Redução da jornada e a conexão Brasil-França
Análise comparativa da história dos direitos trabalhistas nos dois países. Ambos, a partir de 2017, foram afetados pela precarização e pelo avanço do “negociado sobre o legislado”. Mas três pontos da lei francesa podem inspirar a luta contra a exploração brasileira
Publicado 15/12/2025 às 19:00 - Atualizado 15/12/2025 às 19:10

Este texto foi escrito por Lucas Reis da Silva, com o título original ““Jornada de trabalho no Brasil e na França: uma análise comparativa”“, e faz parte de um dossiê organizado pelo Cesit/Unicamp, Site DMT, Remir, GEPT/UNB e FCE/UFRGS e publicado em parceria com o Outras Palavras. Leia aqui a série completa
A partir dos anos de 1980, a ascensão do neoliberalismo global exerceu forte pressão sobre os modelos tradicionais de regulação do trabalho em diversos países, inclusive no Brasil e na França. A retórica neoliberal priorizou a flexibilização das relações laborais, a redução dos custos para o capital e a suposta modernização dos mercados de trabalho, colocando em xeque direitos historicamente conquistados, incluindo os limites à jornada de trabalho. A lógica da reestruturação produtiva sob o neoliberalismo tornou-se sinônimo de flexibilização, intensificação do trabalho e desregulamentação dos direitos (Antunes, 2018). O tempo de trabalho passou a ser estendido ou fracionado com a finalidade de atender as necessidades empresariais, enquanto os direitos conquistados ao longo de décadas de lutas coletivas passaram a ser relativizados, quando não pura e simplesmente eliminados.
No Brasil, o neoliberalismo encontrou terreno fértil para promover reformas que ampliaram a possibilidade de negociações individuais e coletivas mais flexíveis. O “negociado sobre o legislado”, previsto no artigo 611-A da CLT, permite que certos direitos trabalhistas possam ser modificados por negociação coletiva, mesmo que em sentido menos favorável ao trabalhador. O avanço do neoliberalismo, com a justificativa de buscar reduzir encargos trabalhistas, acaba por provocar impactos diretos sobre a regulamentação da duração do trabalho. A Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) introduziu diversas mudanças que impactaram negativamente a jornada dos trabalhadores brasileiros (Maior, 2017). Abriu-se a possibilidade de se instituir banco de horas semestral por meio de acordo individual, sem a necessidade de negociação coletiva, o que permitiu com que empregadores passassem a ajustar as jornadas de trabalho conforme suas conveniências, aumentando a carga horária sem compensações adequadas, do ponto de vista das necessidades dos empregados. O banco de horas expõe os trabalhadores a períodos prolongados com jornadas superiores as normalmente aceitas, o que representa intensificação do trabalho, tanto no banco de horas semanal quanto no banco de horas mensal.
Por meio de negociação coletiva, a reforma trabalhista passou a prever a possibilidade de redução do intervalo intrajornada. A diminuição do tempo mínimo de intervalo para descanso e alimentação compromete a saúde e o bem-estar dos trabalhadores, ao provocar a intensificação do ritmo de trabalho. Com menos tempo para repouso, alimentação ou recuperação, o organismo tem menor oportunidade de se recompor, o que pode aumentar a fadiga, o estresse e o desgaste físico. A redução do intervalo intrajornada potencializa ainda mais a ocorrência de acidentes laborais e de doenças relacionadas ao trabalho (Silva, 2013). A possibilidade de contratação de empregados por meio de contrato de trabalho intermitente introduz uma forma de vínculo empregatício em que o trabalhador é convocado conforme a demanda do empregador, resultando em jornadas irregulares e instabilidade financeira para o empregado.
A referida lei acabou com o direito ao pagamento de horas in itineri, aquelas que se referiam ao tempo gasto pelo trabalhador no deslocamento entre sua residência e o local de trabalho, especialmente quando este fosse de difícil acesso ou não servido por transporte público regular. Nessas situações, se o empregador fornecesse transporte, esse período era considerado parte da jornada de trabalho, conforme estabelecido pela Súmula 90 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Com a entrada em vigor da Reforma Trabalhista em 11 de novembro de 2017, o § 2º do artigo 58 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi alterado para excluir expressamente o tempo de deslocamento da jornada de trabalho.
Ao lado da Lei 13.467/2019, a Lei 13.429/2017, ampliou a possibilidade de terceirização da força de trabalho. A permissão para terceirizar atividades-fim da empresa contribui para a precarização das condições de trabalho e criou obstáculos para o controle efetivo das jornadas laborais.
Já na França, embora a tradição do Estado de bem-estar social e a força dos sindicatos tenham oferecido maior resistência à desregulamentação trabalhista, houve avanços graduais no sentido da flexibilização, especialmente a partir dos anos 2000, por meio de acordos setoriais e empresariais que permitiram maior variação na duração da jornada, além de debates constantes sobre a “competitividade das empresas” e o “equilíbrio entre proteção social e dinamismo econômico”. A Lei El Khomri, de 2016, e as Ordonnances Macron, de 2017, são os exemplos mais importantes dessas reformas que provocaram flexibilização, desregulamentação e descentralização das normas protetivas trabalhistas na França (Supiot e Le Texier, 2018), com impactos diretos sobre a jornada de trabalho. A primazia do acordo coletivo em matéria de duração do trabalho representa uma inversão da hierarquia das normas de proteção social. “C’est le coeur de la réforme El Khomri et la principale cause du bras de fer entre le gouvernement et la CGT”[i] (Antonmattei, 2016). Essas transformações evidenciam um cenário complexo, no qual as garantias sociais coexistem com tentativas de adaptação às novas imposições do capitalismo contemporâneo. Para Dominique Méda, a lei El-Khomri opera um verdadeiro “desmantelamento” do tecido social francês (Antonmattei, 2016). Com as ordonnances Macron, em 2017, o legislador francês, no âmbito da jornada de trabalho, reforçou a inversão das normas instaurada pela lei de 2016 (Pélissé, 2018).
O Direito do Trabalho, enquanto ramo jurídico especializado, tem seu posicionamento histórico firmemente ancorado na emergência e no desenvolvimento da sociedade industrial contemporânea. É nesse momento histórico, que se intensifica a partir do Século XIX, que a relação empregatícia surge com relevância sociojurídica. A vasta extensão das temáticas próprias ao Direito do Trabalho, como relação empregatícia, salário e duração do trabalho, entre outras, evidencia a especificidade que não cabia no escopo tradicional do Direito Civil (Delgado, 2023). Nesse diapasão, é possível concluir que a busca pela regulamentação da jornada de trabalho se insere no bojo do movimento que levou à autonomia do Direito do Trabalho.
A regulamentação da jornada de trabalho tem, portanto, raízes históricas profundas na luta do movimento operário, tanto no Brasil quanto na França, refletindo o avanço das lutas sociais e das políticas públicas voltadas à proteção da classe trabalhadora. Pode ser identificada entre as primeiras reivindicações que marcam o nascimento do Direito do Trabalho. Em ambos os países, o controle da duração do trabalho surgiu como resposta às condições extenuantes de trabalho no contexto da revolução industrial e evoluiu a partir de reivindicações sindicais, mobilizações operárias e reformas legislativas marcadas por avanços e retrocessos (Fridenson e Reynaud, 2004).
Na França, as primeiras legislações a limitarem a jornada de trabalho também podem ser analisadas como legislações que contribuíram para que o Direito do Trabalho começasse a ganhar autonomia frente ao direito civil. A primeira, de 18 de novembro de 1814; passou a proibir o trabalho aos domingos e teve vigência até 1880, quando foi revogada. Voltou a ter vigência em 1906. A segunda, de 22 de março de 1841, representou uma das primeiras regulamentações estatais nas relações de trabalho em um contexto liberal, que anteriormente via o trabalho como uma mercadoria sujeita à lei do mercado (Largesse, 1997). Regulamentava especificamente o trabalho de crianças. Proibia o trabalho de menores de 8 anos e limitava a doze horas o trabalho de crianças de 8 a 12 anos de idade. Autorizava o trabalho por até 12 horas diárias para crianças entre 12 e 16 anos e o trabalho noturno para essas faixas etárias ficava proibido. A aplicação da lei se limitava às fábricas que empregavam mais de vinte operários e previa comissões de inspeção. A terceira, de 2 de março de 1848, estabelecia limite de jornada de 10 horas em Paris e de 11 horas no restante da França (Souamaa, 2007).
Apesar dessas primeiras iniciativas representarem um avanço no sentido da regulamentação da duração do trabalho, elas tiveram pouca aplicabilidade prática (Delbrel, 2019). Foi a lei de 23 de abril de 1919 que fixou, pela primeira vez, a jornada legal de trabalho em 8 horas diárias e 48 horas semanais na França. Trata-se da primeira lei a respeito da limitação da jornada de trabalho a impactar, de fato, as relações de trabalho. De acordo com relatórios dos inspetores do trabalho, foi a primeira a ter efetividade (Souamaa, 2007). Além de fixar o limite da jornada de trabalho em oito horas diárias, essa lei também instituiu a semana inglesa (Despax, 1996), modelo segundo o qual o trabalhador poderia organizar sua escala de trabalho a fim de se beneficiar de um dia e meio de descanso. A jornada de 8 horas diárias e 48 horas semanais implementada na França em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, fez coro com as recomendações da recém-criada Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A partir do pós-guerra, o fortalecimento do Estado de bem-estar social francês exerceu papel crucial na consolidação dos direitos trabalhistas, incluindo a limitação da jornada de trabalho. A construção do estado de bem-estar social francês se apoiou em um tripé: assistência social, saúde pública e direito do trabalho (Laroque, 2000). A construção do modelo social francês resultou na consagração do trabalho como direito social e na ampliação das garantias coletivas. Nesse contexto, os governos passaram a adotar políticas públicas voltadas à redistribuição do tempo de trabalho como instrumento de inclusão e combate ao desemprego. No pós-guerra, a legislação trabalhista “incorporou diversas melhorias das condições de trabalho e da redução da jornada de trabalho, tanto pela extensão das férias remuneradas para cinco semanas quanto pela redução da jornada semanal de trabalho para 35 horas” (Laroque, 2000, p. 63).
Ou seja, a legislação francesa avançou consideravelmente ao longo do Século XX, partindo da lei de 21 de junho de 1936, aprovada durante o governo da Frente Popular, que consolidou a jornada de 40 horas semanais e instituiu o direito a duas semanas de férias remuneradas por ano. Posteriormente, a maior transformação ocorreu com a aprovação da lei Aubry, promulgada em duas etapas (1998 e 2000), que reduziu a duração legal do trabalho para 35 horas semanais, sem redução do salário (Bloch-London, 2000). A partir de então, a jornada padrão na França, prevista por lei, é de 35 horas semanais.
A regulamentação da jornada de trabalho no Brasil começou a ocorrer somente no início do Século XX. O Decreto nº 1.313, de 1891, é citado como a primeira legislação trabalhista que estabeleceu limites à jornada de trabalho dos menores empregados em fábricas. Aos menores de até 15 anos, era proibido o trabalho aos domingos e feriados, assim como o trabalho entre as 18hs e as 6h da manhã. Os menores do sexo feminino, de 12 a 15 anos de idade, e do sexo masculino, de 12 a 14, só poderiam trabalhar, no máximo, por 7 horas descontínuas por dia, de modo a não exceder 4 horas ininterruptas. Os menores do sexo masculino, de 14 a 15 anos, poderiam trabalhar, também de forma descontínua, por no máximo, 9 horas. Já os aprendizes de fábricas de tecidos, entre 8 e 10 anos de idade, poderiam se ocupar por 3 horas, e os de 10 a 12 anos de idade, por quatro horas. Essa legislação incipiente contava com uma baixa efetividade.
A partir da década de 1930, com Getúlio Vargas, o Estado Brasileiro passou a legislar a respeito das condições de trabalho, inclusive a respeito dos limites à duração da jornada, de maneira mais extensa e detalhada (Campos, 2015). A Constituição de 1934 estabeleceu a jornada máxima de 8 horas diárias e 48 horas semanais para todos os trabalhadores. Além disso, implementou o direito ao salário-mínimo, às férias anuais remuneradas, ao repouso semanal e à indenização por dispensa sem justa causa. Em 1943, foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que unificou as normas esparsas e estabeleceu regras mais detalhadas. A CLT, que ainda é a principal lei sobre relações de trabalho no país, passou a estabelecer uma jornada máxima de 8 horas diárias e 48 horas semanais. No entanto, o período dos anos de 1930 a 1970 foi marcado por uma ambivalência, onde o avanço jurídico formal não se concretizava plenamente na prática devido à fragilidade e insuficiência das instituições garantidoras, como sindicatos controlados, inspeção do trabalho ainda incipiente e justiça do trabalho instrumentalizada pelo Estado (Campos, 2015).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é considerada um marco importante para a regulação laboral. Ela inseriu direitos que antes estavam dispersos, concedendo-lhes o caráter de direitos fundamentais, e ampliou seu alcance, tornando as proteções laborais mais robustas. Especificamente sobre a jornada, a Carta de 1988 constitucionalizou e reduziu a duração semanal máxima para 44 horas e manteve a duração diária em 8 horas. A Constituição de 1988 também estendeu os direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais, ao equipará-los aos trabalhadores urbanos.
Os contextos históricos fornecem uma importante chave de compreensão dos modelos vigentes nos ordenamentos jurídicos de cada um dos dois países e as opções políticas adotadas por cada um deles ao regulamentar a jornada de trabalho. Enquanto a França privilegiou uma abordagem progressiva e coletiva, com forte atuação sindical e estatal, sustentada por um modelo de bem-estar social estruturado, o Brasil seguiu um caminho distinto. A fase de maior avanço no campo dos direitos trabalhistas se deu durante a Era Vargas. O Estado Novo, autoritário, empreendia esforços para tutelar o movimento operário, ao mesmo tempo em que buscava, por meio de uma propaganda massiva, identificar os direitos trabalhistas recentemente conquistados com a figura e com a “boa obra” de Vargas (De Castro Gomes e D’Araújo, 1987).
A jornada de trabalho é um dos principais elementos da regulação das relações laborais. No Brasil, a Constituição estabelece o limite máximo de 44 horas semanais e 8 horas diárias, conforme seu Artigo 7º, Inciso XIII. A CLT detalha esses limites, incluindo as hipóteses e regras para a prorrogação da jornada (horas extras), banco de horas e jornadas especiais, como a jornada 12×36, desde que acordada individualmente ou coletivamente. Já na França, a duração padrão da jornada de trabalho é de 35 horas semanais desde as leis Aubry I e II, adotadas em 1998 e 2000, como já destacado anteriormente, aplicando-se à maioria das empresas do setor privado. Portanto, enquanto no Brasil, a jornada padrão é de 8 horas diárias e quarenta e quatro horas semanais, na França, a jornada padrão é de 35 horas semanais.
A legislação Francesa, assim como a brasileira, prevê ainda a possibilidade de horas extras. No Brasil, o limite de horas extraordinárias é de duas por dia. Considerando a jornada de oito horas diárias e de seis dias na semana, a jornada de trabalho semanal, incluindo as horas extras, pode chegar a 56 horas (quarenta e quatro horas semanais e duas horas extras por dia, por seis dias). Não há previsão de limite anual de horas extraordinárias no Brasil. Já na França, a jornada de trabalho padrão é de 35 horas por semana e deve se submeter a dois limites máximos. Um diário, de no máximo 10 horas (assim como no Brasil), e outro semanal, de no máximo 48 horas (incluindo as horas extras). Ou seja, com relação ao limite diário de trabalho, as horas extras, tanto no Brasil quanto na França, estão limitadas ao número de 10. Com relação ao limite semanal, no Brasil ele pode chegar a 56 horas. Na França, a 48.
Além disso, a legislação francesa apresenta um limite à jornada de trabalho que não existe no Brasil: o limite anual de horas extras. Conforme prescreve o Código do Trabalho francês, o número máximo anual de horas extras é limitado a 220 horas por ano (Art. D3121-24 do Código do Trabalho francês – Code du Travail). Isso, na prática, representa uma média máxima de 4,23 horas por semana. No Brasil, o limite anual não existe, o que implica a possibilidade de exercício de até 12 horas extras semanais.
A regulamentação a respeito do repouso semanal remunerado também revela uma distinção importante entre as previsões normativas do Brasil e da França. O Artigo 1º da Lei nº 605/1949 prescreve que todo empregado tem direito ao repouso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, preferencialmente aos domingos. Essa previsão encontra guarida no Inciso XV do Artigo 7º da Constituição da República. O termo “preferencialmente” demonstra flexibilidade legal para que o repouso seja em outro dia, desde que garantidas as 24 horas consecutivas. O que se observa, na prática, tanto do Poder Judiciário quanto da Inspeção do Trabalho, é a imposição de que o descanso semanal seja percebido após o sexto dia consecutivo de trabalho. Ou seja, não se permite o labor por mais de seis dias consecutivos. Nesse sentido, a Orientação Jurisprudencial 410 da SDI-1 do TST expressa que o repouso semanal remunerado deve ocorrer, pelo menos, após o sexto dia consecutivo de trabalho. “REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. CONCESSÃO APÓS O SÉTIMO DIA CONSECUTIVO. ART. 7º, XV, DA CF. VIOLAÇÃO. Viola o art.7º, XV, da CF a concessão de repouso semanal remunerado após o sétimo dia consecutivo de trabalho […]”.
Na França, nos termos do Artigo L3132-3 do Código do Trabalho, o repouso semanal é, obrigatoriamente, aos domingos. Ou seja, é obrigatório por princípio, e não apenas preferencial. Há, contudo, exceções importantes, de caráter permanente, em setores específicos, como no comércio, hotelaria e saúde, por exemplo, nos termos do Artigo L3132-12, assim como exceções de caráter temporário, por necessidades locais ou econômicas, nos termos do Artigo L3132-25.
Quanto aos intervalos, no Brasil, a CLT determina um intervalo intrajornada mínimo de uma hora para jornadas superiores a 6 horas, e de 15 minutos para jornadas entre 4 e 6 horas. Na França, o trabalhador tem direito a um intervalo de no mínimo 20 minutos a cada 6 horas trabalhadas, podendo ser superior se previsto em acordos coletivos, nos termos do Artigo L3121-16 do Código Trabalhista. O descanso entre jornadas deve ser de pelo menos 11 horas consecutivas em ambos os países.
Com relação às férias, os empregados franceses fazem jus a um período de trinta dias úteis a cada período de um ano trabalhado, nos termos do Artigo L3141-3 do Código Trabalhista Francês. No Brasil, de acordo com o Artigo 130 da CLT, os trabalhadores fazem jus a trinta dias de férias. Esses dias são entendidos como dias consecutivos. Na prática, os trabalhadores franceses contam com cinco semanas de férias, enquanto os brasileiros, com quatro.
No que diz respeito ao adicional noturno, Brasil e França apresentam regimes distintos, tanto nos horários considerados para o trabalho noturno quanto nos percentuais de adicional e limites de horas. Na França, o trabalho noturno é definido pelo Artigo L3122-20 do Código Trabalhista, que considera, de forma geral, o período noturno aquele compreendido entre as 21 horas e as 6 horas do dia seguinte, abrangendo um intervalo maior para fins de concessão de adicional noturno. No Brasil, o trabalho noturno urbano está definido no Artigo 73 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que delimita o período noturno entre 22 horas de um dia e 5 horas do dia seguinte. Para o trabalhador rural, os períodos que ensejam o adicional noturno são: das 21hs às 5h, na lavoura, e das 20hs às 04h, na pecuária.
Além disso, a legislação brasileira não estabelece um limite específico para o total de horas trabalhadas no período noturno, mantendo, assim, o limite geral de horas extraordinárias por dia (2 horas extras diárias). A legislação francesa impõe um limite para o total de horas trabalhadas no período noturno, que normalmente não deve exceder 8 horas consecutivas (Artigos L3122-6 e L3122-7 do Código do Trabalho).
Conforme já exposto acima, no Brasil, o contrato de trabalho intermitente é possível desde novembro de 2017, data de entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, conhecida como Reforma Trabalhista. Na França, a forma contratual correspondente ao contrato intermitente – o contrato zero hora – é proibido. O dispositivo que permitia essa forma de contrato na França, Artigo L3123-31 do Code du Travail, foi revogado em 10 de Agosto de 2016.
Em ambos os países, contudo, a eficácia das normas relativas à jornada de trabalho depende, em grande medida, da atuação preventiva e repressiva dos órgãos de inspeção, que enfrentam desafios estruturais como escassez de pessoal, pressões do poder econômico e tentativas de flexibilização excessiva. Ainda assim, continuam a desempenhar um papel essencial na defesa da dignidade no trabalho e na promoção de condições laborais compatíveis com os direitos fundamentais da pessoa humana.
Portanto, a partir da análise comparativa das normas que tratam da jornada de trabalho nos dois países, é possível concluir que o ordenamento juslaboral francês, no que se refere à limitação da duração do trabalho é, em geral, mais protetivo do que o brasileiro. A legislação francesa adota uma jornada semanal padrão menor do que a brasileira (35 e 44). Além disso, impõe limites mais rigorosos à prorrogação de jornada semanal e anual. Prevê um período maior de férias remuneradas, considera mais extenso o período de pagamento do adicional noturno, regulamenta, de forma mais precisa, o descanso semanal remunerado e proíbe o vínculo trabalhista por meio do contrato zero hora. Com base nos parâmetros comparados, o presente artigo pretende contribuir com a construção de argumentos técnico-jurídicos que evidenciam a possibilidade e a necessidade de se avançar na limitação da jornada, a exemplo da limitação ao exercício laboral em Escala 6X1. Pretende, assim, contribuir com o fornecimento de subsídios para a atuação de atores sociais – notadamente sindicatos, legisladores e intérpretes da norma – no sentido da construção de um modelo normativo mais coerente com os compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de direitos sociais e laborais.
Apresenta-se com urgência a redução da jornada de trabalho no Brasil, uma pauta que, apesar de sua importância histórica e da evidência de avanços em outros países, como na França, em âmbito nacional, o tema se encontra defasado há quase quatro décadas. A manutenção inalterada da jornada de trabalho no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988 provoca superexploração da força de trabalho, precarização e impactos negativos na saúde física, psíquica e mental dos trabalhadores (Dal Rosso et Al., 2022).
A partir de uma análise comparativa entre o histórico e a legislação que regulamenta a jornada de trabalho em ambos os países, Brasil e França, este artigo propõe uma série de alterações, categorizando-as em três dimensões cruciais: duração, distribuição e intensidade.
Na dimensão da duração, este artigo propõe uma redução substantiva da jornada de trabalho no Brasil, de 44 para 40 horas semanais, destacando que esta transição deve ocorrer sem redução da remuneração dos trabalhadores. Argumenta-se que essa mudança é plenamente viável e não comprometerá a competitividade empresarial, sendo, na verdade, um imperativo para a geração de empregos e a melhoria da qualidade de vida. Importa que subsídios e financiamentos públicos concedidos ao setor privado sejam condicionados à implementação de planos de redução da jornada, negociados com as respectivas entidades sindicais, quando possível (Dal Rosso et Al., 2022). É crucial, nas propostas, a limitação das horas extras mensais e anuais para diminuir a carga horária total. Além disso, este artigo propõe a aplicação integral da jornada legal a modalidades atípicas de trabalho, como o home office e o trabalho em empresas-plataforma, para combater a precarização do tempo. Considera-se fundamental que o tempo in itinere, o tempo de troca de roupa e preparo para a atividade, e o tempo dedicado à qualificação profissional sejam formalmente computados como parte da jornada de trabalho. Por fim, enfatiza-se a necessidade da efetivação dos direitos trabalhistas e a ampliação de proteções sociais, como licenças parentais e o combate à discriminação salarial e a criação de condições para que micro e pequenas Empresas também adotem a jornada reduzida.
No que se refere à distribuição do tempo de trabalho, o artigo enfatiza que as formas de redução da jornada devem ser negociadas coletivamente entre os representantes dos trabalhadores e as empresas. Essa abordagem permitiria a adoção de modelos que beneficiem ambas as partes, como a semana de quatro dias, a redução da jornada diária ou a diminuição do trabalho aos sábados. Complementarmente, ressalta-se a importância do direito à desconexão do trabalho em horários de não trabalho, propondo que meios digitais não sejam utilizados para acionar os trabalhadores em seus períodos de descanso ou férias, bem como a abertura de discussões a respeito da quantidade de trabalho que cada indivíduo deve realizar, sempre com a crucial participação sindical, quando possível.
Finalmente, com relação à intensidade do trabalho, esse artigo propõe que se implementem instrumentos que tenham como finalidade o controle coletivo rigoroso contra a intensificação da carga horária, mesmo com a redução do número de horas trabalhadas. Isso inclui a necessidade de se estabelecerem monitoramentos detalhados do número e da duração das pausas, dos intervalos, das metas e do volume de tarefas, garantindo que a gestão por objetivos não leve a um aumento da intensidade laboral. Além disso, é fundamental que a redução da jornada venha acompanhada de medidas que melhorem a segurança e a saúde no ambiente de trabalho, evitando pressões excessivas sobre os trabalhadores e promovendo um ambiente laboral saudável em todos os aspectos. Também se propõe a eliminação de todas as formas de contrato atípico que precarizam o tempo de trabalho.
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Notas
[i] Tradução livre: “Esse é o cerne da reforma El Khomri e a principal causa do embate entre o governo e a CGT.”
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