O último fiasco na capital da privatização do SUS
Quebra de contrato pela AFIP deixa centenas de milhares sem exames fundamentais nas zonas leste e oeste de São Paulo. Gestão do SUS adaptada aos dogmas neoliberais é tragédia cada vez mais repetitiva
Publicado 22/12/2025 às 10:37 - Atualizado 22/12/2025 às 10:38

Título original: Crise silenciosa na saúde pública de São Paulo: quando o laboratório fecha e o paciente espera
Falo aqui da perspectiva de um Conselheiro Municipal de Saúde do município de São Paulo, representante dos usuários do Sistema Único de Saúde, que acompanha de forma direta e permanente o funcionamento concreto da rede pública, e que também atua como advogado nas áreas de direito público e da saúde.
A partir dessa posição institucional e jurídica, a rescisão do contrato entre a prefeitura de São Paulo e a Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa, AFIP, não pode ser tratada como uma simples controvérsia administrativa ou contábil. O episódio revela fragilidades estruturais na gestão da saúde pública municipal e produz consequências imediatas e reais na vida de milhares de pessoas que dependem cotidianamente do SUS.
No dia 11 de dezembro, durante a reunião do Conselho Municipal de Saúde, a questão dos exames laboratoriais foi debatida. Exploramos, naquele espaço de participação social formal, os problemas recorrentes relacionados à realização desses exames, incluindo atrasos, gargalos operacionais e reclamações das unidades de saúde.
Apesar da preocupação que permeava aquele cenário, não havia informações claras ou oficiais sobre a possibilidade de uma ruptura contratual dessa magnitude. Ao fim da reunião, saímos com encaminhamentos definidos, entre eles a elaboração de solicitações formais de informação à Secretaria Municipal de Saúde, com o intuito de esclarecer a situação dos contratos, os fluxos de pagamento e a capacidade de resposta do sistema.
Poucos dias depois, a realidade se revelou de maneira drástica. A crise, que até então parecia latente e mal elucidada, se manifestou abruptamente com a suspensão dos serviços pela AFIP. Para aqueles envolvidos nos espaços de controle social, a sensação foi de surpresa e desilusão. Surpresa, pois o problema não foi exposto com a seriedade que realmente apresentava. Desilusão, pois, mesmo com a discussão institucional em andamento, faltou a transparência necessária para evitar que essa situação chegasse ao seu ponto mais crítico.
Após mais de 20 anos de colaboração contínua, a AFIP anunciou que, a partir de 16 de dezembro, interromperia a realização de exames laboratoriais para a rede municipal. A justificativa apontada é bastante objetiva: há um histórico de atrasos nos pagamentos devidos pelo município. Em 24 anos de prestação de serviços, segundo informações da própria entidade, essa foi a primeira vez que a situação atingiu um grau tão crítico.
O impacto gerado não é irrelevante nem teórico. A pausa nos serviços afeta cinco hospitais municipais e 111 Unidades Básicas de Saúde localizadas nas zonas leste e oeste da cidade. Estes são hospitais que atendem populações numerosas em áreas afetadas por vulnerabilidades sociais, onde exames de sangue, urina ou fezes não são meros detalhes, mas frequentemente a única oportunidade para um diagnóstico correto e um tratamento adequado.
A AFIP realizava, em média, cerca de 2 milhões de exames mensais, beneficiando mais de 200 mil pacientes. Isso representa cerca de um terço de todos os exames laboratoriais realizados na rede municipal. Ademais, aproximadamente 350 profissionais que atuavam nos laboratórios sentiram diretamente o impacto da ruptura contratual. Por trás de cada dado, há filas que aumentam, diagnósticos que atrasam e decisões clínicas que ficam pendentes.
Sob a perspectiva financeira, a crise revela uma discrepância significativa entre as versões apresentadas. A AFIP indica que a prefeitura possui uma dívida em torno de 120 milhões de reais, acumulada devido a atrasos irregulares que começaram a se intensificar no final de 2024 e continuaram durante 2025. De acordo com a entidade, os repasses se tornaram irregulares e os pagamentos mensais foram suspensos, algo sem precedentes.
Em contraste, a prefeitura defende que efetuou pagamentos consideráveis em 2025 e que ainda existem valores que estão sendo conferidos e liquidados, seguindo os procedimentos legais apropriados. Contudo, de acordo com a AFIP, uma parte significativa dos montantes citados pela Prefeitura refere-se a contratos diferentes, ligados a programas específicos financiados por recursos federais, e não ao contrato de análises clínicas que foi interrompido. Para esse contrato em particular, o repasse teria sido significativamente inferior, resultando em um passivo considerável que permanece em aberto.
Esta discrepância vai além do aspecto técnico. Ela expõe uma falta grave de comunicação institucional e transparência administrativa. Em áreas sensíveis como a saúde pública, a falta de um diálogo claro e oportuno entre gestores e prestadores de serviços gera instabilidade, insegurança jurídica e, em última análise, prejudica diretamente os usuários do SUS. A situação se torna ainda mais alarmante quando essa falta de clareza se estende aos órgãos de controle social, que precisam receber informações adequadas para desempenharem suas funções.
O Ministério Público do Estado de São Paulo já foi acionado e solicitou esclarecimentos à Secretaria Municipal de Saúde sobre as ações tomadas para garantir o acesso a diagnósticos sem prejuízos. Essa intervenção é crucial, mas não é suficiente. Os planos de contingência, mencionados em comunicados oficiais, necessitam ser comparados com a realidade das unidades de saúde, que estão historicamente operando em sua capacidade máxima.
Do ponto de vista legal, o contrato celebrado entre as partes prevê a possibilidade de rescisão caso haja atraso superior a 90 dias nos pagamentos. Isso não é um ato arbitrário, mas uma consequência prevista no contrato. O que deveria causar maior preocupação é que um serviço essencial tenha chegado a essa situação, sem que fossem implementadas soluções estruturais antes da interrupção, mesmo com advertências e discussões em ambientes institucionais.
O episódio precisa ser compreendido no contexto mais amplo da condução da política de saúde pelo atual governo municipal. O prefeito Ricardo Nunes é diretamente responsável por sucessivos ataques à saúde pública em São Paulo, marcados pela ampliação indiscriminada do modelo de Organizações Sociais sem a devida transparência, pelo enfraquecimento dos mecanismos de controle e pela ausência de investimentos estruturantes na rede própria. A terceirização tem sido tratada como solução automática, sem planejamento de longo prazo, sem fiscalização efetiva e sem compromisso real com a qualidade e a continuidade do atendimento.
Nos espaços institucionais de controle social, essa realidade já vinha sendo denunciada. Recentemente, no âmbito do Conselho Municipal de Saúde, o próprio Plano Municipal de Saúde apresentado pela gestão foi desaprovado, por não atender às normas legais e técnicas exigidas, revelando a falta de coerência entre discurso oficial e planejamento concreto. A desaprovação não foi um ato político isolado, mas a consequência de um documento frágil, que não enfrentava os problemas reais da rede, não apresentava metas consistentes e ignorava diretrizes fundamentais do SUS.
A crise envolvendo a AFIP não surge, portanto, como um fato isolado ou imprevisível. Ela é resultado de uma política deliberada que prioriza arranjos contratuais opacos, fragiliza a gestão pública direta e trata a saúde como variável de ajuste fiscal. Organizações sociais e entidades conveniadas não podem substituir o dever constitucional do Estado de garantir o direito à saúde, muito menos operar em um ambiente de insegurança financeira e institucional criado pelo próprio Poder Público.
Mais do que escolher lados, é imprescindível apontar responsabilidades. Transparência, responsabilidade administrativa e planejamento não são opções políticas, mas obrigações legais e constitucionais. A saúde pública não pode ser governada por improvisos, marketing institucional ou disputas narrativas. Enquanto contratos são empurrados para o limite do colapso e versões oficiais tentam minimizar a gravidade dos fatos, a população segue aguardando exames, diagnósticos e cuidados que não podem ser adiados. Esse é o núcleo do problema e deve permanecer no centro de qualquer debate sério sobre a saúde em São Paulo.
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