Os desastres climáticos chegaram ao Brasil
Um relatório quase ignorado pela velha mídia revela: só em 2024, foram 10,5 mil ocorrências de eventos extremos, mais de mil mortes e R$ 67 bi em prejuízos. Drama tende a se agravar – e país está despreparado. Maior obstáculo: falta de legislação e recursos para emergências
Publicado 05/12/2025 às 14:11 - Atualizado 05/12/2025 às 14:52

Por Janes Rocha, no ComCiência
De acordo com o Atlas Digital de Desastres no Brasil, nos últimos cinco anos até 2024 o país registrou 10.408 ocorrências de alagamentos, enxurradas, inundações, chuvas intensas, tornados, vendavais, ciclones, granizo e movimento de massa que resultaram em 1.124 óbitos e R$ 67 bilhões em prejuízos. Com a crise climática, tais eventos estão ficando cada vez mais frequentes e extremos e levantam a questão: os municípios estão preparados para enfrentá-los? Um estudo sobre a situação da Defesa Civil (DC) mostra que a resposta é não.
Cabe à DC a tarefa de preparar e alertar a população para riscos de desastres e atender as pessoas quando eles acontecem, orientando a evacuação e auxiliando os atingidos. Com a crise climática, era de se esperar que as DC ganhassem protagonismo. No entanto, a situação desses órgãos públicos está longe do necessário para cumprir suas atribuições.
O Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (Cope) indicou que 72% dos órgãos de DC não têm orçamento próprio, enquanto perto de 20% não têm orçamento algum, o que se reflete, em geral, na falta de pessoal e estrutura. Cerca de 47% das DC municipais não têm veículos para deslocar os profissionais para as áreas afetadas; 30% não têm computador ou notebook e 63% não possuem celular com pacote de dados exclusivo da Defesa Civil.
O Cope foi realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), envolvendo um grupo de pesquisadores do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Nacionais (Cemaden), da Universidade de Glasgow (Escócia), do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O objetivo da pesquisa é apoiar estratégias e políticas públicas de enfrentamento aos desastres ambientais a partir de um diagnóstico da estrutura de governos e comunidades em nível municipal (leia mais aqui). O Projeto Cope atualizou uma pesquisa feita quatro anos atrás, o Projeto Elos, ampliando o número de municípios investigados de 1.900 para 2.200 e foi realizado ao longo dos primeiros sete meses de 2025. Segundo o sociólogo e pesquisador do Cemaden, Victor Marchezini, um dos coordenadores do Cope, houve um agravamento da situação comparada com o levantamento anterior.
Marchezini destaca como mais problemáticos a alta rotatividade dos profissionais da DC em função da troca de comando nas prefeituras em 2024; profissionais mal ou nada qualificados e treinados, falta de estrutura física e dificuldade para criação dos chamados núcleos comunitários de proteção e defesa civil. A esses gargalos se soma a emergência de notícias falsas (“fake news”) em larga escala pelas redes sociais que dificultam ainda mais o trabalho de salvamento.
Um dos pontos que mais chamam a atenção, diz Marquezini, é a dificuldade que os municípios têm de organizar os chamados simulados, uma etapa fundamental da DC em que se orienta a população sobre como agir em caso de inundação, deslizamentos ou ondas de calor. Cerca de 40% nunca realizou um simulado e cerca de 30% não têm sequer um plano de contingência. Apenas 15% dos municípios têm planos de redução de riscos e 7% têm planos de adaptação às mudanças climáticas
Ondas de calor
A maior incidência entre as ocorrências documentadas no Atlas Digital (8.390 das 10.408) está relacionada às chuvas intensas, mas um fenômeno crescente é o de ondas de calor. De acordo com o Ministério da Saúde, “ondas de calor são eventos climáticos caracterizados por temperaturas extremamente altas, que superam os níveis esperados para uma determinada região e época do ano”. Nos últimos cinco anos (2019-24) foram 156 ondas de calor no Brasil, comparadas a 18 no período precedente (2013-18).
“Globalmente, as ondas de calor são o desastre que mais causa mortes, são mais de 500 mil por ano”, alertou o cientista Carlos Nobre em palestra no seminário “Gestão de Desastres Ambientais e Clima: Coordenação, Comunicação e Desafios Estruturais”, promovido em 11 de setembro pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). “Estamos preparados para fazer a gestão de ondas de calor? Não estamos”, frisou Nobre.
O Projeto Cope indicou que apenas 10% dos municípios têm planos de contingência para ondas de calor.
O maior obstáculo ao desenvolvimento da DC nos municípios é a falta de uma legislação federal que reforce a institucionalização e viabilize a criação de fontes de recursos, opina Sidnei Furtado, coordenador regional e diretor da DC de Campinas e do HUB de Resiliência da iniciativa “Construindo Cidades Resilientes 2030”.
“O problema é institucional”, opina Furtado, lembrando que a Lei 12.983/2014, que estabelece a criação do Fundo Nacional de Proteção e Defesa Civil (Funcap), nunca foi regulamentada, o que dificulta o repasse regular de recursos da União a Estados, Distrito Federal e municípios para a prevenção, resposta e recuperação de desastres.
Em novembro, às vésperas da COP30, o governo lançou um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil 2025-2035 (PN-PDC) que visa fortalecer a gestão de riscos de desastres no Brasil. Em entrevista à imprensa, Wolnei Wolff Barreiros, Secretário Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), explicou que o foco é a prevenção e que o governo pretende apoiar Estados e municípios na atualização de seus planos.
Regina Pancieri , gerente de Educação e Pesquisa da Defesa Civil do Estado de Santa Catarina, avalia que o PN-PDC dá as grandes diretrizes que agora precisam ser adequadas aos planos estaduais e municipais. Ela ressalta a necessidade de compromisso de todos os entes federativos, em especial com a continuidade das equipes e estruturas que costumam ser desmanteladas a cada troca de prefeito. Para Pancieri, isso vai exigir um acompanhamento do governo federal. “Não adianta lançar um plano e não acompanhar a execução nos Estados e municípios”, alerta.
Marquezini acrescenta que as deficiências institucionais impedem a profissionalização dos agentes, fundamental para fortalecer as DC em todo país. O coordenador do Cope afirma que a ciência tem contribuído com a geração de conhecimento sobre os eventos extremos e sobre as vulnerabilidades de cada parte do território. “Mas um desafio maior que nós temos é como reunir cientistas de diferentes áreas do conhecimento trabalhando mais próximos dos gestores públicos para entender um pouco quais são os desafios que eles têm em utilizar o conhecimento científico, em implementá-lo numa política pública”, diz. “Às vezes nós damos ótimos diagnósticos, mas as organizações públicas não têm a capacidade de colocar em prática aquilo que estamos recomendando. Porque não tem equipe suficiente, não tem orçamento.”
Janes Rocha é jornalista e escritora, mestre em Ciências da Sustentabilidade pela EACH-USP e aluna do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Unicamp. Tem experiência na cobertura de economia, ciência e tecnologia.
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