Caminhos para superar a Grande Distorção
Quando o sistema financeiro captura a democracia e a tecnologia avança mais rápido que nossa capacidade de governar e planejar o futuro, é a hora de rupturas. O caminho: novo pacto global que conecte economia, política e sustentabilidade
Publicado 14/10/2025 às 19:46 - Atualizado 14/10/2025 às 19:59

Por Ladislau Dowbor, no Meer | Tradução: Rôney Rodrigues
Dificilmente podemos ainda ser chamados de cidadãos. Em vez disso, uma plateia, espectadores de um ritmo acelerado de mudança sobre o qual não temos controle. A lente política que herdamos, socialismo e capitalismo, estado e corporação, esquerda e direita, nos dá uma visão distorcida e trêmula. Adam Smith, Karl Marx, Joseph Schumpeter, J.M. Keynes? Uma nova e poderosa geração de economistas criativos certamente nos fornece imagens atualizadas, mas o denominador comum é que a catástrofe em câmera lenta não é mais lenta, mesmo que a orquestra ainda esteja tocando.
Permitam-me uma visão geral. Em primeiro lugar, a população mundial está prestes a se estabilizar em torno de 9 a 10 bilhões de habitantes na década de 2050, e é para isso que temos que organizar nosso planeta, pensando a longo prazo, com condições de vida razoáveis e sustentáveis para todos. Certamente é possível. Mas ainda estamos em uma absurda corrida de “salve-se quem puder”, lutando por privilégios, chegando ao topo à custa dos outros, saqueando e destruindo recursos não renováveis, poluindo tudo no planeta e enchendo nossas cabeças com idiotices que buscam chamar a atenção. Nosso problema não está nos problemas, mas em nossa persistência em criá-los mesmo vendo as consequências, e nossa impotência para reverter seu aprofundamento. Bem-vindos ao mundo rico, high-tech e autodestrutivo do século XXI. E eu sou um otimista.
Rico? Tomemos o fato básico de que o PIB mundial atingiu US$ 115 trilhões em 2025, o que significa que o que produzimos em bens e serviços equivale a aproximadamente US$ 5.000 por mês para uma família de quatro pessoas. Trago os trilhões enormes para o nível familiar, porque isso nos faz pisar no chão: produzimos o suficiente para todos. Pode-se brincar com esse número, apresentar a renda nacional líquida em vez do produto interno bruto, e também adicionar o enorme capital acumulado que não é contabilizado nas cifras do PIB, mas o fato básico e enorme é que produzimos o suficiente para todos nós termos uma vida confortável e próspera, como Tom Malleson gosta de chamar. Sei que estou me repetindo com esses números, mas é um ponto de referência para qualquer raciocínio sobre nossos desafios estruturais: temos que colocá-los aqui como ponto de partida.
Portanto, a questão não é produzir mais e glorificar as porcentagens de crescimento, mas desacelerar, recuperar o fôlego e olhar mais profundamente para o que estamos produzindo, para quem e com quais consequências ambientais. Bem, a comida que produzimos é suficiente para 12 a 14 bilhões de pessoas, de acordo com a FAO, no entanto temos 750 milhões passando fome, 2,3 bilhões em insegurança alimentar, 150 milhões de crianças menores de cinco anos sofrendo de nanismo, além de 42,8 milhões sofrendo de emagrecimento patológico¹. Cerca de 6 milhões morrem dessas condições todos os anos. Isso não é uma crise repentina, é uma tendência permanente de longo prazo, uma falha estrutural. Fechar os olhos para esta tragédia não significa necessariamente que sejamos bárbaros, como indivíduos, mas certamente significa que ainda estamos em tempos bárbaros como sociedade. MAGA, alguém?
Este artigo não trata de alertar para os nossos dramas; temos a catástrofe das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a poluição por plástico, produtos químicos em cada curso d’água, a destruição das florestas tropicais, e temos o noticiário da noite mostrando os incêndios, as inundações, a violência. E reuniões intermináveis sobre todas essas questões. Este artigo trata de como estamos desorganizados e de como podemos nos organizar. Participei ativamente da Cúpula Mundial sobre Sustentabilidade de 1992 no Rio de Janeiro, organizando a exposição de tecnologias sustentáveis em São Paulo, um evento paralelo. Isso foi há 33 anos, já sabíamos o que precisava ser feito e tínhamos os meios tecnológicos. Ainda estou lutando por essas questões, esperando que atinjamos 20% dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Esta é uma medida de nossas conquistas, esperar por 20% dos objetivos. Com mais de 30 COPs, discutimos todos os anos o quão fundo estamos nos metendo em problemas. Esta é uma medida de quão impotentes somos. Davos, alguém?
Então, temos os meios financeiros, sabemos o que deve ser feito e temos as reuniões. E em 2025, temos um poderoso presidente de um país rico proclamando “Perfure, baby, perfure” e tirando os Estados Unidos das metas da Conferência de Paris novamente, em uma espécie de jogo de ioiô. O problema aqui não é Donald Trump; temos demagogos aos montes para cada eleição em cada país. O problema é que, não obstante os óbvios desafios que enfrentamos, e o fato de que temos os recursos, bem como as medidas passo a passo que devem ser tomadas, estamos elegendo esse tipo de político. Com um presidente eleito tendo 13 bilionários sorridentes atrás dele na cerimônia de posse, o problema está com o demagogo. Significa que o dinheiro no topo está divorciado de contribuir para o bem comum. Significa também que a narrativa fundamental, de que maximizar o lucro é legítimo, independentemente das consequências para a sociedade e para o meio ambiente, assumiu o controle tanto do processo de decisão econômico quanto do político.
É uma tendência destrutiva, ainda assim as pessoas votaram nela, os congressistas votam nela, Wall Street está entusiasmada, temos um mercado em alta, o que significa que o sistema de recompensas e feedback positivo nos empurra corredeira abaixo. Não é um erro social; é um equívoco social, político e econômico. A questão é que esse tipo de deformação sistêmica exige mudança estrutural, e não temos o contrapoder político correspondente. Se fosse apenas os EUA, mas está se fortalecendo em tantos países. Não se trata de esperar a próxima eleição, trata-se do que aconteceu com a eleição, com a democracia em geral, e quão profunda é a mudança estrutural. É essencial chegar às engrenagens motrizes dessa transformação.
Temos todos os dados de que precisamos sobre a dramática desigualdade que progride no mundo. As engrenagens são simples: a maioria das pessoas no mundo tem dificuldade para chegar ao fim do mês, ou está endividada, enquanto as pessoas ricas, uma vez satisfeitas suas amplas necessidades básicas, têm dinheiro para “investir”. E quanto mais dinheiro sobrando você tem para investir, mais rico você fica: este é o efeito bola de neve financeiro, quanto mais dinheiro você tem, mais dinheiro você ganha. E não é um investimento produtivo, mas um investimento financeiro. A Forbes nos dá os números: 3.028 bilionários têm uma fortuna de US$ 16 trilhões, enquanto a metade mais pobre da população, 4,1 bilhões de pessoas, tem uma riqueza total de US$ 5 trilhões. Era inevitável que esse nível de poder econômico no topo gerasse o correspondente poder político.
A mudança curiosamente chamada Citizens United na Constituição americana, em 2010, permitindo que dinheiro corporativo financie eleições, é uma deformação estrutural do que ainda chamamos de democracia. Não é simplesmente um problema; é uma falha estrutural em nossa capacidade de resolver problemas. Isso é muito mais do que o poder dos ricos, a plutocracia. É uma deformação do processo decisório no topo. As maiores corporações de gestão de ativos detinham US$ 50 trilhões em 2022, aproximadamente metade do PIB mundial. A BlackRock sozinha, em 2025, gerencia US$ 12 trilhões. Apenas como lembrete, o orçamento federal dos EUA é de US$ 6 trilhões. Essas plataformas enormes capturam dinheiro de todo o mundo, em uma rede de dinheiro virtual, e Larry Fink não tem escolha a não ser maximizar os retornos sobre esses investimentos financeiros. O mesmo vale para UBS, JP Morgan, State Street, Vanguard, Fidelity e afins.
Tantas fortunas ao redor do mundo dependem desse sistema extrativista, capitalismo extrativista como tem sido chamado, que ele se tornou poderoso demais para ser movido. O gigantesco sistema de especulação financeira em escala mundial detém aproximadamente seis vezes o valor do PIB mundial, mais de US$ 600 trilhões, apenas em derivativos. Dinheiro demais e interesses demais estão entrelaçados nessa teia de interesses para que o sistema se mova. As mensagens anuais excessivamente adocicadas de Larry Fink, para “investidores” ao redor do mundo, são o equivalente financeiro da mensagem “perfure, baby, perfure” para as corporações de petróleo e gás. Os gestores não são estúpidos; estão perfeitamente cientes das consequências, até afirmam aderir aos princípios ESG, mas estão presos na teia, e o fato de que também ficam tão ricos não ajuda. Estamos enfrentando uma falha estrutural.
Isso vai muito além do que chamávamos de capitalismo, quando enriquecer também significava que você produzia algo útil. E com o dinheiro virtual, apenas um número em computadores, percorrendo o mundo em frações de segundo, perdemos completamente o controle: os bancos centrais são basicamente instituições nacionais, enquanto o dinheiro é global. E não temos regulação internacional, as instituições de Bretton Woods datam de 80 anos atrás e são impotentes, o BIS (Banco de Compensações Internacionais) apenas dá alguns conselhos e informações sobre derivativos pendentes. A facilidade com que as plataformas financeiras – acho que este é o nome apropriado para essas instituições, já que são essencialmente uma rede de gestão de dinheiro em nuvem – transferem recursos gigantescos no espaço global criou uma falha sistêmica naquilo que antes era um sistema financeiro a serviço do investimento produtivo, transformando nossas poupanças em produção, bens e serviços.
Uma questão essencial é que o sistema de maximização financeira em escala mundial de dinheiro virtual – “cloud-money” (dinheiro em nuvem) é um nome apropriado nos escritos de Yanis Varoufakis – naturalmente transforma a lógica das mais diferentes áreas de atividade econômica². Peter Phillips nos traz uma apresentação excepcionalmente bem organizada da nova estrutura de poder econômico global que resulta dessa financeirização geral, em seu estudo Titans of Capital³. Os interesses financeiros das 10 maiores plataformas globais de gestão de ativos lhes permitem exercer controle sobre as principais plataformas de mídia social (Alphabet, Meta, Amazon e grupos de alta tecnologia em geral), mas também sobre as principais empresas de tabaco, corporações de petróleo e gás, indústria militar e até mesmo redes de prisões privadas.
Um controle similar pelos Titãs é exercido sobre grandes empresas no Brasil, por exemplo, com bancos como Itaú ou Bradesco, empresas de energia, planos de saúde e assim por diante. Essa economia de proprietário ausente, com drenagens internacionais sobre atividades produtivas ou financeiras em todo o mundo, é estruturalmente diferente do capitalismo industrial que conhecíamos, mesmo que o Fórum Econômico Mundial em Davos goste de chamá-lo de Indústria 4.0, significando o mesmo sistema com um passo à frente tecnológico. Não há uma “mão invisível” para regular atividades nessa escala, e o livro de Phillips mostra que os gestores dos principais gigantes financeiros participam simultaneamente do processo de decisão das mais diferentes corporações, gerando políticas globais convergentes.
Quão instável o mundo se tornou, com todas essas riquezas e todas essas tecnologias? Quão frágeis são nossas vidas e a própria natureza neste pequeno planeta. É inescapável que precisamos de um novo Bretton Woods, um Global Green New Deal (Novo Acordo Verde Global) como tem sido chamado, mas parece que temos que esperar até que a catástrofe se aprofunde muito mais para que o mundo crie o impulso político e cultural correspondente para que isso aconteça. Demis Hassabis, ganhador do Nobel, considera que esta revolução digital que estamos vivendo “será 10 vezes maior que a Revolução Industrial e talvez 10 vezes mais rápida”. Mas a política está firmemente presa no século passado. A fratura entre o ritmo tecnológico e a política estagnada está se aprofundando.
A questão básica é que estamos vivendo neste processo acelerado de mudança sistêmica, enquanto nossa capacidade de governança permanece presa no mundo analógico do século passado, nas rivalidades nacionais e na competição destrutiva. O desafio é mobilizar nossas enormes capacidades financeiras, tecnológicas e de rede para nos recolocar nos trilhos. 2050, em termos históricos, é um piscar de olhos⁴.
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