Um olhar da Reforma Sanitária, a partir de São Paulo

Trabalho apresentado na USP resgata a construção do SUS no estado e o que veio antes dela. A articulação, que ia desde as bases das periferias das cidades a políticos de todos os espectros, foi essencial. O que podemos aprender com esse processo?

Imagem resgata parte da história do SUS em São Paulo: Inauguração da Unidade Básica de Saúde Jardim Brasil, em 1989. Foto: Acervo MUSPER
Inauguração da Unidade Básica de Saúde Jardim Brasil, em 1989. Foto: Acervo MUSPER
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Realizado na última sexta-feira (12), o seminário “História da Saúde em São Paulo: Instituições, Ideias e Atores” tinha como motivação divulgar um trabalho de resgate da construção do SUS no estado, liderado pelo médico sanitarista Nelson Ibañez, professor do departamento de Saúde Coletiva da Santa Casa de São Paulo em parceria com pesquisadores de diversas instituições de ensino e pesquisa.

No entanto, como brincou Marília Louvison, médica e professora da FSP, trata-se também de “resgatar o espírito dos natais passados para os natais do futuro”, em alusão à obra Um Conto de Natal, célebre texto do escritor inglês Charles Dickens.

Na mesa de abertura, os participantes rememoraram o alcance da articulação política que abriu caminhos para a efetivação do SUS. Sustem que seu exemplo deve ser retomado, inclusive em defesa da democracia ante as ameaças golpistas que ainda pairam no país. “O SUS e sua construção refletem as disputas sociais do país”, resumiu Louvison.

Já em sua exposição, Gilberto Natalini, vereador e médico, reforçou a reivindicação de unidade em torno de pautas que representam uma materialização da democracia. “O SUS foi a soma do movimento da Reforma Sanitária com bases sociais da periferia das cidades. Uma das nossas grandes lutas do momento é reunificar o ‘Partido Sanitário Brasileiro’”, afirmou.

“Partido Sanitário” é como os militantes da construção do SUS se referem ao grande arco de alianças que conseguiu instituir o sistema de Saúde na Constituição brasileira em 1988. Tal coalizão foi capaz de influenciar inclusive políticos de direita, o que também refletia os ares da redemocratização e o peso das reivindicações que vinham do chão social.

Ainda que o contexto atual seja hostil, com uma direita que se mostra indiferente ao mal estar das massas e mais preocupada em se blindar enquanto sabota o SUS através da farra das emendas, a luta por articular setores interessados na estabilidade social do país será uma das tarefas de campanha da reeleição de Lula, defenderam os presentes.

“Tivemos figuras como Adib Jatene na integração do sistema, alguém que defendia ferrenhamente pautas gerais de direita, mas estava conosco levantando a bandeira da criação do SUS”, lembrou Natalini, também ex-presidente do Conselho dos Secretários Municipais de Saúde de SP.

Preso durante a ditadura militar, Natalini destacou a experiência do voluntariado médico do Cangaíba, bairro na zona leste de São Paulo, em cuja igreja o então jovem profissional criou um posto de atendimento. Natalini se serviu deste exemplo concreto para resgatar a construção política que animou a Reforma Sanitária, com incidência dentro da própria classe profissional da qual faz parte, durante o chamado movimento da renovação médica.

“Em 1978, ganhamos o sindicato dos médicos ao lado de setores liberais, como a Associação Médica Brasileira. Impulsionamos o movimento da saúde e o que chamamos de ‘Partido Sanitário’. Os movimentos populares foram muito fortes na construção de coisas como o Plano Metropolitano de Saúde, que expandiu a rede. Foi uma aliança entre os sanitaristas e a população”, rememorou Natalini.

Um dos organizadores do evento, também perseguido pela ditadura, o médico e professor do departamento de Saúde Coletiva da Santa Casa, Nelson Ibañez, também mencionou o papel de parte dos setores tidos como conservadores na trajetória que levou à criação do SUS.

“Mesmo sob vigência da ditadura, a liderança de figuras como Walter Leser e Adib Jatene serviu para criar políticas específicas para o estado e, na conjuntura da redemocratização, incorporar movimentos sociais, academia, formação de quadros”, contou.

A história da saúde em São Paulo

Uma das principais contribuições da pesquisa liderada pelos professores que se apresentaram no evento é a demonstração de como o próprio conceito de saúde evoluiu ao longo do tempo.

“Até 1930, antes de Getúlio Vargas, saúde era do escopo do Ministério da Justiça. Por quê? Basicamente porque se fazia polícia sanitária. Assistência antes era isolamento. Jogava-se pessoas no hospício de forma compulsória. Toda grande cidade tinha hospícios e sua função era isolar pobres e portadores de algumas doenças, como tuberculose. Não existia assistência médica como conhecemos hoje”, contextualizou Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Medicina da USP e ex-diretor da Anvisa.

Como explicou Marília Louvison, o trabalho de gerações de médicos foi fundamental: “Começou com Emilio Ribas, ainda no final do século 19. Depois, vieram figuras como Vital Brasil e Geraldo de Paula Souza, que reorganizou todo o sistema sanitário, trouxe a ideia de se criar centros de saúde-escola, criou o curso de nutrição… Na década de 70 a Reforma Leser… Iniciativas que pouco a pouco mostravam como a saúde não é só o serviço médico”.

De forma complementar, Vecina lembrou da adesão do Hospital das Clinicas à greve de 1978, movimento de massas dos operários do ABC que entrou para a história como início da retomada dos direitos políticos pela população brasileira, ao abrir as portas para a fundação e posterior legalização do Partido dos Trabalhadores.

Após o regime, os reflexos foram imediatos. “Uma das primeiras transformações foi a capacidade de produzir soro para picadas de cobra nos três laboratórios do estado, a partir de 1985. A partir daí se criou a nova secretaria estadual e escritórios regionais para descentralizar o sistema e incorporar questões como saúde do trabalhador, vigilância ambiental e conectar serviços primários e especializados de saúde”, contou Vecina.

Resgatar a tripartição

Paradoxalmente, no momento da pandemia, quando o governo Bolsonaro agia de forma criminosa em relação às políticas de prevenção da doença, abriu espaço para uma experiência exemplar de ação conjunta de estados e municípios e, de forma intermediária, regiões de saúde.

“A pandemia foi um momento em que o SUS funcionou de acordo com seus princípios, dada a falência federal no momento, pois os estados assumiram uma função de maior liderança. Houve integração de vigilâncias com assistência, intersetorialidade, mobilização de profissionais, capacidade de regulação”, explicou Nelson Ibañez.

De forma unânime, sanitaristas, pesquisadores e militantes do SUS repudiam integralmente o mecanismo de apropriação de verbas da saúde através das emendas parlamentares. Se não bastasse o propalado subfinanciamento, o expediente, amplamente envolto em corrupção, desfalca ainda mais o orçamento da saúde.

Para os debatedores, a retomada dos conceitos da divisão de responsabilidades entre municípios, estados e União é decisiva para fazer frente ao assalto do legislativo. E aqui, novamente, as experiências dos natais passados pode significar natais mais felizes no futuro.

“Andamos o estado todo para regionalizar o SUS”, resgatou Gilberto Natalini, “e depois fizemos o mesmo em Brasília, quando José Serra era ministro da Saúde. Levamos 300 secretários de saúde para enfrentar o Pedro Malan [então ministro da Fazenda e figura-chave na reforma do Estado do governo FHC] e saímos de lá com a Emenda 29, que garantiu recursos que seguram o SUS em pé até hoje”.

“Visitar toda essa história é importante para saber que SUS queremos no futuro, num mundo que se transforma numa velocidade tão grande”, concluiu Marília Louvison.

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