Água: o Brasil precisa debater a gestão comunitária

Um exemplo que vem da Colômbia. Comunidades organizaram-se por direitos e passaram a gerir, elas mesmas, a captação, tratamento e distribuição de água potável. Mas frear privatizações e investidas poluidoras exige pressão popular sobre governos

Membros da Rede Nacional de Aquedutos Comunitários. Foto publicada jor site colombiano El Espectador
.

MAIS:
O Ondas, parceiro editorial de Outras Palavras, produz semanalmente um boletim sobre o Direito à Água e ao Saneamento. Veja, na na última edição: Greve na Sabesp, Metrô e CPTM – projeto de desmonte de Tarcísio em São Paulo; o suplício das famílias em seca histórica na Amazônia; a regulação de recursos hídricos, além de outras notícias e artigos

Título original deste texto: Pela gestão pública comunitária das águas

Para aqueles que acreditam que é possível e que trabalham na busca de soluções que sejam boas para todas as pessoas, surpreende ver, entre as camadas mais pobres e vulneráveis, o apoio à extrema direita que, na essência, defende que as soluções boas devem ser reservadas para o seleto grupo que pode pagar por elas.

A resposta a esse paradoxo não tem resposta nem única nem fácil. A busca de uma solução individual quando parece ser muito difícil encontrar uma solução coletiva tem semelhança à localização do bote salva vidas quando não mais se acredita que seja possível salvar o barco em que navegamos… O martelar constante da meritocracia, o discurso do empreendedorismo e de que há bons lugares para aqueles que brilham forjam uma falsa noção de que há caminho para a salvação através do esforço individual. Um verdadeiro culto ao salve-se quem puder, que deveria ser mais claramente apresentado por salve-se quem puder pagar.

Foto: Ricardo Moretti

A crença nessa ideologia auto empreendedora se choca e pode fazer soar falsa a lógica de que apesar de sermos diferentes, temos direitos iguais, de que todos devemos ter as mesmas oportunidades. Ou seja, choca-se com a ideia de que é fundamental buscar soluções que sejam boas para todas as pessoas, de que a democratização de oportunidades pode viabilizar a melhoria gradativa das condições de vida de forma abrangente. Como se contrapor à lógica do salve-se quem puder pagar, sem ter acesso aos grandes instrumentos de comunicação de massa, é uma chave que muitos procuram encontrar.

Contra toda essa lógica dominante, surge a organização política dos grupos comunitários que lutam pelo direito à água na Colômbia e na América Latina, e esta pode nos dar algumas pistas de um caminho para se contrapor ao pensamento empreendedor individualista, preconizado diariamente nos grandes meios de comunicação e respaldado pela ideologia neoliberal.

O movimento de caráter nacional em defesa da água que se forjou na Colômbia nos últimos 20 anos constitui uma demonstração prática de que sim, podemos e de que juntos podemos mais. Em meio a guerras e conflitos armados de várias naturezas, a população rural da Colômbia teve que se organizar para encontrar, ela própria, solução para seu abastecimento de água. Milhares de agrupamentos de residências rurais organizaram o que eles chamam de aquedutos comunitários que são sistemas de captação, tratamento e distribuição de água potável, que apesar do nome que remete a canais abertos, usualmente utilizam tubos fechados como é usual no Brasil.

Esses grupos comunitários, das mais variadas formas, encontraram meios para captar recursos, principalmente entre a própria comunidade, para buscar mananciais de boa qualidade e viabilizar a implantação, operação e manutenção desses sistemas. Mais que isso, se organizam através de associações comunitárias na tentativa de proteger as fontes e mananciais de água indispensáveis para sua sobrevivência, com papel preponderante das mulheres.

Em 2005 iniciou-se um movimento de unificação da luta das associações comunitárias que gerem esses aquedutos, que se estimam que sejam mais de 35 mil. Para traçar estratégias de avanço na luta pela garantia de acesso à água, realizou-se no município de Popayán, Cauca, entre os dias 22 e 24 de setembro último, o IX Encontro dos Aquedutos Comunitários que reuniu lideranças dessas comunidades e participantes de outros movimentos de mesma natureza de outros países. Gradativamente foi ficando claro para essas comunidades que sem água não há democracia e que a luta pelos direitos à água tem profunda conexão com a luta por direitos para todas as pessoas, de forma abrangente.

O atual governo da Colômbia, de caráter democrático e popular, depois de 200 anos de governos conservadores, tem reconhecido essas comunidades e suas demandas. A ministra da Habitação, Cidade e Território, Catalina Velasco Campuzano, esteve na abertura do evento e, junto com parte de sua equipe, permaneceu na cidade por dois dias para se reunir com as lideranças do movimento e pensar iniciativas concretas de apoio às demandas das comunidades. Mais do que apenas mostrar o apoio do atual governo aos representantes das comunidades, este fato demonstra de forma inequívoca a força que conseguiu obter a unificação das lutas das milhares de comunidades, inicialmente dispersas.

Foto: Ricardo Moretti

O grande desafio da Rede de Aquedutos Comunitários hoje é viabilizar a aprovação de um projeto de lei que está tramitando no Congresso, que reconhece e regulamenta os seus aquedutos. O projeto de lei foi resultado de amplo e longo processo de consulta às comunidades, conduzido por jovens advogados comprometidos com as causas populares e com o apoio da universidade. A aprovação dessa lei é considerada de grande importância pois, até então, não há enquadramento jurídico adequado e havia uma tentativa de enquadrar as associações que cuidam dos aquedutos comunitários como prestadores de serviço, submetendo-os a todas as exigências burocráticas e fiscais de uma empresa concessionária de serviços públicos de abastecimento de água potável.

Da mesma forma, paira sobre a continuidade dos grupos comunitários que gerem os aquedutos, as ameaças de privatização das águas e do continuado processo de degradação ambiental associado a atividades mineiras, extrativistas, e de monocultura, com uso intensivo de agrotóxicos. A aprovação do projeto de lei dos aquedutos comunitários pode trazer assim meios para que as associações tenham segurança da continuidade e do aperfeiçoamento do trabalho que desenvolvem, contando de forma institucional com o apoio técnico e financeiro que necessitam.

Durante o evento chamaram atenção as várias manifestações destacando a importância de se manter a autonomia do movimento e dos riscos de que suas lideranças venham a ser absorvidas na máquina do governo, descaracterizando o espírito do trabalho e da luta pelo fortalecimento do espírito comunitário que vêm desenvolvendo. Em processo semelhante ao que se verificou no Brasil, foi relatado que, após a vitória popular na Guerra da Água de Cochabamba e da entrada de Evo Morales no governo da Bolívia, houve a incorporação de parte de suas lideranças nos governos e esse processo teve graves consequências no esvaziamento do trabalho de base e comunitário que agora busca se recuperar.

O avanço no fornecimento de água para população rural da Colômbia viabilizado pelos aquedutos comunitários guarda relação com o avanço obtido no estado do Ceará com a implantação dos SISARs, Sistemas Integrados de Saneamento Rural, que atende hoje a quase um milhão de pessoas na área rural deste estado. Mais que isto, porém, o histórico político da união de esforços e constituição de um movimento que junta os esforços de milhares de lideranças das associações comunitárias constitui uma pista importante de um trabalho de formação política, que se contrapõe de forma prática à apologia do salve-se quem puder pagar. Uma demonstração prática de que juntos, podemos mais.

Edson Aparecido da Silva: secretário executivo, e Ricardo Moretti, representaram o Ondas no IX Encuentro Nacional de Acuedutos Comunitarios.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *