Porque o Estado tenta intimidar a Abrasme?

Advocacia-Geral da União ameaça processar a Associação Brasileira de Saúde Mental. Órgão demanda exclusão de crítica a evento pró-comunidades terapêuticas do Ministério do Desenvolvimento Social, onde estudantes foram agredidos. Perseguição abre perigoso precedente

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Na quarta-feira (10), a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) tornou pública uma denúncia do que vê como uma “perseguição” e “tentativa de intimidação judicial”. A histórica entidade de defesa dos direitos humanos e políticas de saúde mental recebeu uma notificação extrajudicial da Advocacia-Geral da União (AGU), em que o órgão demanda que a Abrasme exclua uma série de críticas públicas a um evento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) em outubro, onde estudantes foram agredidos por criticarem o caráter pró-comunidades terapêuticas da atividade. Mais: a notificação é enviada em nome da defesa de um único servidor do MDS, no que a Abrasme vê como o uso indevido de um órgão de Estado para fins pessoais. No artigo a seguir, a presidente da Abrasme, Ana Paula Guljor, apresenta detalhes do caso e alerta para o perigoso precedente aberto pela “tentativa de intimidação judicial”.

Título original: Quando o Estado intimida: a ofensiva da AGU contra a Abrasme e a liberdade de denúncia

Vivemos tempos em que a defesa dos direitos humanos e a crítica a políticas públicas falhas deveriam ser pilares inabaláveis da nossa democracia. No entanto, o que testemunhamos é uma crescente e perigosa ofensiva contra a sociedade civil organizada, que se atreve a questionar modelos que, sob a égide do cuidado, perpetuam violações e desvios de finalidade. 

O caso recente envolvendo a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e a Advocacia-Geral da União (AGU), a serviço do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), é um exemplo claro e preocupante dessa escalada de intimidação.

A história começa em 6 de outubro de 2025, durante um seminário na Universidade de São Paulo (USP) sobre o acolhimento de mulheres em comunidades terapêuticas. Em vídeos que rapidamente circularam pelas redes sociais, foi identificado um servidor do MDS flagrado em um claro desvio de função. Longe de sua função de representação institucional, o servidor teria empurrado e impedido a entrada de estudantes e usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que realizavam seu direito democrático de protestar contra o modelo das comunidades terapêuticas. 

Mais grave ainda, há relatos de que ele teria incitado a ação de seguranças, disseminando informações inverídicas sobre negociações inexistentes com os movimentos e solicitando intervenção, o que resultou em lesões físicas aos manifestantes. Todas documentadas em uma escuta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Diante de tamanha gravidade, a ABRASME, em defesa de sua missão de proteção dos direitos humanos, não hesitou. Em 6 de outubro de 2025, a Associação enviou o Ofício ABRASME nº 116/2025 ao Presidente do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), Ricardo Lewandowski. 

No documento, a entidade manifestou “profunda preocupação e solicitou a imediata apuração de fatos envolvendo a conduta do servidor público Diego Mantovaneli do Monte”, destacando que tal comportamento era “incompatível com os princípios da administração pública e com a urbanidade esperada de um representante do Estado”. Outros movimentos também fizeram solicitações ao CONAD.

A reação: intimidação judicial em nome do Estado

A resposta a essa denúncia legítima veio quase dois meses depois, e de uma forma que deveria acender um alerta a qualquer cidadão preocupado com o Estado Democrático de Direito. 

A ABRASME foi surpreendida com uma Notificação Extrajudicial enviada pela Advocacia-Geral da União (AGU). Este documento, que carrega o peso e a autoridade de um órgão de Estado, exigia, nomeando a Presidenta da ABRASME, Ana Paula Guljor: uma retratação pública; a retirada imediata de todas as publicações que supostamente continham “conteúdo ofensivo, calunioso ou difamatório“; e um “compromisso formal de abstenção de novas publicações“, sob pena de “responsabilização civil e penal dos autores e da entidade”.

A notificação da AGU tenta desqualificar as denúncias da ABRASME, alegando que o servidor estava no “exercício regular de suas funções” e que as publicações da Associação contêm “informações inverídicas e ofensivas à honra, imagem e reputação funcional do notificante”. Curiosamente, menciona que os fatos foram registrados em Boletim de Ocorrência e que há “provas pré-constituídas documentais e audiovisuais que demonstram a ausência de qualquer conduta agressiva/truculenta”, além de ter a “chefia imediata e o Secretário-Executivo do MDS já se manifestaram formalmente corroborando a inocência do servidor”. Este posicionamento oficial contrasta flagrantemente com os vídeos amplamente divulgados, que mostram uma realidade bastante diferente.

O contexto da ofensiva: proteção de interesses privados e o papel do MDS

A ABRASME e outras entidades que compõem a Campanha Nacional contra as Comunidades Terapêuticas têm sido vozes incansáveis na denúncia de violações de direitos humanos nesses espaços. A campanha, que realizou atos e manifestações em 10 de outubro em todo o Brasil, buscou a retirada das Comunidades Terapêuticas da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a revogação da Resolução 01/2019 do CONAD, que regulamenta essas instituições. 

A questão central é o questionamento sobre a destinação de recursos públicos para instituições privadas, sendo que o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) necessitam urgentemente de recursos, além da profunda incompatibilidade do modelo de Comunidades Terapêuticas com os princípios da reforma psiquiátrica antimanicomial e com a política pública de saúde mental baseada em direitos.

A análise da entidade é cristalina: as nossas postagens e denúncias não configuram calúnia ou difamação e cumprem o papel de exigir apuração em uma atividade que gerou diversas pessoas feridas. Elas se baseiam em fatos amplamente documentados por vídeos e relatos, tendo como objetivo a publicização e o pedido de investigação da conduta de um servidor público em flagrante desvio de função, que agiu de forma incompatível com o Código de Ética do Ministério. 

Agora, o que chama atenção é o uso da AGU, um órgão de Estado, para defender um servidor em uma situação que transborda os limites da legalidade e da ética pública e, ao intimidar uma entidade de defesa de direitos, levanta sérias questões sobre quais interesses estão sendo realmente protegidos. 

Parece evidente que o MDS, através de seu Departamento de Apoio a Entidades de Acolhimento (Depad), transformou-se em um balcão de lobby de defesa dos interesses econômicos de entidades privadas, as Comunidades Terapêuticas, em detrimento do interesse público. Chama atenção o quantitativo financeiro em editais destinados a tais equipamentos e a atuação do Ministério do Desenvolvimento Social em estreita parceria com as federações de comunidades terapêuticas, em detrimento do diálogo – distanciado, ou mesmo inexistente – com o Ministério da Saúde, pasta responsável pela implementação da lei que orienta as políticas nacionais de saúde mental e drogas, e portanto responsável pelo cuidado a pessoas que fazem uso de drogas. 

No âmbito do cuidado às pessoas que usam drogas, as Redes de Atenção Psicossocial possuem, dentre outros dispositivos, as Unidades de Acolhimento, que permitem a permanência em regime residencial transitório, além de contar com uma regulamentação que inclui equipes multiprofissionais além da articulação com os Centros de Atenção Psicossocial. 

Porque, então, o investimento em uma estrutura não reconhecida como pertencente à rede SUAS e que não possui registro de equipamento de cuidado em saúde, como são as comunidades terapêuticas? Sem considerar relatórios e inspeções por diversos órgãos (CFP, MNPCT, CGU, lista do trabalho escravo do MPT e, mais recentemente, PFDC/2025). Isto, sem considerar os casos que chegam à mídia e às redes sociais, onde a presença de denúncia de casos de sequestro, morte por incêndio, hipermedicalização e agressões físicas são frequentes.

A perigosa cronologia da intimidação: é assim que Jorge Messias quer ir ao STF?

Não podemos ignorar a cronologia dos eventos. A notificação extrajudicial da AGU, comandada por Jorge Messias, surge logo após a última reunião ordinária do biênio do CONAD (27 e 28 de novembro), um encontro de alta tensão onde se discutiu a revogação de resoluções referentes às Comunidades Terapêuticas (especialmente a Resolução 01/2019, que as regulamenta, e a instalação de um GT sobre a revogação da Resolução nº 01/2015). 

A ABRASME, em conjunto com outras entidades, teve papel crucial na instalação desse Grupo de Trabalho. O timing não parece mera coincidência; soa como uma retaliação calculada, uma tentativa de usar o aparato estatal para silenciar quem se opõe a um modelo de cuidado questionável e lucrativo. O 2º Relatório Nacional do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho, lançado recentemente, é devastador, evidenciando que a violação de direitos e a exploração do trabalho dos acolhidos não são casos isolados, é estruturante do modelo das comunidades terapêuticas. O relatório demonstrou que as comunidades terapêuticas não são nem comunidades e muito menos terapêuticas.

Recorte de parte das conclusões do relatório de inspeção MPFDC/2015 (Fonte: MPF)

A ABRASME não é uma entidade isolada. Ela se mobiliza junto de um coletivo de vozes – profissionais, acadêmicos, pesquisadores, usuários e familiares – que lutam por uma política de saúde mental baseada na reforma psiquiátrica e na Convenção das Pessoas com Deficiências. 

Essa tentativa de intimidação, usando um órgão como a AGU para amedrontar uma associação civil, cria um precedente gravíssimo. Se a ABRASME for silenciada, quem será o próximo? Movimentos sociais, entidades antimanicomiais e antiproibicionistas, seus militantes, usuários, familiares e profissionais correm o risco de serem criminalizados, ameaçados e sufocados por ações judiciais que visam paralisar sua organização e mobilização social.

É imperativo que a sociedade brasileira e as instituições democráticas se posicionem firmemente contra essa escalada de intimidação. A democracia que defendemos é emancipatória e tem como pressuposto a proteção à vida, sendo para isto imprescindível ter como estruturante a defesa dos Direitos Humanos. Para isto, o direito à livre manifestação, à denúncia de violações de direitos e à fiscalização da conduta de agentes públicos são pilares da nossa Constituição. 

Permitir que órgãos de Estado sejam cooptados para defender interesses escusos e para silenciar a crítica é abrir caminho para um retrocesso autoritário. A defesa da ABRASME é a defesa da democracia, da transparência na gestão pública e da integridade da política de saúde mental em nosso país. Não podemos calar. 

E a pergunta que fica é: será que Jorge Messias quer ir ao STF utilizando um órgão de Estado para intimidar entidades e defensores de direitos humanos?

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