Na China, um possível Socialismo de Abundância
Vale a pena examinar o uso crescente, por Pequim, da tecnologia voltada ao planejamento. Podem estar surgindo condições historicamente novas para superar os mercados (e sua desigualdade intrínseca) sem recorrer à rigidez e burocracia do sistema soviético
Publicado 22/12/2025 às 15:40 - Atualizado 22/12/2025 às 17:00

Por Diego Pautasso e Isis Maia
O socialismo real do século XX enfrentou dilemas estruturais diversos, que se tornaram centrais tanto para a crítica liberal quanto conduziram setores marxistas ao que Losurdo (2004) chamou de autofobia. Em larga medida, essa autofobia ganha curso no que chamamos de marxismo de cátedra, isto é, um marxismo descolado das mediações concretas, das condições materiais do desenvolvimento desigual e das circunstâncias históricas específicas, e que desemboca em concepções messiânicas (Pautasso; Nogara, 2023). Ao abstrair a luta de classes real e as limitações objetivas das formações sociais periféricas, parte da crítica interna termina por reproduzir a narrativa de inviabilidade dos projetos socialistas.
Os desafios e contradições vividos pelas experiências socialistas do século XX precisam fornecer as lições e direções para a construção de sociedades pós-capitalistas na conjuntura histórica presente. É justamente aqui que se encontra um ponto decisivo relacionado à emergência da atual fronteira tecnológica-digital, capaz de reconfigurar as bases materiais da ação estatal e coletiva, abrindo possibilidades inéditas para um socialismo do século XXI. Aqui, os experimentos da China são determinantes.
Alguns limites do socialismo real
As experiências do socialismo real foram abrangentes no tempo (1917–91) e no espaço (chegando a 32 países nos anos 1980). Apesar de inúmeros avanços, expuseram contradições que levaram ao colapso do sistema. Era o caso das limitações da planificação econômica, em sociedades cada vez mais complexas, dificultando a coleta, o processamento e a análise eficiente de fluxos massivos de dados analógicos. O planejamento soviético, por exemplo, baseava-se em informações fragmentadas, lentas e muitas vezes desatualizadas, abrindo espaço para gargalos produtivos, desequilíbrios setoriais e problemas de coordenação que a teoria liberal transformou em dogmas sobre a inviabilidade do socialismo. O mundo analógico impunha limites severos à coordenação em larga escala, pois embora produzisse metas quantitativas isoladas, não captava demandas e necessidades na base da sociedade e no conjunto das cadeias de valor. Essa rigidez estrutural gerava desperdícios em alguns elos e gargalos em outros, reduzindo a eficiência e o dinamismo dos investimentos.
Com efeito, Alec Nove (1989) destaca como a maldição da escala e a fragmentação burocrática tornavam o processo de tomada de decisão lento e desconectado da realidade produtiva, enquanto a ausência de sinalizações impedia uma avaliação racional de custos, qualidade e demanda. Além dessas distorções, a fixação em indicadores físicos quantitativos (toneladas, unidades) pela planificação central criava barreiras à inovação sistêmica, contrastando ilhas de progresso tecnológico com dificuldade de suprir itens de consumo básicos.
Ainda assim, como sublinhou Keeran e Kenny (2008), os avanços e conquistas dessas experiências foram múltiplas, incluindo pleno emprego, universalização de serviços como educação e saúde, industrialização acelerada, mobilidade social e redução das desigualdades e o próprio planejamento de longo prazo dos setores estratégicos.
Outro limite estrutural dizia respeito à democracia e à participação política. O socialismo real lidava com sociedades urbanizadas em que a deliberação política se tornava cada vez mais intermediada por estruturas burocráticas. A dificuldade de construir instituições democráticas, participativas e responsivas em sistemas de larga escala constituiu uma das tensões entre representação, governabilidade e participação popular. Tal problema era agravado pela necessidade de garantir coesão política frente à pressão externa. Como salientou Fernandes (2000), as condições particulares de atraso incidiram fortemente sobre tais experiências, incluindo as formas altamente concentradas e autônomas assumidas pelo poder de Estado.
Ademais, o advento das revoluções em países periféricos tornou imperativo o desenvolvimento das forças produtivas e da geração de riqueza. Ou seja, o socialismo nas periferias estava condenado a realizar simultaneamente tarefas civilizatórias, de modernização e de ruptura, um fardo histórico que exigia saltos produtivos para elevar o padrão de vida mesmo sob cerco tecnológico e bloqueios persistentes.
A China diante da atual revolução tecnológico-digital
Como sugeriu Giovanni Arrighi (1996), as transições sistêmicas envolvem reorganizações econômicas e geopolíticas articuladas às novas infraestruturas técnicas disponíveis. Os EUA têm liderado essa fronteira tecnológica no Ocidente a partir da lógica oligopolista de suas big techs. A captura massiva de dados e sua instrumentalização tem se desdobrado em maximização da acumulação, ampliação das desigualdades, domínio da esfera pública, mercantilização das interações sociais e precarização das condições de trabalho, quando não de “revoluções coloridas” ou até, como sublinhou Amadeu (2023) em As Big Techs e a Guerra Total, violência extrema e genocídios contemporâneos. Como enfatizou Emmanuel Todd (2024) estamos diante de sociedades que, ao perder dinamismo produtivo, vitalidade institucional e coesão social, se apoiam cada vez mais em mecanismos coercitivos e em uma hipertrofia do setor financeiro para manter sua posição internacional.
A China, nesse sentido, desponta não apenas como concorrente nesta fronteira tecnológico-digital, mas como o país que oferece novos paradigmas de regulação e uso societário de tais inovações. Longe de reproduzir o modelo liberal de governança da tecnologia, a China tem sido campo de experimentação para aplicação de big data, plataformas integradas e inteligência artificial em áreas como planejamento econômico, coordenação logística, gestão pública e provisão de serviços.
Pequim tem elevado a outros patamares o planejamento, ao prever gargalos produtivos, otimizando cadeias de suprimentos, organização eficiente da logística nacional e mapeando demandas sociais em tempo real. O planejamento deixa de ser um processo manual, opaco e centralizado para converter-se em coordenação tecnocientífica altamente responsiva. No caso chinês, essa planificação, ancorada no controle do Estado e sustentada por grandes conglomerados, bancos públicos, plataformas digitais e infraestrutura integrada, permite dirigir a economia de modo coordenado e fazer o setor privado gravitar em torno dos objetivos estratégicos do Partido Comunista da China. Não apenas o mercado, mas o Estado chinês torna-se capaz de captar informações granulares, fornecendo subsídios para que a planificação também consiga uma alocação eficiente e uma racionalidade que antes era inviável. Do ponto de vista político, a digitalização também abre caminhos institucionais inéditos.
A governança digital tem permitido consultas públicas online, plataformas de deliberação coletiva, auditoria e transparência sobre a gestão pública e sistemas digitais de avaliação de serviços públicos. Com efeito, como destacamos (Pautasso; Maia, 2024), têm se expandido os mecanismos consultivos e os canais de interação entre Estado e sociedade, reduzindo barreiras à participação e promovendo maior inclusividade no processo decisório e legitimidade no processo político.
A China oferece um caso paradigmático dessa transformação histórica. A partir de fortes investimentos em big data, IA e governança digital, o país desenvolveu aparato estatal capaz de ajustar políticas públicas de maneira ágil, coordenada e precisa. Governos locais utilizam plataformas digitais para registrar queixas, mapear problemas urbanos, acompanhar padrões epidemiológicos, otimizar transporte e avaliar desempenho de serviços, realizar orçamentos participativos, configurando uma administração pública preditiva, democrática e orientada por evidências. A datificação tem viabilizado a alocação territorializada do orçamento estatal com uma eficiência inédita, orientando desde a distribuição de recursos segundo a dinâmica epidemiológica, até investimentos em mobilidade e repasses intergovernamentais relacionados com dados atualizados. Ou seja, a China desenvolve sua institucionalidade combinando experimentação e pragmatismo político para dar conta dos desafios contemporâneos que não contam com caminhos pré-concebidos, mas que se ancoram nos valores que levaram à revolução de 1949.
Além disso, a nova fronteira digital possibilita um salto qualitativo nas forças produtivas, algo central para qualquer projeto socialista moderno. Tecnologias como automação e logística inteligente, internet industrial, robótica avançada, e agricultura de precisão ampliam radicalmente a produtividade em vários setores. Isso cria possibilidade de uma sociedade que rompe com a lógica da escassez e se aproxima de regime de abundância relativa. Tal horizonte permite superar atividades repetitivas em favor de atividades criativas; substituir longas jornadas mecânicas por tempo dedicado ao lazer, cultura, ciência e desenvolvimento humano. Em última instância, aproxima-se da formulação marxiana acerca de lograr um “reino da liberdade” ao transcender os imperativos das necessidades básicas.
Não se trata, contudo, de um determinismo tecnológico. A China enfrenta desafios comuns a todo o sistema internacional decorrentes da revolução tecnológica digital, como a plataformização da economia, os imperativos regulatórios e os impactos da automação sobre o emprego, por exemplo. Gerir essas transformações ressalta a centralidade de um Estado dotado de capacidade de regular e enquadrar tais inovações aos interesses delimitados politicamente. A revolução tecnológica digital não é optativa; a forma como ela é conduzida, entretanto, constitui uma escolha política e um projeto de sociedade.
Palavras finais
A questão fundamental é como, a partir das condições tecnológicas do século XXI, se pode pensar e implementar novos horizontes históricos para sociedades pós-capitalistas. O século XXI implica extrair lições do passado e imaginar novos paradigmas que articulem desenvolvimento tecnológico, soberania nacional e projeto coletivo. Não se trata de imaginar um tipo ideal socialista, uma espécie de Éden sem Estado, mercado ou conflito. Ao contrário, o desafio é construir um projeto histórico tangível, atravessado por desafios reais, contradições e possibilidades inéditas oferecidas pela atual revolução tecnológico-digital.
Estamos diante de transição sistêmica em que a China aparece não apenas como potência emergente, mas como fornecedora de alternativas institucionais e materiais às estruturas hegemônicas lideradas pelos EUA e suas contradições de fundo. Como destacou Cheng Enfu (2025), a experiência chinesa oferece uma alternativa sistêmica ao capitalismo, tanto para o Sul Global quanto para a teoria marxista contemporânea, ao demonstrar que o socialismo não é um modelo fixo, mas um processo histórico aberto, capaz de inovar institucionalmente, incorporar novas tecnologias e responder aos desafios da modernidade sem abdicar de seus fundamentos estruturais.
Em suma, não se trata de uma transição geopolítica ou de uma competição tecnológica, mas refere-se a divergência sobre projetos societários, modelos de Estado, formas de organização político-institucionais e horizontes civilizacionais. Num contexto mundial de grandes crises entrelaçadas e potencial tecnológico disruptivo, a China cumpre papel central ao recolocar, de maneira renovada, a possibilidade de pensar um socialismo em consonância com os desafios e as condições materiais de nosso tempo.
Referências
AMADEU, Sérgio. As Big Techs e a guerra total. São Paulo: Editora Contracorrente, 2023.
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
CHENG, Enfu. Seventy-Five Years of Socialist Economic Construction in New China. Science & Society, vol. 89, no. 4, 2025.
FERNANDES, Luís. O enigma do socialismo real. Rio de Janeiro: Revan, 2000.
KEERAN, Roger; KENNY, Thomas. O socialismo traído – por trás do colapso da União Soviética. Lisboa: Edições Avante!, 2008.
LOSURDO, Domenico. LOSURDO, Domenico. Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
NOVE, Alec. A economia do socialismo possível. São Paulo: Ática, 1989.
PAUTASSO, Diego; NOGARA, Tiago. O socialismo real na obra de Losurdo: da autofobia à autocrítica. PAUTASSO, Diego; MORAES, João; SILVA, Marco (Org.). Domenico
Losurdo – crítico do nosso tempo. São Paulo: Ideia & Letras, 2023.
PAUTASSO, Diego; MAIA, Isis. A construção institucional na China e sua dimensão consultiva. Estudos Internacionais: Revista De relações Internacionais Da PUC Minas, 11(2), 38–52, 2024.
TODD, Emmanuel. La derrota de Occidente. Madrid: Ediciones Akal, 2024.
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