Como enfrentar a crise de saúde mental nas universidades?

Sofrimento psíquico no ensino superior, que tem levado até a tragédias, pode ser um dos sintomas de uma estrutura administrativa e pedagógica autoritária e engessada. Iniciativas de atendimento psicológico nos campi são importantes, mas insuficientes…

Imagem: Dimitar Belchev | Unsplash
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Título original: A saúde mental na Universidade e a política como forma de cuidado

Nesta segunda quinzena de setembro de 2025, a Universidade Federal do Rio Grande (FURG), situada no extremo sul do Brasil, cancelou suas atividades acadêmicas para fins de acolhimento e reflexão sobre fatos trágicos ocorridos em seu campus central. O fato teve grande repercussão nas redes sociais e desencadeou grande comoção a respeito da gestão universitária e do cuidado da saúde mental no meio universitário. Como sou frequentador do meio universitário federal desde 1994, trabalho na docência desde 2000 e sou professor da FURG desde 2010 (justamente na disciplina de psicologia da educação), me senti convocado a tecer algumas considerações sobre o cuidado em saúde mental e a gestão do ensino superior federal. Acredito que minha vontade de ser professor começou quando ingressei no curso de Psicologia da UFRGS e fui convocado a participar do movimento estudantil. Naquele ano, os estudantes de psicologia, por autogestão, organizavam encontros regionais, os EREPS, e, por sorte, naquele ano o tema do encontro foi “O cotidiano universitário: como anda sua relação com o conhecimento”. Nos EREPS da região sul, estudantes dos três estados, alojados em salas de aula da universidade, confraternizavam e travavam debates e trocas sobre as diferentes experiências de ser e estar em um curso superior. Lembro bem que uma das mesas de debate era “O pacto de mediocridade: professor finge que aprende e aluno finge que estuda”. Hoje essa forma de mobilização na psicologia está extinta, e acredito que em outras áreas também, juntamente com o movimento estudantil em geral. Mas se eu pudesse voltar no tempo, eu organizaria um evento com a mesma temática, mas mudaria o tema “Cotidiano universitário: por que sofremos e adoecemos tanto?”

O ensino superior no Brasil só foi oficialmente implantado no século XIX, muito tempo depois do surgimento das primeiras universidades europeias e latino-americanas. Até o início do século XIX, jovens brasileiros que desejavam alcançar formação superior precisavam, obrigatoriamente, viajar para o exterior, principalmente para Portugal. Isso se devia à ausência de universidades no território brasileiro durante o período colonial, reflexo da política portuguesa de centralização do saber.

A chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, mudou esse cenário. Como resposta às necessidades administrativas e profissionais do novo centro político do império, foram fundadas as primeiras escolas superiores no país, como a Escola de Cirurgia da Bahia e a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro. Outras instituições voltadas para áreas específicas, como engenharia, também surgiram ao longo do século XIX.

A primeira universidade brasileira, contudo, foi criada apenas em 1920: a Universidade do Rio de Janeiro, que depois deu origem à atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A fundação dessa universidade, resultado da junção de faculdades isoladas, representa um marco importante para o ensino superior federal, consolidando a ideia de universidade como espaço integrado de pesquisa, ensino e extensão.

A expansão e a federalização do ensino superior

No início do século XX, o ensino superior brasileiro era restrito à elite e concentrava-se em poucas cidades. A Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, trouxe uma nova lógica para o Estado brasileiro, impulsionando a modernização e a expansão do ensino, inclusive em nível superior. Foram criadas novas universidades, como a Universidade de Minas Gerais (1930) e a Universidade de São Paulo (1934), esta última sob administração estadual, mas com forte influência no modelo federal.

A década de 1950 testemunhou a expansão dos cursos de graduação e a criação de universidades federais em várias regiões do país, buscando descentralização e interiorização do ensino superior. A criação do Ministério da Educação e Cultura (MEC) em 1930 e, posteriormente, do Conselho Federal de Educação (CFE) em 1961, foram fundamentais para a formulação de políticas públicas voltadas para a universalização e democratização do acesso à universidade.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), promulgada em 1961, estabeleceu um marco normativo para o ensino superior, regulamentando sua estrutura, gestão e objetivos. Já nos anos 1960, o regime militar implementou uma reestruturação profunda nas universidades federais, com o objetivo de fortalecer a pesquisa, ampliar a oferta de vagas e aproximar a produção acadêmica das demandas do mercado e do Estado.

Transformações durante o regime militar

A reforma universitária de 1968, impulsionada pelo governo militar, representou um divisor de águas para as universidades federais. Ela instituiu o modelo departamental, a pós-graduação stricto sensu, a dedicação exclusiva para docentes, a pesquisa como eixo estruturante e incentivou a criação de universidades multicampi. Apesar do contexto autoritário, esse período foi marcado por forte expansão da rede federal e aumento expressivo do número de estudantes matriculados.

Ao mesmo tempo, os anos de chumbo trouxeram repressão política ao ambiente universitário, com perseguições, cassações e intervenções nas instituições federais. A universidade pública tornou-se palco de resistência e luta por liberdade, consolidando sua tradição de protagonismo nos principais debates nacionais.

Com a abertura política e a redemocratização do país, a partir dos anos 1980, houve um novo impulso para a autonomia universitária e para a valorização do papel social das universidades federais. A Constituição Federal de 1988 reafirmou esses princípios, garantindo a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades. Além disso, a Carta Magna estabeleceu a gratuidade do ensino nas instituições públicas federais e reforçou o compromisso do Estado com a expansão do acesso e com a promoção da inclusão social.

Nas décadas seguintes, o sistema federal expandiu-se significativamente, tanto em número de universidades quanto em vagas, cursos e campi. Movimentos sociais, políticas afirmativas e programas de inclusão — como o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Sistema de Seleção Unificada (SiSU) e a Lei de Cotas — alteraram profundamente o perfil estudantil, intensificando a diversidade étnica, social e regional nas universidades.

Interiorização e democratização

A partir dos anos 2000, políticas de interiorização e de expansão do ensino superior federal ganharam força, criando universidades e institutos federais em cidades médias e pequenas, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Iniciativas como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) foram decisivas para a ampliação do acesso, a diversificação da oferta de cursos e a valorização da pesquisa e da extensão universitária no interior do país.

O fortalecimento dos institutos federais de educação, ciência e tecnologia, instituídos em 2008, também ampliou o escopo do sistema federal, integrando ensino médio, técnico e superior, e aproximando a formação acadêmica das necessidades regionais e do mundo do trabalho.

O sistema federal de ensino superior brasileiro enfrenta, atualmente, múltiplos desafios. A garantia de financiamento público suficiente, o combate à evasão e à retenção de estudantes, a internacionalização das universidades, o fortalecimento da pós-graduação e da pesquisa, bem como a inclusão de grupos historicamente marginalizados, figuram entre as principais pautas contemporâneas.

A crise fiscal do Estado, aliada a tensões políticas e orçamentárias, impõe limites à expansão sustentável do sistema federal. Ao mesmo tempo, as universidades federais seguem sendo responsáveis por grande parte da produção científica nacional, pela formação de profissionais de excelência e pelo desenvolvimento de projetos de impacto social.

As universidades federais brasileiras são reconhecidas pela excelência em pesquisa, extensão e ensino. Instituições como UFRJ, UFMG, UFBA, UFPE, UNB, entre outras, figuram em rankings internacionais, promovem inovações tecnológicas, científicas e culturais, e contribuem de forma decisiva para o desenvolvimento do país em múltiplas áreas: saúde, engenharia, educação, ciências humanas, sociais e ambientais.

O sistema federal de ensino superior é, ainda, um espaço de reflexão crítica, produção de conhecimento e construção de cidadania, abrigando debates sobre direitos humanos, democracia, diversidade cultural e sustentabilidade.

As duas últimas décadas representaram uma grande expansão do sistema de ensino superior federal, porém também foram marcadas por cortes gigantescos no orçamento, por um período de ataques políticos e ideológicos da extrema direita e principalmente por um lento processo de engessamento administrativo, privatização silenciosa pela terceirização e recrudescimento da democracia, especialmente da redução da participação estudantil, especialmente após a pandemia e com a ascensão da digitalização da ação política em redes sociais privadas.

O que chamo de privatização silenciosa é a naturalização do fato de que tanto docentes quanto estudantes pagam para trabalhar e estudar. Nós docentes já adotamos como banal usarmos nossos notebooks em sala de aula, bem como pagarmos por insumos de laboratórios ou mesmo para os coffee breaks em eventos comemorativos, além de muitos campi não contarem com restaurante universitário ou cantina. Os estudantes passam pelas mesmas provações, além da precariedade do transporte coletivo, que hoje não é mais público, e sim concedido, que é caro e muito precário.

Trabalho em um campus que fica no litoral norte, 80 km distante de minha residência, e, mesmo recebendo auxílio-transporte, nas aulas do período noturno, dependo de meu automóvel particular para trabalhar. A cidade não conta com linhas de ônibus diretas para o campus, obrigando a Universidade a fazer um esforço descomunal fora de suas atribuições e bancar uma linha privada. Essa realidade se repete nas Federais de todo o Brasil.

Além disso, em toda sua história, nunca as Universidades Federais pararam para pensar em seu modelo administrativo e pedagógico, apesar de seus detratores frequentemente nos acusarem de discípulos comunistas de Paulo Freire. Minha tese vai justamente no sentido contrário: somos a instituição mais conservadora e reacionária no quesito metodologia de ensino e pedagogia.

Para formar um psicólogo ou um economista, é preciso cinco anos de curso superior. Para formar um professor universitário, basta escrever dissertação e tese e publicar artigos. Pelas grades de pontuação de currículo nos concursos, uma pessoa com quatro semestres de prática docente, às vezes nenhum, entra em uma Federal onde, além de dar aulas, vai ter que fazer pesquisa, extensão e cumprir funções administrativas (para as quais não somos capacitados).

Outra questão é não haver fomento à participação dos estudantes nas funções representativas da universidade previstas por lei. Assim, nas Federais, por exemplo, a maioria dos cursos é gerida por dois ou três professores que decidem tudo, até as coordenações de curso. Sem democracia e participação na gestão, não há ação para apagar incêndio de saúde mental que resista. Esse problema possui várias causas e ele é um sintoma social mundial, o desânimo, a descrença nas instituições, a dificuldade em relacionamentos presenciais, a cultura do cancelamento…

Os problemas universitários não são pontuais e, de perto, se resumem a casos extremos, mas o acúmulo de pequenos autoritarismos ou uma gestão não democrática ou engessada são o caldo de cultura para problemas muito sérios. A gestão democrática e a participação efetiva do corpo discente nos processos decisórios ou o encaminhamento coletivo de demandas criam laços, vínculos e consciência de classe e de que a política não se resume à burocracia, antagonismo e cismogênese. Em geral, as estratégias utilizadas dizem respeito a denúncias na ouvidoria, avaliações anônimas ou mesmo manifestações em redes sociais que, além de inócuas, fortalecem o fascismo digital das big techs.

Contudo, a experiência demonstra que é possível, e relativamente simples, fazer diferente e o exemplo é caseiro. O curso de psicologia da FURG, do qual fui docente por sete anos, desde sua fundação há quase duas décadas mantém, conforme o estatuto da universidade, reuniões mensais e, por vezes, quinzenais do seu Comitê Assessor com representação discente ativa e permanente e um Centro Acadêmico composto por representantes de turma. O corpo discente participa de todos os processos decisórios do curso, até mesmo das grades de horários, e, quando há algum problema com um docente, o centro acadêmico se coloca como um canal de mediação e expressão e os conflitos são administrados ao vivo.

O curso de Psicologia (como em muitas federais) também conta com um serviço de atendimento psicológico público e gratuito que atende a comunidade universitária e faz parte da rede de serviços de saúde mental de Rio Grande. Eu mesmo tive a oportunidade de atender nesse serviço durante alguns anos e escutar o sofrimento psíquico da população universitária. Nosso ofício é muito importante, mas é preciso ressaltar que ele é apenas auxiliar; não há atendimento médico ou psicológico que dê conta de um sistema social estruturalmente desigual e problemático.

É claro que, como todo processo democrático, nem tudo são flores e há conflitos, mas é evidente que é possível resgatar o protagonismo decisório estudantil sem grandes manobras administrativas e isso faz toda a diferença, porque nem os discentes estão sozinhos nem os docentes são condenados ao ostracismo das práticas pedagógicas e administrativas.

Isso inclusive pode se refletir na eterna caixa-preta da pedagogia universitária. Muitos colegas, sobrecarregados pelo chamado “tripé” e pela carência de vagas, muitas vezes reproduzem os velhos modelos escolares aprendidos de provas bimestrais e chamadas, e apresentam planos de ensino onde nós, professores, damos respostas a coisas que ninguém perguntou. Afinal, como em nossas vidas pudemos aprender diferente?

E todos os grandes pensadores progressistas da educação convergem nisso: a educação precisa mais de perguntas que respostas.

E a política, enfim, pode ser uma forma de cuidado.

Para aprofundar o tema, recomendo dois textos meus anteriores sobre o assunto: “A greve acabou, e daí? O Big Brother não está olhando” e “O capitalismo acadêmico e a shoppinização da ciência no Brasil”

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