Gaza: o perigosíssimo “Plano de Paz” da ONU
Notas sobre a proposta que o Conselho de Segurança estranhamente aprovou. Israel assume, na prática, 53% da Faixa. Ninguém reconstruirá a área devastada que restou aos palestinos. Hamas e AP são marginalizados. Que nome dar a isso?
Publicado 26/11/2025 às 19:49 - Atualizado 26/11/2025 às 19:52

Por Sari Bashi | Tradução: Antonio Martins
Em 17 de novembro, o Conselho de Segurança da ONU endossou o plano de paz do presidente Donald Trump para Gaza, que cria uma “Comissão da Paz”, presidida por ele e com a participação de líderes estrangeiros, incluindo o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair, para supervisionar a governança do território. Trump saudou a aprovação como “um momento de proporções históricas” e um prenúncio de “mais paz por todo o mundo”. O plano, que está anexo à resolução da ONU, marginaliza a Autoridade Palestina, rejeita a governança do Hamas e promete “empregos, oportunidades e esperança” para os palestinos em Gaza; também afirma seu direito de escolher entre ficar ou sair, e o direito daqueles que deixaram Gaza de retornar.
Mas, na realidade, ao colocar a possibilidade de reconstruir casas e infraestrutura civil fora do alcance de muitos palestinos em Gaza, o plano pode tornar impossível que eles permaneçam. O cerne da questão é uma exigência, agora codificada na resolução do Conselho de Segurança, de que o Hamas e outros grupos armados palestinos abandonem suas armas. Se eles se recusarem – como têm feito até hoje, dado seu compromisso de décadas com a luta armada – a resolução da ONU permite que o exército israelense mantenha o controle direto sobre uma área que chama de “perímetro de segurança”.
É uma escolha estranha de palavras. A área em questão atualmente corresponde a 53% do território, cobrindo não apenas toda a sua fronteira com Israel, mas estendendo-se profundamente no interior, e incluindo a maior parte de suas terras cultiváveis e zonas industriais. Embora a resolução exija que o exército israelense se retire progressivamente de Gaza, ela vincula essa retirada à desmilitarização palestina, não estabelece um cronograma e permite que Israel mantenha um perímetro de segurança “até que Gaza esteja devidamente segura contra qualquer ameaça ressurgente de terror”. Ela aprova a criação de uma Força Internacional de Estabilização para supervisionar o desarmamento em estreita cooperação com Israel e Egito. Mas se o exército israelense não conseguiu desarmar o Hamas em dois anos de guerra intensa, é improvável que forças estrangeiras tentem fazê-lo. Em outras palavras, sem um plano crível para a desmilitarização palestina, parece muito provável que a presença de tropas israelenses na maior parte de Gaza se torne permanente.
Isso é especialmente desastroso para os palestinos, porque o plano abandona a reconstrução nas áreas ainda controladas pelo Hamas. Enquanto isso, autoridades norte-americanas, segundo relatos, estão avançando com planos de construção de moradias na área leste, que o exército israelense controla diretamente, além da chamada Linha Amarela. Autoridades israelenses recentemente começaram a demarcar essa linha com blocos de concreto pintados e mataram palestinos, incluindo crianças, que a cruzaram. A terra depois dela provavelmente permanecerá proibida para quase todos os dois milhões de residentes de Gaza, que estão concentrados mais próximos do mar, na área da qual o exército israelense se retirou como parte do cessar-fogo que entrou em vigor em 10 de outubro.
A necessidade de reconstrução não poderia ser mais urgente. Imagens de satélite mostram que 81% das estruturas de Gaza foram danificadas ou destruídas; a maioria dos palestinos lá não tem mais seus lares. Embora as leis da guerra proíbam a destruição controlada de infraestrutura civil, exceto sob condições restritas de necessidade militar, o exército israelense conduziu demolições planejadas em grande escala, arrasando bairros inteiros em ambos os lados da Linha Amarela, frequentemente com a ajuda de empresas privadas, cuja remuneração estava vinculada ao número e ao tamanho das estruturas que destruíam. (O exército israelense afirma que as demolições foram justificadas por estar destruindo “infraestrutura terrorista”.) A resolução da ONU pede tanto o apoio do Banco Mundial quanto a criação de um fundo multinacional para custear o reparo desse nível quase incompreensível de devastação, e o Egito planeja sediar uma reunião de países doadores, provavelmente da Europa e do Golfo, para arrecadar fundos. Mas, como os materiais de construção não podem entrar em Gaza sem permissão israelense, o plano endossado pela ONU garante, efetivamente, que será impossível reconstruir de forma que beneficie a vasta maioria dos palestinos.
O que isso significa na prática é que, embora o governo israelense tenha suavizado seus apelos pela “emigração voluntária” dos residentes de Gaza, e embora o plano Trump afirme o direito das pessoas em Gaza de ficar, os palestinos terão dificuldade para permanecer mesmo nos 47% de Gaza ainda acessíveis a eles. Isso pode muito bem ser, de fato, exatamente o que os atuais planos de reconstrução visam alcançar.
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Esta não seria a primeira vez que as autoridades israelenses tomam terras de Gaza sob o pretexto de precisar de um perímetro de segurança. A Faixa de Gaza, hoje um enclave de 363 km² [uma área equivalente a um quarto do município de São Paulo] rodeada por muros, cercas e o mar, foi criada em 1948, depois de as autoridades israelenses estabelecerem um estado judeu na maior parte da Palestina, “limpando etnicamente” as áreas que controlavam e expulsando cerca 750 mil palestinos. Aproximadamente 200 mil desses refugiados chegaram a Gaza, transformando o território, mesmo antes da guerra mais recente, em um dos lugares mais densamente povoados da Terra.
Em 1949, o Egito, que havia ocupado Gaza, chegou a um acordo com Israel que estabeleceu fronteiras de fato, de acordo com as posições das tropas na época do armistício – a chamada linha verde. Durante a guerra de 1967, no entanto, o exército israelense capturou Gaza e, por fim, estabeleceu lá assentamentos civis, em violação às leis da guerra. Criaram-se no território zonas que eram proibidas para palestinos. O governo israelense “justificou” os assentamentos como necessários para a segurança e, portanto, autorizados pelas leis da guerra.
Em 2005, após o colapso do processo de paz de Oslo e a eclosão da segunda intifada, as autoridades israelenses retiraram tanto as tropas quanto os colonos. E, no entanto, criaram uma “zona-tampão”, estendendo-se entre 100 e 1.500 metros do lado de Gaza da cerca – o que equivalia a 17% da área total remanescente de Gaza e 35% de suas terras cultiváveis restantes. O exército israelense impediu o acesso de palestinos à área próxima à cerca e atirou naqueles que se aproximavam demais.
Cortar mais 190 km² de Gaza deixa seus dois milhões de residentes comprimidos na área mais próxima do litoral e corta o acesso a terras cultiváveis, urgentemente necessárias para a produção de alimentos. Após o extenso bombardeio e destruição planejada dos últimos dois anos, apenas 4% das terras agrícolas de Gaza estão intactas e acessíveis; dois terços delas estão além da Linha Amarela. Mesmo que as autoridades israelenses permitissem que os palestinos reentrassem nessa área, não está claro quantas pessoas estariam dispostas a correr o risco de se colocar em tanta proximidade com um exército que, de acordo com autoridades de saúde palestinas, matou mais de 69 mil pessoas em Gaza desde outubro de 2023 (sem dúvidas, uma enorme subnotificação), incluindo mais de trezentas desde que o cessar-fogo começou.
Com esta terra agora inacessível para os palestinos, devemos perguntar quem se beneficia com a reconstrução que está prevista. Um grupo não fez segredo de seus desígnios para a terra: colonos de direita que, desde o início da guerra, realizaram comícios e eventos familiares e de feriado na fronteira com Gaza, prometendo restabelecer assentamentos judeus, uma aspiração apoiada por ministros de extrema-direita do governo israelense e alguns legisladores do partido governista Likud. (O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, não defendeu o assentamento judeu, mas pediu que os palestinos em Gaza saíssem voluntariamente.) Ao endossar este chamado plano de paz, potências ocidentais, Estados árabes e agora a própria ONU arriscam-se a endossar uma expansão ilegal do projeto de assentamento territorial-maximalista do governo israelense – e deixar dois milhões de palestinos sem um caminho viável para a reconstrução de suas vidas.
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