Mais um passo do Congresso para o assassinato ambiental

Câmara aprova MP que cria a licença especial para megaobras. Completa-se o trio de retrocessos que afrouxam regras para construção de hidrelétricas e pavimentação de florestas. E versão é pior que a original: reabre retrocessos vetados e inclui flexibilizações

Trecho não asfaltado da BR-319 no Amazonas – Bruno Kelly – 9.set.24/Reuters
.

Por Kátia Mello, no Geledés

Pior do que está fica, sim. Ontem (02/12) o Congresso Nacional avançou para completar o assassinato do licenciamento ambiental no Brasil, desmontando aquilo que há 40 anos é a pedra angular da política nacional de meio ambiente.  

Na terça-feira, uma comissão mista aprovou a conversão em lei da Medida Provisória 1.308/2025. A MP, enviada pelo governo em agosto, cria no país a figura da Licença Ambiental Especial, a LAE, segundo a qual grandes obras  de infraestrutura consideradas “estratégicas” para o país por políticos poderão  ser licenciadas em um ano, burlando o rito normal e substituindo as três licenças  geralmente exigidas para esse tipo de empreendimento por uma única, a ser dada em até um ano. A análise da medida precisa ser concluída até sexta-feira (15), caso contrário, o texto perde a validade.

Com a LAE transformada em lei menos de uma semana depois de o Congresso derrubar os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao PL da Devastação, completa-se o trio de medidas que tornam o licenciamento ambiental letra morta  no país: a LAC (Licença por Adesão e Compromisso), o autolicenciamento, que a nova legislação estende a empreendimentos de pequeno e médio porte – que  representam mais de 90% do total dos licenciamentos estaduais e municipais; as isenções em série de licenciamento que vão da atividade rural à pavimentação de estradas na Amazônia; e, agora, a Licença Ambiental Especial, um processo  “expresso” para grandes projetos de infraestrutura, inclusive hidrelétricas, que já  podem ser licenciadas por essa modalidade. 

“Com essas três medidas, licenciar empreendimentos torna-se exceção no país e não regra”, diz Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório  do Clima. “O Congresso Nacional comete um atentado histórico contra a saúde e  a segurança dos brasileiros, contra o clima e contra o nosso patrimônio natural.”  O movimento ambiental irá à Justiça contra a nova legislação.  

A LAE foi inventada durante a tramitação do PL da Devastação (PL 2.159/2004) no Senado. É obra do presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (União-AP),  criada sob medida para acelerar o licenciamento da exploração de petróleo na  Foz do Amazonas, de seu interesse eleitoral. Por ela, projetos de “interesse  estratégico”, assim definido pelo Conselho de Governo (um convescote de  ministros no qual a área ambiental tem um único voto), vão para uma fila expressa de licenciamento. Em vez de uma licença prévia, uma de instalação e  uma de operação, essas obras passam a ter uma única licença, a LAE, com prazo  máximo de 12 meses para ser concedida.  

A MP da LAE foi editada por Lula em agosto, no ato do veto do PL da Devastação, para agradar a Alcolumbre: se permanecesse no texto do PL, ela só passaria a vigorar 180 dias após a promulgação da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental pelo Congresso. Como foi retirada do texto da lei e apresentada por MP, ela já está em vigor desde agosto e agora será convertida em lei. O interesse não é apenas do senador: o governo também quer ver a LAE funcionando para facilitar as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), especialmente no ano eleitoral de 2026.  

No último dia 24/11, a Licença Ambiental Especial fez sua estreia em grande estilo: Lula sancionou o novo marco legal do setor elétrico, que torna todas as hidrelétricas no Brasil licenciáveis por LAE. Usinas como Belo Monte, no rio Xingu, que passou mais de uma década em análise, agora terão de ser licenciadas em no máximo um ano – prazo insuficiente para que os projetos básico e  executivo da obra possam ser adequadamente avaliados. 

A MP 1.308 foi relatada na Câmara pelo deputado bolsonarista Zé Vitor (PL-MG). Apesar de ter rejeitado a maioria das 833 emendas ao texto propostas por deputados e senadores (que reconstituíam o PL da Devastação original e que  perderam sentido depois que os vetos de Lula foram derrubados), o parecer do relator piora a MP. 

Uma das novidades do parecer é o aumento das dispensas de licenciamento que  já existiam no PL. Dragagem de hidrovias e até mesmo em rios poderão pular a  licença ambiental. Antenas de telecomunicação que não causem “significativo  impacto” (que o parecer não define o que seja) também entram no rol das  isenções. 

A versão mais recente do parecer, apresentada nesta terça-feira, tem um artigo sob encomenda para liberar por LAE a pavimentação da BR-319 (Porto Velho Manaus), cuja licença prévia foi concedida ilegalmente pelo Ibama no governo  Bolsonaro e hoje encontra-se suspensa na Justiça. É consenso entre os estudiosos da área que o asfaltamento da 319 inviabilizará o controle do desmatamento – as  emissões projetadas nos próximos 25 anos são de 8 bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente, quatro vezes mais do que a emissão bruta anual do Brasil inteiro. 

O texto do deputado propõe, sem citar nome, que “são consideradas estratégicas  as obras de reconstrução e repavimentação de rodovias preexistentes cujos  trechos representem conexões estratégicas, relevantes na perspectiva da  segurança nacional, do acesso a direitos sociais fundamentais e da integração  entre unidades federativas”. E que, quando a autoridade licenciadora já tiver se  manifestado pela viabilidade ambiental da obra, os estudos para sua instalação  devem ser apresentados em no máximo 90 dias. 

Nenhum dispositivo é tão exótico, porém, quanto um dos artigos do parecer que  regula a Licença por Adesão e Compromisso – que não faz parte da MP da LAE e  sim do PL original. Nele o relator, deputado por Minas Gerais, define que algumas  atividades de mineração poderão ser autolicenciadas: a extração de areia,  cascalho, brita e… garimpo de diamantes.  

“O parecer do deputado Zé Vitor não apenas reforça os problemas estruturais da MP: ele reabre retrocessos vetados, inclui retrocessos novos e cria flexibilizações adicionais, resultando em mais dispensas, mais LAC para atividades de risco, mais poder discricionário político e menos segurança jurídica”, afirma Adriana Pinheiro, assessora de Incidência Política e Orçamento Público do OC. 

“O que o Congresso tenta fazer com a Licença Ambiental Especial é desmontar, peça por peça, a principal proteção que o Brasil construiu em quatro décadas para defender vidas, territórios e o futuro climático do país. Ao transformar a exceção em regra, acelerar grandes obras sem avaliação adequada e até permitir autolicenciamento para mineração, o Parlamento aprofunda o racismo ambiental: empurra mais riscos, mais poluição e mais violação de direitos exatamente para as populações negras, indígenas e periféricas que historicamente são sacrificadas em nome de um falso desenvolvimento. Esse retrocessos não é política pública — é uma escolha deliberada por ampliar as desigualdades sociais no Brasil”, conclui Mariana Belmont, assessora de clima e racismo ambiental de Geledés.

Texto com informações do Observatório do Clima.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também: