Andar sobre as águas

“Onde antes corria água, hoje correm os automóveis”. Convite para um passeio por uma ex-SP de ribeirões, ainda viva na memória – e às resistências hoje descavadas: do Quilombo Saracura a Vila Itororó. Poderão, um dia, matas e rios brotar do asfalto?

Largo do Piques em meados do século XIX (Rua Cel. Xavier de Toledo, na horizontal)
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Nos fundos dos vales, onde antes corria água, hoje correm automóveis

O Vale do Itororó divide o bairro da Liberdade do bairro do Bixiga; e o Vale do Saracura divide o Bixiga do bairro da Consolação. Itororó, em guarani, quer dizer jorro, bica d’água; e Saracura é o nome de um pássaro pernalta da região. Antigamente, os ribeirões Itororó e Saracura corriam a céu aberto em direção ao Ribeirão Anhangabaú, que deságua no Rio Tamanduateí, afluente do Tietê. Todos os três ribeirões continuam correndo para o centro da cidade, mas confinados em galerias subterrâneas, que desaguam no canalizado Rio Tamanduateí, um “esgoto a céu aberto”.

Outrora, a ligação do centro da cidade ao Espigão da Paulista era realizada essencialmente pelas ruas Vergueiro (Liberdade), Brigadeiro Luiz Antônio (Bixiga) e Augusta e Consolação (Bairro da Consolação). O Saracura corre hoje canalizado sob a Avenida 9 de Julho, inaugurada em 1941; e o Itororó sob a Avenida 23 de Maio, inaugurada em 1969. Nos fundos dos vales, onde antes corria água, hoje correm os automóveis que invadiram a cidade.

Logo após a inauguração da 23 de Maio, quando os paulistanos ainda não tinham se familiarizado com a nova avenida, um amigo que morava na Liberdade apanhou uma carona de um senhor em direção ao Ibirapuera. O motorista parou do lado do Bixiga e meu amigo ficou horas aguardando, mas não conseguiu atravessar a via expressa e teve que voltar a pé ao centro da cidade.

Na madrugada do dia 25 de março de 1971, na semana anterior à comemoração do aniversário da “Revolução” de 1964, durante os “anos de chumbo”, eu e alguns colegas estávamos trabalhando para a Secretaria de Economia e Planejamento do Estado, contando o fluxo de automóveis na 23 de Maio, na altura da Praça da Bandeira. A polícia suspeitou de nossa atuação e nos levou para o DOPS. Só fomos liberados na hora do almoço, após o encaminhamento de um documento oficial da Secretaria confirmando a nossa declaração.

Entre rios, o Bixiga

O Obelisco do Piques, o monumento mais antigo de São Paulo, foi erguido em 1814, quando a cidade já tinha quase 10 mil habitantes. O Largo do Piques, conhecido como Largo da Memória, fica a poucos passos da Praça da Bandeira e possuía um Chafariz, uma bica d’água, servia de entrada e saída da cidade e abrigava o mercado de escravos – os leilões eram organizados aos sábados. Mais adiante, ficavam o Largo do Pelourinho, atual Praça João Mendes, e o Largo da Forca, atual Praça da Liberdade.

Entre o Itororó e o Saracura, nas capoeiras, campinas e matos do Bixiga, escondiam-se e aquilombavam-se negros fugidos das fazendas e do Mercado do Piques – há registros de tentativas de fechar o acesso do mercado de escravos ao Bixiga. O Quilombo Saracura permaneceu por muito tempo guardado na memória da comunidade negra e só começou a ganhar publicidade em 2022, a partir dos vestígios arqueológicos encontrados durante as escavações realizadas para a construção da estação de metrô na Praça 14 Bis.

Fui no Itororó beber água

A Rua Pedroso conecta a Liberdade ao Bixiga. No número 238 da Pedroso, um galpão gigante, com um vão livre de 17 metros de largura por 87 metros de comprimento, leva você a uma janela que se abre para o mundo mágico da Vila Itororó. Para quem circula em alta velocidade pela 23 de Maio ou percorre a Pedroso, é impossível imaginar o espetáculo que se descortina à sua frente – você não vai acreditar nos seus olhos, aquilo não existe, é simplesmente um sonho! Infelizmente, as portas da Pedroso 238 só permanecem abertas quando há eventos no galpão. Contudo, o mesmo espetáculo, a vista aérea da Vila Itororó, também pode ser contemplado, de outro ângulo, na Rua Martiniano de Carvalho nº 269, entre a Pedroso e a Rua Monsenhor Passalaqua.

Em 1922, o ano da Semana de Arte Moderna que marcou o início do Modernismo no país, o português-brasileiro Francisco de Castro inaugurou uma vila na encosta do Vale do Itororó do lado do Bixiga. Surrealista é o adjetivo mais apropriado que se poderia conferir ao arrojado projeto da Vila Itororó (embora o Manifesto de André Breton só tenha sido publicado em 1924). No íngreme declive da Rua Martiniano de Carvalho, ergue-se um palacete suntuoso de quatro andares, cercado por colunas monumentais e adornado por peças oriundas da demolição do Teatro São José. Outras esculturas (que não conversam entre si) estão espalhadas pelos 5 mil metros do imóvel; 37 casas foram construídas e destinadas à locação; uma piscina alimentada por uma fonte do Ribeirão Itororó, jardins, pátios e escadarias. A entrada da vila fica na Rua Maestro Cardim nº 60.

Em 1954, quando a cidade reunia mais de dois milhões de habitantes, São Paulo comemorou o seu IV Centenário com os lemas “A cidade que mais cresce no mundo” e “São Paulo não pode parar”. Então, além do amplo espaço da Vila Itororó ser mágico, mágico também foi ela ter conseguido atravessar o século XX e resistir em pé nesta Sampa desvairada que destrói coisas belas.

Igualmente digna de nota é a solidariedade e a organização que os moradores das casas alugadas construíram na Vila Itororó, sempre cheia de gente que convivia como se fosse uma grande família (e havia mesmo graus de parentesco entre famílias que atravessaram gerações). Muito próxima do centro da cidade, a vida comunitária propiciada pelos amplos espaços internos, a sociabilidade, a promoção de eventos e a ininterrupta circulação de velhos, adultos, jovens e crianças – tudo conferia a sensação de que a vila vivia em uma eterna festa.

A partir dos anos 1970, as casas da vila começaram a se deteriorar, os andares do palacete foram subdivididos em unidades, cômodos passaram a ser sublocados e tiveram início os conflitos entre os moradores, os proprietários e as autoridades governamentais. No início dos anos 2000, o imóvel foi tombado pelo patrimônio histórico estadual e municipal e, por fim, declarado de utilidade pública. Após o acirramento dos conflitos entre 2011 e 2013, apesar da resistência dos moradores, as últimas 71 famílias foram desalojadas e transferidas para três conjuntos residenciais do CDHU, duas no Bixiga e uma no Bom Retiro.

Infelizmente, não se empreendeu a manutenção da população moradora junto à preservação do patrimônio histórico, que foi entregue à prefeitura de São Paulo. Hoje a Vila é um espaço cultural que já se transformou em um ícone da cidade… e a festa continua (programação). A energia que emana da Vila Itororó contamina qualquer atividade que se desenvolva em seu recinto.

Nos fundos dos vales, onde antes corria água, hoje correm os automóveis. Em Nostalgia do futuro, citamos a iniciativa da Coreia do Sul – o Rio Cheonggyecheon, que havia sido coberto por uma avenida de 16 metros de largura, corre hoje a céu aberto. E Paris, a Cidade Luz, agora é verde. As vagas para estacionamento foram removidas e, desde 2020, foram criados 84 quilómetros de ciclovias. Automóveis são hoje usados dentro da capital em apenas 4,3% dos deslocamentos, ficando atrás das bicicletas (11,2%), transporte público (30%) e, oui, oh là là, jornadas a pé (53,5%)!

Leo Tolstoy, em Os três eremitas, narra as patacoadas dos velhinhos sorridentes que, embora não conseguissem decorar o Pai Nosso, a Oração do Senhor, caminhavam deslizando sobre as águas sem sequer moverem seus pés.

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