitiriam dizer uma palavra esclarecedora. E fique bem claro que, procedendo desse modo, como a necessidade comportava, certamente não se pretendia faltar com a consideração pelos países amigos interessados, os quais, de fato, continuaram sempre em suas relações amistosas e confiantes.
Todas essas coisas, onde e por quem foram ditas no seio da DC? É na DC que não se enfrentam os problemas com coragem. E, no caso que me diz respeito, é minha condenação à morte, essencialmente endossada pela DC, a qual, encastelada em seus discutíveis princípios, nada faz para evitar que um homem, quem quer que seja, mas mesmo um expoente seu de prestígio, um militante fiel, seja levado à morte. Um homem que havia encerrado sua carreira com a sincera renúncia a presidir ao governo, e foi literalmente arrancado por Zaccagnini (e por seus amigos tão habilmente calculistas) de seu lugar de pura reflexão e estudo, para assumir o equívoco manto de presidente do partido, para o qual não existia um gabinete adequado no contexto da Piazza del Gesù. São várias vezes que peço a Zaccagnini para se pôr idealmente no lugar que ele me obrigou a ocupar. Mas ele se limita a dar garantias ao presidente do Conselho de que tudo será feito como ele deseja.
E o que dizer do deputado Piccoli, o qual declarou, segundo o que leio em algum lugar, que, se eu estivesse no lugar dele (por assim dizer livre, confortável, na Piazza, por exemplo, del Gesù), diria as coisas que ele diz e não as que digo estando aqui. Se a situação não fosse (e me limito a dizer) tão difícil, tão dramática como é esta, gostaria mesmo de ver o que o deputado Piccoli diria em meu lugar. De minha parte, eu disse e documentei que as coisas que digo hoje já disse no passado em condições totalmente objetivas. É possível que não se faça uma reunião estatutária e formal, qualquer que seja o desfecho? Será possível que não haja corajosos que a peçam, como eu a peço com plena lucidez mental? Centenas de parlamentares queriam votar contra o Governo. E agora ninguém tem um problema de consciência? E isso com a cômoda desculpa de que sou um prisioneiro.
Lamentam-se os campos de concentração, mas como se trata civilizadamente um prisioneiro, que tem apenas um vínculo externo, mas o intelecto lúcido? Pergunto a Craxi se isso é correto. Pergunto a meu partido, aos tantos fidelíssimos das horas alegres, se isso é admissível. Se não se quiserem fazer outras reuniões formais, pois bem, tenho o poder de convocar para data conveniente e urgente o Conselho Nacional, tendo como objeto o tema sobre as maneiras de remover os impedimentos de seu presidente. Assim estabelecendo, delego a presidência ao deputado Riccardo Misasi.
Sabe-se que os gravíssimos problemas de minha família são a razão fundamental de minha luta contra a morte. Em tantos anos e em tantos acontecimentos, os desejos cessaram e o espírito se purificou. E, mesmo com minhas inúmeras culpas, creio ter vivido com generosidades ocultas e intenções delicadas. Morro, se assim decidir meu partido, na plenitude de minha fé cristã e no amor imenso por uma família exemplar que adoro e espero velar do alto dos céus. Ainda ontem li a carinhosa carta de amor de minha mulher, de meus filhos, do amadíssimo netinho, do outro que não verei. A piedade de quem me trazia a carta excluiu os paratextos que citavam minha condenação, se não ocorrer o milagre do retorno da DC a si mesma e à sua tomada de responsabilidade. Mas esse banho de sangue não acabará bem para Zaccagnini, nem para Andreotti, nem para a DC, nem para o país: cada um carregará sua responsabilidade.
Não desejo, repito, os homens do poder a meu redor. Quero perto de mim os que realmente me amaram e continuarão a me amar e rezar por mim. Se tudo isso está decidido, seja feita a vontade de Deus. Mas nenhum responsável se esconda por trás do cumprimento de um pretenso dever. As coisas ficarão claras, ficarão claras logo.
Há nessa carta muitas coisas a assinalar, e sobre as quais refletir. E a decifrar. Por ora, esta frase: “não havendo troca, alguém continua em grave sofrimento, mas vivo, e o outro é morto”. Alguém: “pronome indicando qualidade, aplica-se bem quando se trata de concentrar a atenção na qualidade de uma ou mais pessoas, mas normalmente não muitas”. (Ainda o Tommaseo: estou escrevendo essas páginas sobre o caso Moro entre uma enxurrada de recortes de jornal e com o dicionário Tommaseo sólido no meio, como um quebra-mar). De maneira inquestionável, Moro quer chamar a atenção dos destinatários da carta, e que se detenham sobre a qualidade de uma ou mais pessoas que o Estado deveria ceder: e que, portanto, é possível negociar o número, isto é, ficar abaixo dos treze cuja libertação foi pedida pelas Brigadas. E reitera: “O Estado cairá em ruínas se, por uma vez, um inocente sobrevive e, em compensação, outra pessoa, em lugar da prisão, vai para o exílio?”. O alguém se tornou um alguém: não há dúvida. E ainda mais, como que dizendo: uma só pessoa, entenderam bem, acrescenta: “É disso que se trata”. E parece também ser possível interpretar que essa “outra pessoa” ainda não está na prisão, mas deveria ir.
As Brigadas Vermelhas, portanto, ou pelo menos a célula que o mantém no cativeiro, escolheram-no como mediador de uma possível negociação e lhe confiaram o preço final — simbólico ou, para eles, efetivamente importante — que querem que o Estado pague. Moro faz a esse respeito uma avance bastante explícita: mas não foi entendida por quem deveria entendê-la. Agora é o 31 e 47 que, na cabala siciliana do jogo de loto, corresponde ao “morto que fala”. Que fala nos sonhos ou nos pesadelos dos “amigos”. Que continuará a falar.
Caberia assinalar muitas outras coisas: desde a advertência a Craxi e aos socialistas, à qual se pode conferir um sentido que vai além da iniciativa de lhe salvar a vida, àquela retomada do nome de Misasi para lhe delegar a presidência do Conselho Nacional da Democracia Cristã: nome que as crônicas até então nunca haviam citado como alguém que, nas reuniões secretas do partido, tivesse se manifestado propenso à negociação: a não ser que tenha sido uma intuição quase divinatória, alguém deve tê-lo mencionado a Moro. Hipótese inquietante: isto é, deixá-la, como Moro a deixou, para a inquietação dos “amigos”. E há, por fim, aquele “leio em algum lugar”, a ser visto como elemento comprovador daquilo que chamei de ética carcerária das Brigadas Vermelhas: davam-lhe o jornal, e talvez mais de um, para ler. Ou lhe prestavam uma espécie de serviço de imprensa, recortando para ele, com critérios variáveis, aquilo que consideravam que ele deveria saber. Mas o fato é que estava informado; e, ao dizer que o fato de lhe ser entregue, do jornal Il Giorno de 26 de abril, apenas a carta dos filhos, recortada para excluir “os paratextos que citavam [sua] condenação”, foi ditado pela piedade, pode também significar que até aquele momento ele recebia os jornais completos.
E então, por fim, há a palavra que escreve pela primeira vez em sua mais atroz nudez; a palavra que finalmente se revelou a ele em seu verdadeiro, profundo e pútrido significado: a palavra “poder”. “Não desejo, repito, os homens do poder a meu redor.” Mas, na carta anterior, ele falara de “autoridades do Estado” e “homens de partido”: apenas agora chegou à denominação correta, à assustadora palavra.
Ele tinha vivido para o poder e do poder até as nove da manhã daquele 16 de março. Esperava ainda tê-lo: talvez para voltar e assumi-lo de forma plena, certamente para evitar enfrentar aquela morte. Mas agora sabe que são os outros que o têm: reconhece nos outros a face feia, obtusa, feroz do poder. Nos “amigos”, nos “fidelíssimos das horas alegres”: das macabras, obscenas horas alegres do poder.
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