“De perto ninguém é normal”: Caetano ou… Basaglia?
Memória de uma curiosa confusão no berço do fim dos hospícios. Verso do baiano, com autoria trocada, foi adotado pela luta antimanicomial de Gorizia, na Itália. Inspiração é mútua: em 2026, bloco de Carnaval do Rio cantará legado basagliano, vivo no Brasil
Publicado 22/12/2025 às 16:33 - Atualizado 22/12/2025 às 18:14

Por Paulo Amarante, autor convidado
Com a crônica que se segue, Outra Saúde inaugura em seu boletim um novo espaço, construído em parceria com o psiquiatra e pesquisador da Fiocruz Paulo Amarante, fundador do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS/Fiocruz) e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), cuja trajetória está intimamente conectada aos processos da Reforma Psiquiátrica e da Reforma Sanitária no Brasil. Em frequência inicialmente mensal, Amarante compartilhará memórias, “causos” e reflexões que remetem a episódios desse percurso, marcado por décadas de atuação científica, política e social em prol do direito à saúde e dos direitos humanos.
Na atual quadra histórica, o cuidado em saúde mental e os serviços que o promovem se encontram ameaçados em nosso país, por uma série de fatores. Neste novo espaço a ser construído em nosso boletim, pretendemos publicar textos de leitura rápida, mas de conteúdo interessante e formativo, que instiguem o interesse do leitor em conhecer mais sobre a história da luta antimanicomial (que no Brasil, em parte devido ao trabalho de Amarante, está intensamente ligada à pioneira experiência italiana e a seu principal formulador, Franco Basaglia), além de se envolver nesse rico processo social. Boa leitura! (G. A.)
Título original: “De perto ninguém é normal”: Franco Basaglia!? Reforma psiquiátrica, luta antimanicomial e a folia no carnaval da loucura
Estive muito recentemente em Gorizia e Nova Gorica para a importantíssima Conferência Internacional “Franco Basaglia Além das Fronteiras: Práticas de Liberdade“, ocorrida de 11 a 14 de novembro. A justificativa da escolha destas cidades ocorre do fato de que Gorizia, na Itália, e Nova Gorica, na Eslovênia, eram uma só cidade nos tempos do Império Austro-Húngaro, mas que foram divididas, literalmente, após a Segunda Guerra Mundial. Este ano, por uma linda iniciativa de superação, solidariedade e unidade política, as duas se uniram para serem a Capital Cultural da Europa de 2025.
Foi em Gorizia que Franco Basaglia começou seu trabalho crítico de transformação da psiquiatria institucional. O psiquiatra completaria 101 anos em 2025, motivo da escolha para o tema da capital cultural europeia. Na cidade, Basaglia produziu obras marcantes — sempre com a participação ativa e autoral de seus companheiros e companheiras de trabalho, com destaque para Franca Ongaro, que viria a ser sua esposa e uma das suas principais coautoras.
A obra basagliana em Gorizia
Dentre as obras nascidas em Gorizia, merece destaque o artigo “A destruição do hospital psiquiátrico como lugar de mortificação”, informe preparado para uma intervenção no I Congresso Mundial de Psiquiatria Social em Londres, em 1964. Trata-se de um texto pioneiro que aborda, de forma inédita na história, o tema da ineficácia e inviabilidade de reformar o manicômio e da absoluta necessidade de superá-lo, de recusar seu pretenso propósito de lugar de cura e cuidado.
Mais tarde a expressão “destruição” daria lugar, no movimento antimanicomial, à “desconstrução”, muito mais complexa, na medida em que permite incluir outras dimensões ao processo de transformação-superação manicomial — tais como as dimensões epistemológica, jurídica, ética e política –, e não apenas relativa à mudança do modelo assistencial.
Outra obra marcante deste período é a coletânea O que é a psiquiatria? (1967), que promove um questionamento ao mesmo tempo ético, político e epistemológico do saber e das instituições psiquiátricas. Neste momento, Basaglia inicia um questionamento absolutamente inédito em relação à psiquiatria e suas instituições de “assistência”. Neste sentido, três pontos são fundamentais: a denúncia do pertencimento de classe e da condição política de exclusão dos internos do manicômio; a pretensão de neutralidade e de produção de verdade científica da psiquiatria; e a função dos técnicos da instituição psiquiátrica nas práticas de exclusão e silenciamento da divergência e diferença social e política.
Enfim, Basaglia explicita que a verdadeira função da psiquiatria não seria o tratamento, mas sim oferecer uma falsa fundamentação científica às práticas de exclusão e violência dos sujeitos em condição de vulnerabilidade. Por fim, o período de Gorizia é marcado pelo surgimento de A instituição negada (1968), um potente manifesto anti-institucionalista que seria levantado por estudantes e ativistas que bradavam palavras de ordem revolucionárias no Maio de 68.
Um legado que segue necessário
Após a passagem por Gorizia, Basaglia e muitos de seus parceiros e parceiras fariam um outro estágio marcante, desta vez em Trieste, onde a experiência de reforma psiquiátrica antimanicomial alcançaria seu melhor êxito e reconhecimento internacional. Nos dois últimos anos deste período, 1978 e 1979, Basaglia esteve três vezes no Brasil, onde estabeleceu fortes e permanentes vínculos com o incipiente movimento de reforma psiquiátrica e luta antimanicomial que aqui se constituía. Para mim, foi inesquecível e transformador poder conhecê-lo pessoalmente, falar com ele, ouvi-lo e sentir a força de seu carisma e a “cor de sua aura”, como diria Arthur Bispo do Rosário.
Na trajetória de Basaglia, destacam-se a criação do Movimento Psiquiatria Democrática e a Lei 180, a Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana, que terminaria por ser conhecida como “Lei Basaglia”. Ano passado, completaram-se 100 anos do nascimento de Basaglia e 50 anos da criação da Psiquiatria Democrática. Para demarcar a importância das datas e a repercussão política e cultural destes acontecimentos, foi realizado o seminário internacional “A Liberdade é Terapêutica”, lema mais expressivo deste movimento, na sede da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
Retornando ao evento em Gorizia e Nova Gorica, foi uma oportunidade única poder rever os históricos participantes destes mais de 50 anos de processo de reforma psiquiátrica antimanicomial. Lá estavam Michelle Zanetti, opresidente da Província de Trieste que acolheu Basaglia em 1971, Giuseppe “Peppe” Dell´Acqua, o psiquiatria que fundou o primeiro centro de saúde mental 24 horas (uma das principais bases dos nossos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS), Lorenzo Torresini, Luciano Carrino, Giovanna Del Giudice, Roberto Mezzina, Paolo Peloso, Giancarlo Carena, Mario Novello, Mario Colucci, e tantos outros que participaram diretamente, além de convidados internacionais como Devora Kestel, Alan Rose, Tim Kendall, Alberto Trimboli, Juan Carlos Fantin, Franco Perrazza, Cristian Montenegro, Thomas Emmenegher, Norman Lamb, enfim… Um encontro histórico, verdadeiramente histórico!
Para completar, foi lançado o documentário E tu slegalo (2024), de Maurizio Sciarra, com falas inéditas de Franco, Franca e muitos outros protagonistas destas histórias.
Foi um momento não apenas de reencontro ou de nostalgia, mas de poder tomar consciência de quanto o pensamento de Franco Basaglia e equipe é atual e necessário neste momento de recrudescimento de pensamentos e práticas conservadoras, fundamentalistas, nacionalistas, racistas, fascistas, LGBTQIA+ fóbicas…. e tudo mais.
Basaglia não problematizou apenas a violência operada pela psiquiatria, mas todas as formas de violência social, de exclusão. Além dos livros aqui citados, urge revisar obras como A Maioria Desviante, Crimes da Paz (com Jean-Paul Sartre, Michel Foucault, Thomas Szasz e outros), A Utopia da Realidade e Carta de Nova York – O doente artificial, este último especialmente importante para refletir sobre o processo de patologização emedicalização da vida cotidiana pelo qual estamos passando.
Mas eu também sei ser careta…
Quero finalizar com uma observação curiosa. No evento em Gorizia e Nova Gorica existiam canecas e camisetas com a inscrição “De perto ninguém é normal – Franco Basaglia”, como se a frase fosse de sua autoria. Na minha conferência aproveitei que estavam presentes Claudia Ehrenfreund e Giancarlo Carena, e esclareci que a frase havia sido encontrada em “Vaca Profana”, música de autoria de Caetano Veloso, composta em 1984, e que Basaglia havia falecido em 1980. Disse ainda que fizemos uma camiseta com esta frase, e que eu havia aproveitado que os dois estavam no Brasil e lhes dei de presente uma destas camisetas. A iniciativa da camiseta fora do Fórum Gaúcho de Luta Antimanicomial para colocar em questão a ideia de normalidade e anormalidade, que tantos problemas trazia/traz para a sociedade!
Assim que voltaram para a Itália fizeram a versão para o italiano — “Da vicino nessuno è normale” — e me mandaram uma de presente. Achei muito importante que a frase de Caetano tenha sido incorporada ao projeto crítico e transformador de Basaglia, que tanta importância teve e segue tendo no Brasil, talvez o mais “basagliano” dos países. A tal ponto que no carnaval de 2026, Coletivo Carnavalesco Tá Pirando Pirado Pirou vai desfilar com o tema “O Cavalo Azul do Cuidado em Liberdade e a Chama Acesa de Franco Basaglia”.
No dia 08 de fevereiro estaremos lá na Avenida Pasteur, na Urca, com o Marco Cavalo e a chama acesa de Franco e Franca Basaglia!
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