Ensaio sobre a interiorização do crime organizado
O Rio produz a marca, a disciplina, a narrativa. É o território-escola, território-marca, território-sacrifício. Mato Grosso oferece fluxos que o Rio não tem: corredores, silos, armazéns, fazendas, garimpos, pistas clandestinas, rios e zonas de sombra regulatória
Publicado 05/12/2025 às 14:32

Título original:
Interiorização, Logística e Fronteira: a Reconfiguração do Crime Organizado a partir de Mato Grosso e o Massacre da Penha/Alemão
Mito, deslocamento e o olhar da fronteira
Sou uma carioca vivendo na fronteira com a Bolívia e, desse deslocamento, aprendi a olhar o Rio por contraste: a favela continua a pulsar como coração simbólico do crime brasileiro, mas já não reúne sua infraestrutura operacional. Em Mato Grosso a distância entre mito e logística aparece com nitidez desarmante. Manifesta-se no imaginário juvenil, nos corredores universitários, nas conversas em que “ir à favela” figura como um rito estético e identitário. Muitos que visitam o Rio escolhem ver uma favela não como estudo, mas como experiência: ingresso num santuário de mitos que confere pertencimento.
Vejo jovens quilombolas, ribeirinhos e filhos do agronegócio jurando fidelidade ao Comando Vermelho num gesto quase litúrgico, embalados por funks que circulam como evangelhos profanos e que sedimentam uma estética bélica transformada em pertença. O Rio produz a marca, a disciplina, a narrativa; é território-escola, território-marca, território-sacrifício. O Estado, por sua vez, usa esse palco para encenar soberania: corpos matáveis se tornam moeda política.
Em contrapartida, Mato Grosso oferece o que o Rio não tem: corredores, silos, armazéns, fazendas, garimpos, pastos, estradas, pistas clandestinas, rios e zonas de sombra regulatória. Sem o Rio não há mito; sem Mato Grosso não há expansão. É neste atrito, entre território simbólico e regime dos fluxos, que se coloca a urgência de devolver à segurança pública uma leitura menos teatral e mais logística.
A falência da narrativa da “guerra urbana”
A narrativa da guerra urbana ainda serve como lente fácil porque casa com a história espacial do Rio: cidade segregada, dividida por classe e cor, em que a disputa por morros e territórios foi sempre tradução material de um conflito social mais amplo.
Mas a guerra que o Estado encena nas favelas hoje é sobretudo uma ficção moral que legitima execuções e massacres, que naturaliza a política de morte sob o verniz de manutenção da ordem.
O massacre de 28 de outubro de 2025, na Penha e no Alemão, mostrou essa dissonância: enquanto corpos eram arrastados na Serra da Misericórdia e o teatro estatal repetia sua liturgia letal, as estruturas logísticas das facções permaneceram operantes. O Estado alvejou o mito e deixou intacto o motor; a guerra foi encenada no palco errado.
A mutação logística: do território ao regime dos fluxos
O Comando Vermelho já não opera prioritariamente pela lógica da ocupação de favelas; em vários eixos da Amazônia e do Centro-Oeste a facção deslocou sua energia para rotas, modais e infraestruturas de circulação. Mato Grosso é a epifania dessa transmutação: aqui não há morros cinematográficos, mas BR-163, BR-070, silos, armazéns, caminhões, portos secos, pistas clandestinas, garimpos mecanizados, estradas vicinais, rios navegáveis e fazendas que recentemente eram floresta. O crime, portanto, disputa circulação mais que chão.
As facções funcionam como correias de transmissão encaixadas na infraestrutura do agronegócio: onde se abre mata, abrem-se rotas; onde há silo, desdobra-se fluxo; onde há desmatamento, instala-se corredor. Operações e apreensões comprovam essa hibridização entre logística legal e ilegal (Operação Ágata 2024 e Gefron/PRF 2024–2025).
A violência deixou de ser essencialmente geográfica e passou a ser hidráulica: o crime não mora mais, circula.
Franquias criminais: expansão, marca e autonomia
A dinâmica de expansão do CV hoje tem a forma da franquia. O Rio exporta códigos, estética e rito; o interior absorve e adapta esses elementos conforme suas economias locais. Há evidências jornalísticas dessa capilaridade: reportagens mostram atuação do CV em diversos estados (Metrópoles e Diário de Cuiabá).
O levantamento da PNBonline aponta presença de facções criminosas em 92 municípios de Mato Grosso. Esse número é chave: não evidencia 92 territórios ocupados no sentido carioca, mas 92 nós logísticos, células autônomas conectadas por identidade e fluxo.
O CV, aqui, não replica a centralização empresarial do PCC, mas opera por difusão simbólica e flexibilidade logística, mantém lealdade e estética comuns, mas delega autonomia operacional. O Rio fornece mito; o interior fornece corredor.
Garimpo, deslocamentos e a complexidade que a imprensa do Sudeste simplifica
A concepção midiática do garimpo como unidade homogênea controlada integralmente pelo tráfico é um atalho analítico que falseia a realidade.
No campo há múltiplos arranjos: garimpos tradicionais, garimpos articulados ao tráfico e zonas híbridas onde a facção infiltra logística sem dominar completamente.
A matéria da Repórter Brasil esclarece um ponto fundamental para corrigir equívocos: o que vemos em Mato Grosso não é efeito direto de operações urbanas no Sudeste, muitas vezes é consequência das próprias operações federais de “desintrusão” nas terras indígenas do Norte.
As pressões em Yanomami, Kayapó ou Munduruku, por exemplo, não desparam a rede, deslocam-na. Como relata Julia Ospina Kimbaya, coordenadora do MPI, estruturas empresariais e criminosas do garimpo não somem com a intervenção, mas migram para áreas com fiscalização mais frágil, como a Terra Indígena Sararé ( localizada na cidade em que moro), que em 2025 liderou os alertas de garimpo ilegal no país com 1.814 registros do Ibama.
O deslocamento envolve redes empresariais que fornecem máquinas, combustíveis e logística, e também práticas de aliciamento de mão de obra indígena. A matéria aponta, ainda, que a repressão não resolve sozinha: sem uma pós-desintrusão permanente e políticas públicas de substituição econômica, a simples retirada de invasores cria vácuos que são ocupados por outras frações dos mesmos circuitos.
A análise do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, repercutida na GaúchaZH, confirma a presença intensa das facções na floresta amazônica e reforça que a expansão não é local, mas regional e transnacional.
Assim, o garimpo no Mato Grosso não é um “braço” único do tráfico carioca; é um conjunto heterogêneo de ecologias econômicas em que o tráfico pode ser um ator relevante entre outros, como empresários, grileiros, operadores transnacionais, e cujo padrão de funcionamento depende da pressão estatal e das janelas de oportunidade do mercado global por ouro, combustível e insumos.
A fronteira como ecossistema e a conjunção entre agronegócio, desmatamento e crime
A fronteira contemporânea não é uma linha, é ecossistema: um entramado que conecta insumos agrícolas, madeira, ouro, combustíveis, pessoas e drogas por rotas que se sobrepõem. Mato Grosso deixa isso claro: a expansão agrícola abre estradas, pistas, pontos de apoio e microportos que, uma vez estabelecidos, servem simultaneamente aos circuitos lícitos e ilícitos. Onde há desmatamento, abre-se um corredor; onde há corredor, instala-se circulação.
O garimpo intensifica essa fractalidade do território: em muitos pontos a presença policial empurra atividades para espaços mais vulneráveis, redesenhando o mapa da ilegalidade. A malha se adensa quando alianças interestatais e transnacionais — com operadores bolivianos, paraguaios e colombianos — entram em cena, fazendo da fronteira um nó de circulação complexo, difícil de ser enfrentado por respostas meramente territoriais.
O massacre como sintoma: Estado obsoleto e violência performática
O massacre da Penha/Alemão é, portanto, sintoma e não exceção. Um Estado preso ao repertório do século XX responde com letalidade onde a visibilidade é garantida, porque ali se mostra, e não onde a eficiência logística demanda resposta.
As operações espetaculares tornam-se espetáculo político, ritual de reafirmação da autoridade, promessa eleitoral e catarse coletiva. Enquanto isso, as facções diversificam suas atividades no agro, garimpo, contrabando, imobiliário, postos, criptomoedas, e aprofundam sua capilaridade interestadual.
Assim, o poder letal recai sempre sobre corpos classificados como descartáveis: negros, pobres, periféricos. A necropolítica encontra na favela o palco perfeito para se reproduzir.
A força simbólica do território urbano na era dos fluxos
Mesmo quando o crime migrou para os fluxos, a favela não desapareceu: transformou-se. Hoje ela funciona como território-escola, território-marca, território-caixa, território-teatro, território-fetiche e território-sacrifício.
É ali que se forjam ritmos, gestos, estética e códigos que circulam e legitimam laços de pertencimento. A disputa territorial no Rio com invasões, caveirões, helicópteros opera cada vez mais como performance estética disciplinadora do que como tática de contenção logística. Não é por acaso que jovens do Norte e do Centro-Oeste estiveram na operação da Penha: o Rio mantém a função de campo de iniciação simbólica.
Mato Grosso como espelho: violência circulatória e o futuro da segurança pública
Mato Grosso mostra o que o Rio encobre: o crime brasileiro tornou-se pós-urbano, transfronteiriço, circulatório e cada vez mais financeiro. A verdadeira arena de disputa passou a ser as fintechs, os bancos digitais, os contratos de fachada, as carretas de soja, os aeródromos privados e os garimpos mecanizados, ou seja, espaços difíceis de visibilizar por quem permanece preso à estética do morro.
A violência metamorfoseou-se em fluxo. Enfrentar o crime, portanto, exige abandonar o fetiche da ocupação territorial e assumir uma segurança pública orientada para os fluxos: mercadorias, capitais, armas, pessoas, dados e narrativas.
Os direitos humanos, nesse contexto, não são moralismo estanque, mas tecnologia democrática para conter o poder letal do Estado. Enquanto o país insistir em enxergar o problema pelo prisma da ocupação, continuará sacrificando vidas e preservando as engrenagens que verdadeiramente movem a criminalidade.
O massacre é o barulho; os fluxos são o silêncio que governa.
Mato Grosso oferece a cartografia do futuro: não mais a cartografia do chão, mas a cartografia do trânsito.
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