O mito da austeridade e a troika à brasileira

Bancos, velha mídia e tecnocracia moldam a narrativa econômica dominante. Mas a reconstrução nacional exige desafiá-la – e políticas mais ousadas que priorizem o bem-estar social. Mais que um Plano Marshall, é preciso romper com a “austeridade”

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O termo “Troika” origina-se do russo “тройка”, que significa “trio” ou “grupo de três”. Tradicionalmente, refere-se a um trenó ou carruagem puxado por três cavalos alinhados lado a lado. Na crise da dívida europeia após 2009, o termo foi adotado para descrever a colaboração das três principais instituições — Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional — que atuaram em conjunto na imposição dos programas de austeridade para os países periféricos da zona do euro que deviam aos bancos, principalmente os alemães. Atingiu fortemente países como Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. A Troika renegociou as dívidas públicas dos Estados nacionais da União Europeia em troca de austeridade fiscal e reformas econômicas orientadas às privatizações. Ela enfrentou críticas e muita resistência dos movimentos sociais por impor medidas que agravaram a recessão e o desemprego, além de limitar a soberania econômica dos países afetados. A Troika tornou-se um símbolo das políticas de austeridade na Europa.

A crise da dívida na zona do euro resultou diretamente da crise financeira global de 2008. A crise financeira de 2008, desencadeada pelo colapso do mercado imobiliário dos EUA e a falência do Lehman Brothers, levou a uma grave recessão global. Bancos europeus, expostos a ativos podres e à crise de crédito, enfrentaram severas dificuldades, necessitando de resgates e intervenções governamentais. Governos europeus injetaram grandes quantias de dinheiro em seus bancos e lançaram pacotes de estímulo para estabilizar o sistema financeiro, aumentando significativamente a dívida pública. Com o crescimento das dívidas soberanas, os mercados financeiros questionaram a sustentabilidade fiscal de países como Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. Em resposta, esses países adotaram medidas de austeridade, reduzindo gastos públicos e aumentando impostos. Essas medidas exacerbaram a recessão, aumentando o desemprego e reduzindo o crescimento econômico, criando um ciclo de dificuldades econômicas e financeiras que intensificou a crise na região.

A crise da dívida na zona do euro lembra a fábula do sapo e do escorpião. Os bancos, os escorpiões, adotaram práticas financeiras fraudulentas com a emissão massiva de títulos podres nas economias do mundo todo. Eles desencadearam a crise financeira de 2008 e, em dificuldades, recorreram aos governos (o povo) para o resgate. Governos, como o sapo, salvaram os bancos com muito dinheiro público – porque os “bancos seriam grandes demais para quebrar” – conforme a mídia corporativa propagandeou (ou melhor, a assessoria de imprensa do sistema financeiro). Em resposta, os países endividados foram forçados a adotar medidas de austeridade pela Troika com base em argumentos forjados na tecnocracia neoliberal, consubstanciadas na chamada “austeridade e responsabilidade fiscal” e influenciadas pelos credores (os bancos), o que exacerbou a recessão e o desemprego. Assim como o escorpião pica o sapo devido à sua natureza, os bancos continuaram a exercer influência maligna sobre as políticas econômicas, impondo constrições econômicas e injustiças sociais.

Antes de passar ao Brasil, peço licença aos leitores para fazer algumas digressões sobre mitos criminosos. O primeiro é a comparação feita entre orçamento público e doméstico. A Nova Teoria Monetária (NTM) tem mostrado que o Rei está nu, por exemplo, no mito de que o orçamento público é igual ao orçamento doméstico. Ao contrário de uma família, um governo que emite sua própria moeda, como o Brasil, não enfrenta as mesmas restrições financeiras, porque as moedas dos Estados nacionais não são mais lastreadas por metais preciosos ou commodities desde o fim de Bretton Woods. Enquanto uma família deve equilibrar seus gastos com sua renda, um governo com soberania monetária pode criar dinheiro para financiar seus déficits. Isso permite ao Estado investir em infraestrutura, serviços públicos e outras áreas essenciais sem a necessidade imediata de equilibrar o orçamento. Além disso, a NTM enfatiza que o verdadeiro limite para o gasto público é a capacidade produtiva da economia e a inflação, não o déficit em si. Conforme argumenta a professora Stephanie Kelton, da Stony Brook University, o déficit público nada mais é que um excedente monetário, só que na mão do sistema financeiro.

O segundo mito criminoso é que a austeridade fiscal funciona para conter a chamada dívida pública. Peguemos o caso do Brasil. A dívida pública brasileira saiu de aproximadamente 28% do PIB em 1994 para 73% do PIB em 2023, um aumento de cerca de 160,7%. Ou seja, a dívida pública aumentou ou, melhor dizendo, o excedente monetário aumentou. No entanto, o povo brasileiro continua materialmente pobre, e os serviços públicos do pacto de seguridade social da Constituição de 1988 estão desfinanciados e sucateados.

Ainda na questão do déficit, ou melhor do excedente monetário, usemos a analogia dos números 6 e 9. A visão hegemônica do déficit público assemelha-se ao número 6, visto como algo negativo que precisa ser corrigido para atingir um equilíbrio, como se buscasse subir para um valor mais positivo. Em contraste, a NTM compara o déficit ao número 9, interpretando-o como um excedente monetário positivo que beneficia o setor privado. Essa perspectiva sugere que, em vez de um problema a ser resolvido, o excedente monetário pode ser uma ferramenta para promover crescimento econômico e bem-estar social. Invertendo de ponta-cabeça o 6 que passa ser 9, o déficit público pode ser considerado um excedente monetário para o setor privado. Estamos falando de excedente, não de déficit. Isso significa que, quando o governo gasta mais do que arrecada, ele está, na verdade, injetando dinheiro na economia, aumentando os ativos financeiros disponíveis no setor privado.

Por conseguinte, podemos inferir que a austeridade fiscal pode ser vista como uma estratégia que favorece a elite econômica e política ao manter o excedente monetário concentrado no setor financeiro, limitando a redistribuição de recursos e exacerbando a desigualdade social. Essa abordagem desafia a visão convencional de que a austeridade é necessária para a sustentabilidade fiscal, propondo que, em vez disso, ela serve para preservar os interesses das elites às custas do crescimento econômico inclusivo e do bem-estar social das massas.

No Brasil, nós temos o Partido da Troika: os bancos, a mídia corporativa e a tecnocracia. Eles governam a política e a economia brasileiras desde pelo menos o ano de 1995. Esses três pilares formam uma aliança poderosa que molda a narrativa econômica dominante, promovendo políticas de austeridade e controle rígido dos déficits públicos. Os bancos, interessados em proteger seus ativos e garantir o pagamento das dívidas públicas, exercem enorme influência sobre as decisões econômicas. A mídia corporativa, por sua vez, reforça a narrativa de que austeridade é sinônimo de responsabilidade fiscal, perpetuando o medo do déficit e ignorando os potenciais benefícios de um maior gasto público para o desenvolvimento econômico e social. A tecnocracia, composta por economistas e burocratas alinhados a essa visão, implementa essas políticas sob o pretexto de garantir estabilidade econômica, à custa do crescimento e do bem-estar da população. O ano de 1995 é emblemático no Brasil por que lá reinicia-se o aumento da dívida pública em relação do PIB (30%), e porque aconteceram três eventos importantes que moldaram as políticas econômicas das décadas seguintes: (1) o Consenso de Washington, que enfatizou a liberalização econômica, a desregulamentação e a austeridade fiscal, influenciando reformas no Brasil que priorizaram a estabilidade macroeconômica e o controle da inflação; (2) a reforma do sistema de seguro social dos EUA por Bill Clinton em 1996, que promoveu cortes significativos nos benefícios e impôs restrições mais rígidas para a elegibilidade, refletindo uma tendência global de redução dos Estados de bem-estar social; e (3) o Novo Trabalhismo na Europa e no Brasil, que adotou uma abordagem combinando políticas neoliberais com algumas políticas sociais progressistas, resultando em um foco renovado em responsabilidade fiscal e controle de déficits.

Para romper com esse ciclo, é essencial reavaliar as políticas econômicas sob a ótica da Nova Teoria Monetária, reconhecendo que um excedente monetário pode ser um instrumento valioso para promover o desenvolvimento sustentável e a justiça social, redirecionando recursos das mãos dos 1% mais ricos para os demais 99% da população. Ao entender que o verdadeiro limite para o gasto público é a inflação e a capacidade produtiva, e não o déficit em si, podemos adotar políticas mais ousadas que priorizem o bem-estar social, o pleno emprego e o crescimento econômico inclusivo. É hora de desafiar o Partido da Troika e promover uma nova abordagem econômica que realmente sirva aos interesses da maioria dos brasileiros, em vez de manter o excedente monetário concentrado nas mãos das elites.

Basta de políticas públicas de muita farinha e pouca carne (um ditado muito sábio no sertão brasileiro: quando a farinha é muita, a carne é pouca). Chegou o momento de garantir que a abundância de recursos beneficie a todos, distribuindo de forma justa a prosperidade e assegurando que as políticas econômicas sirvam ao bem comum, e não apenas a uma minoria privilegiada.

É imperativo reconstruir já o nosso querido estado do Rio Grande do Sul. Do Chuí ao Oiapoque, devemos reconstruir o Brasil sonhado pelo pernambucano Celso Furtado e pela mais brasileira das portuguesas, Maria da Conceição Tavares. Em vez de um plano Marshall, por que não um Plano Carolina Maria de Jesus, em homenagem às Minas Gerais de Juscelino e Tiradentes? Vamos direcionar nossos esforços para um desenvolvimento que valorize nossa identidade, cultura e o bem-estar de todos os brasileiros e brasileiras.

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