“O principal desafio do SUS é político”

Medidas para melhoria dos serviços são relevantes. Mas com o avanço do capital sobre a saúde, não bastam. É urgente lutar por uma política econômica condizente com o projeto da Reforma Sanitária – e uma Reforma Tributária que de fato combata desigualdades

Foto: Abrasco
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Apesar da importância de ações técnicas que melhorem o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), o caminho para enfrentar decisivamente os desafios mais amplos da Saúde no Brasil passa pela política e não por medidas administrativas. Foi o que defendeu Jairnilson Paim, sanitarista e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no primeiro Grande Debate do 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva.

Na visão do veterano da Reforma Sanitária, as crescentes ameaças ao direito à saúde se entrelaçam à contradição cada vez mais aguda entre capitalismo e democracia, visível em todas as partes do mundo. Afinal, o setor não escapa dos processos mais gerais que ocorrem no sistema econômico: a financeirização e a concentração de capital se expressam de forma aguda também na Saúde. 

Por isso, em meio à crise, os defensores de um sistema público e universal de saúde não podem se restringir à defesa de melhorias pontuais nos serviços. “Todos nós que queremos que o SUS funcione devemos apoiar mudanças importantes na estrutura tributária brasileira”, exemplifica. O sanitarista também alerta: historicamente, políticas econômicas de ajuste fiscal serviram de antessala à ascensão do fascismo.

A intervenção de Paim fez parte da mesa “A Saúde e os Desafios do Século 21”, realizada no domingo (30), de que também participaram o representante da OPAS Christian Morales e o atual ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Mais conhecido como Abrascão, o maior dos congressos promovidos pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) segue até o dia 3 de dezembro, em Brasília (DF).

Em sua fala, o professor da UFBA destacou que 2026 será um ano importante “para o SUS, mas também para o destino do Brasil, e precisamos nos preparar desde já para encarar esse desafio para a saúde e à sociedade brasileira”. Essa preparação envolve aprofundar compreensões teóricas. Entender, por exemplo, os mecanismos que tornam a Saúde, cada vez mais, um “locus de acumulação de capital” – que se dá via financeirização, penetração do setor privado na infraestrutura e produção, entre outras dinâmicas. Mas também é preciso definir tarefas concretas de ação.

O enfrentamento às desigualdades, aponta o sanitarista, deve ser um dos eixos dessa luta política. O Brasil, lembra, é um país de “desigualdades enormes”, com grande concentração de “riqueza, poder político e privilégios”. Ao concentrar poder político, o grande capital promove uma “desdemocratização” da sociedade e da saúde, contrapondo-se a um princípio basilar do SUS e da Reforma Sanitária Brasileira.

Para Jairnilson, “no mundo inteiro, as democracias se encontram em crise, sobretudo devido a políticas econômicas que a fragilizam”. Como demonstrou recentemente a economista Clara Mattei em seu livro A Ordem do Capital, citado pelo professor da UFBA, é uma tendência histórica centenária que a austeridade abra caminho para o fascismo, ao bloquear o atendimento às necessidades e aspirações populares. A dinâmica é claramente perceptível na Saúde: o ajuste fiscal aprofunda o subfinanciamento do SUS, precarizando a oferta de serviços à população e a garantia de uma saúde integral.

O Brasil não fica de fora da tendência. “Nós temos ainda um Arcabouço Fiscal”, lembra Paim, e a reforma tributária recém-aprovada é tímida. Para o sanitarista, a realização de uma Reforma Tributária verdadeiramente profunda é uma das tarefas políticas que devem estar na ordem do dia – tanto para confrontar as desigualdades quanto para minar o poder desdemocratizante do grande capital. Hoje, dados apresentados pelo pesquisador revelam que o 1% mais rico da população brasileira possui 36,2 vezes mais rendimentos que os 40% mais pobres. Além disso, nos últimos anos, os ultrarricos que recebem mais de 320 salários mínimos conseguiram até mesmo reduzir a taxa de impostos que pagam.

Sem enfrentar essa concentração de poder e dinheiro, será difícil reverter a desdemocratização capitalista, inimiga do financiamento robusto da saúde. Os embates sociais, inclusive, se expressam em diferentes projetos para o SUS: que pode apresentar uma face mercantilizada, racionalizadora de recursos ou realmente expressar a visão de sociedade da Reforma Sanitária, democrática e socializante. Também não bastaria recuperar os programas descontinuados nos recentes anos de retrocesso político – “o que existia antes ainda não era o suficiente”, ele reforça.

Nesse cenário, cabe aos defensores do sistema público dedicar-se não apenas à proposição de melhorias no SUS, mas também à luta e ao convencimento dos “indecisos e cautelosos” na sociedade para um programa de mudanças. Estes segmentos serão decisivos para a construção das transformações históricas que vão garantir o direito à saúde, e mais amplamente, o cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana, defendeu Paim.

“O SUS é muito importante, mas não vai resolver sozinho os problemas mais retrógrados da sociedade brasileira. É preciso ir muito além do SUS”, concluiu o sanitarista.

Por uma nova política econômica

O segundo Grande Debate do dia contou com importantes reflexões no mesmo sentido. No painel “A democracia em transe: debatendo as crises dos regimes democráticos no Ocidente”, a cientista política e pesquisadora da Fiocruz Sonia Fleury afirmou: “As ameaças à democracia são ameaças à saúde, a luta não é setorial. As perdas nos direitos sociais estão ligadas às transformações no padrão de reprodução do capital”.

A tentativa do andar de cima de resolver a crise econômica capitalista cortando gastos está gerando consequências como o aumento das desigualdades, o aprofundamento da crise climática e a reorganização do tecido produtivo, ela alerta. Este processo anda lado a lado com os processos de autocratização e desdemocratização nos países, ao gerar um “caldo de cultura de ressentimento” na população, explica Fleury: em meio ao desmonte de políticas sociais, o Brasil segue pagando R$1 trilhão por ano de juros da dívida pública.

Fazendo um balanço da “onda rosa” que atravessou a América Latina nas primeiras décadas do século XXI, a cientista política avaliou que os governos progressistas limitaram suas ações à transferência imediata de renda para os segmentos mais vulneráveis, sem construir um novo modelo político e econômico de soberania.  “Em vez de industrializar-se, os países se reprimarizaram”, ela nota. A opção teve consequências: “Enquanto ficamos construindo instituições, deixamos de fazer um movimento político-ideológico que disputasse significados de liberdade, família” e outros conceitos caros à população, hoje instrumentalizados pela extrema-direita em ascensão.

Mudar o exercício da política, construindo uma “política que transforma” e um Estado pedagógico que convoca a sociedade à mobilização, é um passo para enfrentar as ameaças à democracia na sociedade e na saúde, avalia. Na visão de Sonia Fleury, o cuidado deve ser um eixo central da busca por uma política que gera vida digna, por pressupor a alteridade e se concretizar no espaço dos territórios.

Para ela, que também participou da Reforma Sanitária, três pontos são essenciais para concretizar a mudança de rota. Um deles, o balanço de que a política de alianças de 2022 serviu para eleger Lula, mas não para governar e cumprir com um programa de mudanças. Outro, a composição de um futuro novo governo com quadros comprometidos com essas transformações sociais urgentes, e não com as alianças fisiológicas. E, principalmente, “uma nova política econômica, que não seja o Arcabouço Fiscal”, completou.

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