Um almoço com Marion Nestle

Nutricionista e grande crítica da indústria alimentícia falou sobre seu novo livro no 14º Abrascão. Em entrevista exclusiva, ela fala sobre as mudanças na percepção e na crítica dos brasileiros a respeito da alimentação – e conta suas impressões sobre nosso cardápio

Créditos: Gabriel Brito/Outra Saúde
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Marion Nestle em entrevista a Gabriel Brito e Gabriela Leite

O sol ardia sobre as milhares de cabeças que saíam do Centro Internacional de Convenções de Brasília e andavam pelas ruas de Brasília em busca de um lugar para comer, antes de retornar para os trabalhos da tarde do 14º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.

Entre tanta gente reunida no evento, esteve uma senhora norte-americana cuja vitalidade torna assombrosa a informação de que já completou 89 anos de idade. Uma das maiores autoridades em nutrição do mundo, Marion Nestle foi uma das atrações do Abrascão, onde apresentou seu último livro What to eat now [“O que comer agora”, em tradução direta. Sem edição no Brasil]. Uma de suas outras obras, Uma verdade indigesta, foi lançada no país pela Editora Elefante em 2019.

Outra Saúde a acompanhou neste horário de almoço-reportagem. Chegamos a um enorme e aconchegante restaurante no setor de clubes da capital. Marion Nestle se impressionou com tudo: desde a estrutura do estabelecimento ao enorme cardápio disponível no self-service. “Muito interessante esse tipo de lugar onde você mesmo faz seu prato. E como tem comida!”, observou.

Sua passagem pelo Brasil foi uma experiência alimentar que reforçou suas boas impressões sobre nossa cultura gastronômica. A fartura dos pratos e até hábitos alimentares como o compartilhamento de petiscos chamam sua atenção, como destacou na conversa que antecedeu a entrevista a este boletim.

Para ela, o país, assim como outros da América Latina, está à frente dos Estados Unidos em termos alimentares, inclusive no que diz respeito à regulação por governos. De toda forma, o capital é onipresente e por aqui os desafios em fazer da alimentação uma parte inseparável do direito à saúde segue na ordem do dia.

“Cinco, dez anos atrás, eu daria essas palestras e a palavra capitalismo nunca apareceria. Eu não diria a palavra, ninguém no público diria a palavra, nunca seria mencionada. Agora, eu não posso dar uma palestra sem alguém no público indagar ‘mas você não vai falar sobre a necessidade de controlar o capitalismo?’”, pontuou Marion Nestle.

Em sua visão, as pessoas ficaram mais críticas a respeito de suas dietas alimentares. Sua vasta produção científica e intelectual contribuiu para essa mudança. Como explicou durante a entrevista, seu método passa pela observação detalhada das prateleiras dos supermercados, o ponto de contato entre a produção de alimentos e o cidadão médio.

Mas, como esclarece, seu trabalho de pesquisa puxa todo o fio da meada. “Discuto se os alimentos são bons para a saúde ou não, para o meio ambiente, para os próprios produtores desses alimentos, se deixam resíduos. Enfim, discuto o sistema alimentar”.

Como dito por Nestle, há ventos de mudança soprando nas sociedades e, mesmo silenciosamente, a crítica explícita ao capitalismo e seu modo de produção parece retornar ao centro de debates. Foi assim nesta entrevista e também ao longo de todo o Abrascão, realizado na esteira de uma Cúpula do Clima que reforçou a noção de que os interesses dos povos e dos capitalistas são cada dia mais inconciliáveis.

“A maneira como nós produzimos agora não é sustentável, porque danifica muito a terra e o meio ambiente. Precisamos de práticas agrícolas que devolvam o que foi tirado da terra. E que não produzam tantos gases de efeito estufa”, resumiu.

Em sua pesquisa, Marion Nestle gosta de analisar a própria disposição física dos alimentos nos supermercados. Atenta aos detalhes, desenvolveu uma forte crítica à rotulagem e suas informações, aspecto que considera fundamental na formação da cultura alimentar.

“Fui a um mercado e comprei caixas de sucrilhos. Enquanto uma falava que havia aditivos artificiais, a outra não tinha essa informação. No Brasil a rotulagem é mais eficiente. Mas pode ser melhor. O rótulo de alerta é muito pequeno e muito polido”, explicou.

Além do livro recém-lançado no Brasil, Nestle já trabalha no próximo, que terá um foco especial nos cereais – abordagem bastante relacionada com os hábitos alimentares dos EUA.

“Uso as caixas de cereais como ilustrações. Porque as caixas mudam o tempo todo, em respostas às leis, às mudanças culturais e de marketing. Também refletem a tentativa da indústria de tornar os cereais almoços normais”, contou.

Leia a entrevista completa.  

O que você comenta sobre seu novo livro (What to eat now)?

É um livro muito abrangente sobre como pensar questões alimentares. Não se trata de dizer para as pessoas o que comer, mas pensar sobre o que comer. Comento como observar alguns detalhes, a exemplo de como as comidas são distribuídas e ofertadas em supermercado e nas suas seções.

Eu utilizo os supermercados como uma forma de organizar a discussão. Falo sobre observarmos as seções da carne, do azeite, dos peixes e assim pensar no caminho que leva tais alimentos até o lugar onde os compramos.

E quais são as principais discussões deste processo?

Discuto se são bons para a saúde ou não, para o meio ambiente, para os próprios produtores desses alimentos, se deixam resíduos. Enfim, discuto o sistema alimentar.

Como sentiu a recepção do público em sua palestra?

Os tradutores eram ótimos e talvez isso tenha ajudado (risos). A interação foi muito boa e havia bastante interesse no tema que trouxe.

Você acha que hoje as pessoas pensam mais criticamente sobre comida do que antes?

Muito mais, sem dúvidas. Para dar apenas um exemplo, cinco, dez anos atrás, eu daria essas palestras e a palavra capitalismo nunca apareceria. Eu não diria a palavra, ninguém no público diria a palavra, nunca seria mencionada. Agora, eu não posso dar uma palestra sem alguém no público indagar “mas você não vai falar sobre a necessidade de controlar o capitalismo?”

Essa discussão tem se mostrado mais forte em países do Sul Global?

Depende de qual país você está falando. Mas, certamente, os países da América Latina estão mais adiantados que os Estados Unidos em tentar lidar com doenças crônicas, diabetes tipo 2, obesidade, que podem ser decorrentes de uma dieta alimentar. Também vemos mais debates sobre rotulagem de alimentos, restrições ao marketing, restrições ao que pode ser vendido nas escolas. Nós não temos nada assim nos EUA.

Os governos precisam fazer mais. Mas as agências de saúde pública dos países da América Latina, tais como Brasil, México, Peru, Chile ou Colômbia, olham para o que acontece nos Estados Unidos e dizem: “não podemos lidar com uma quantidade tão grande de pessoas doentes. Precisamos ter uma população mais saudável. O que podemos fazer para que as pessoas comam melhor?”

Vejo nesses países maior intenção de criar maneiras de regular a indústria alimentar, o que é muito difícil.

Há países que você vê como referência neste momento?

Acho que México é uma referência. Assim como o Brasil, busca criar políticas nesse sentido. Tem que fazer muito mais e o México tem, da maneira como eu entendo, uma coalizão de grupos da sociedade, do governo e universidades que têm tido iniciativas conjuntas.

O mesmo ocorre por aqui. E quando um governo consegue aprovar regulações, temos uma ação efetiva, ainda que não seja fácil avançar politicamente. No México, por exemplo, quando aprovaram uma taxação sobre refrigerantes, disseram que o valor arrecadado seria investido em procedimentos para fornecer água limpa nas escolas, mas isso nunca aconteceu.

Devemos avançar na crítica sobre os modelos capitalistas de produção de alimentos?  

Sim. A maneira como nós produzimos agora não é sustentável, porque danifica muito a terra e o meio ambiente. Precisamos de práticas agrícolas que devolvam o que foi tirado da terra. E que não produzam tantos gases de efeito estufa. Muitas pessoas estão trabalhando nisso, como pudemos ver aqui.

Mas o Brasil também lida com grandes dificuldades em regular sua agricultura, amplamente baseada em monoculturas e desmatamento.

É um grande problema. É dramático. Derruba-se a floresta para ampliar o espaço da soja. Não é uma boa ideia. Porque a soja é destinada a alimentar animais e seria melhor que as pessoas comessem menos carne. A soja vai para a produção de combustível de diesel, o que é um uso ridículo da terra.

Como você observou a COP-30, a Cúpula do Clima que acabou de ser realizada no Brasil?

Muita coisa esteve em discussão, inclusive nos encontros sobre alimentos, mas nada que constasse no relatório final, o que foi uma grande decepção.

Outro tema importante da sua pesquisa e crítica é rotulagem de alimentos, que você diz não ser confiável. Por quê?

Fui a um mercado e comprei caixas de cereais, no caso, sucrilhos. Uma tinha aviso de alerta, a outra não. Enquanto uma falava que havia aditivos artificiais, a outra não tinha essa informação. No Brasil a rotulagem é mais eficiente. Mas pode ser melhor. O rótulo de alerta é muito pequeno e muito polido.

Você conheceu supermercados no Brasil?

Sim. Os grandes supermercados são como nos EUA. Aqui ainda existem mercados menores. Os grandes têm mais comida ultraprocessada. É como nos Estados Unidos. Os grandes mercados são lindos (risos). Eu fui para alguns em São Paulo e eram lindas lojas. Mas sempre fico focada em cereais, pois meu próximo livro será sobre eles, ainda que esse produto não seja tão importante no Brasil.

E por que este será o tema de seu próximo livro?

É um livro sobre a política alimentar dos Estados Unidos, no qual uso as caixas de cereais como ilustrações. Porque as caixas mudam o tempo todo, em respostas às leis, às mudanças culturais e de marketing. Também refletem a tentativa da indústria de tornar os cereais almoços normais, atrativos para adultos interessados em saúde. Ao mesmo tempo, querem continuar sendo vendidos para crianças que gostam de açúcar.

A pesquisa brasileira sobre ultraprocessados e sua correlação crescente com algumas doenças, sob liderança de Carlos Monteiro, tem tido repercussão no seu país?

Carlos Monteiro trabalha Geoffrey Cannon, que participou de livros meus anteriores, um antigo amigo. Sua iniciativa é uma grande ideia e seus artigos, que agora chegaram aos EUA por meio da Revista Lancet, têm uma grande importância.

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