Medicamentos: as distorções na política de preços

No Brasil, o preço de um remédio pode se multiplicar por sete sem ferir a regulação em vigor. Brecha favorece a farsa dos descontos com CPF e aumenta o gasto das famílias – engordando bolso de monopólios. Nova resolução arrisca agravar problema

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
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Por Susana van der Ploeg e Marina Paullelli, para a coluna Saúde não é mercadoria

A regulação de preços de medicamentos foi criada para ser um instrumento de política pública em favor do direito à saúde. A própria Lei nº 10.742/2003, que criou a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) define que sua finalidade é promover a assistência farmacêutica, estimulando a oferta de medicamentos e a competitividade do setor – não a rentabilidade de monopólios. Na prática, porém, o desenho e a implementação dessa regulação vêm produzindo distorções que encarecem o acesso tanto nas farmácias quanto no SUS.

Pesquisas sobre o mercado brasileiro mostram que os tetos definidos pela CMED (divididos entre as categorias preço-fábrica, PMC e PMVG) estão sistematicamente muito acima dos preços efetivamente praticados. Em 2023, ao comparar o Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) com as compras federais de 11 medicamentos estratégicos, o levantamento “O tamanho da brecha” encontrou diferenças médias de 73,78% a menos em relação ao teto – no caso do dolutegravir, a diferença chegou a 84,16%. Nas farmácias, a distorção entre o preço teto e o valor de mercado foi ainda maior, descobriu o estudo feito pelo Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).

Leia os textos da coluna Saúde não é mercadoria, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI).

A versão de 2025 da pesquisa, focada em avaliar o impacto das regras de preço para os usuários, verificou a distância entre o Preço Máximo de Venda ao Consumidor (PMC) e o preço realmente apresentado no balcão da farmácia para medicamentos de marca e para os genéricos. Em conclusão, foi possível verificar que, além de existirem diferenças entre os preços praticados em cada estabelecimento, há grandes variações entre o teto e o valor cobrado na prática. 

A maior distância foi encontrada no caso da Losartana Potássica. Na farmácia, este remédio relativamente comum chega a custar quase oito vezes menos que o teto da CMED – uma variação de mais de 675%. Este achado, ao lado de outros do levantamento, indica que os preços praticados podem mais do que dobrar, de um dia para o outro. Em alguns casos, eles podem até mesmo se multiplicar por sete, sem que isso represente descumprimento da regulação atual.

Isso sem contar o impacto do fornecimento do CPF no valor final do medicamento. A partir da apresentação de um dado pessoal, o consumidor pode conseguir um desconto de até 55,65% no produto. Ou seja, mais da metade do valor apresentado inicialmente na venda.

Essas distorções ficam ainda mais nítidas quando observamos os relatórios da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao Sistema Único de Saúde (Conitec). Em vários casos recentes, a empresa proprietária de uma determinada tecnologia chega à mesa de negociação com preços astronômicos e oferta “descontos” de 60%, 70%, 90% como se fossem concessões extraordinárias – quando, na verdade, revelam o quão inflados estavam os tetos. 

Alguns exemplos ilustram essa lógica:

  • Bictegravir para HIV – O PMVG (18%) por comprimido é de R$ 114,47. A própria Gilead ofereceu um desconto superior a 90%, chegando a cerca de R$ 10,44 por comprimido.
  • Abemaciclibe (câncer de mama) – Com PMVG (18%) de R$ 17.149,81 por caixa, a Eli Lilly propôs desconto de 67%, resultando em cerca de R$ 5.618 por caixa.
  • Trikafta® (elexacaftor/tezacaftor/ivacaftor) para fibrose cística – Na incorporação em 2023, o PMVG (18%) foi definido em R$ 101.257,09. O preço proposto pela Vertex, com desconto, foi de R$ 36.169,10 por caixa (desconto de cerca de 66% em relação ao teto), levando a um custo estimado de aproximadamente R$ 440 mil por paciente/ano. Na prática, o valor proposto ao SUS chega a cerca de R$ 471 mil por paciente/ano.

Leia também nossa reportagem Preço de medicamentos: a história de um engodo.

Patentes elevam preços

Esses percentuais não traduzem a benevolência da indústria. Na verdade, mostram o resultado de uma regulação que fixa preços tão altos que há espaço para conceder “mega-descontos” sem tocar na margem de lucro das empresas. O problema é que, mesmo após o desconto, o valor absoluto permanece proibitivo para um sistema universal como o SUS.

O caso do Trikafta é emblemático. Além dos preços estratosféricos, o produto está blindado por uma muralha de patentes: no Brasil, o GTPI mapeou 9 patentes concedidas e 22 pedidos de patentes relacionados ao medicamento. O primeiro depósito, de 24 de junho de 2005, teve sua patente expirada este ano, após os 20 anos previstos na Lei. O pedido de patente mais recente, de 2019, ainda sem decisão final, pode estender o monopólio até 2049, enquanto a última patente concedida já empurrou a exclusividade até 2035. 

Ao mesmo tempo, na Argentina, onde existe genérico e as patentes foram negadas, o preço é quase três vezes menor. Este ano, a farmacêutica de Bangladesh Beximco Pharmaceuticals anunciou que passará a fornecer uma versão genérica sob a marca Triko, a US$ 6.375 por criança/ano e US$ 12.750 por adulto/ano. Em reais, esse preço representaria, respectivamente, algo em torno de R$ 37 mil e R$ 73 mil, respectivamente. 

A combinação de monopólios alongados e tetos inflados empurra o SUS a pagar caro – e mal.

Uma má proposta

Em breve, será publicada uma nova resolução da CMED sobre “os critérios para definição de preços de produtos novos e novas apresentações de medicamentos”. Diante desse quadro, o futuro documento deveria corrigir essas distorções, como também proteger o consumidor de possíveis alterações bruscas de preço. Necessário, então, seria aproximar os tetos dos preços reais, permitir reajustes negativos, fortalecer o monitoramento e ampliar a transparência. 

Por enquanto, porém, as perspectivas de atualização da norma sobre os preços de entrada preocupam: surge um conjunto de mudanças que, potencialmente, deixariam de lado a proteção do direito à saúde.

Alguns eixos dessa proposta, submetidas a consulta pública em julho, agravarão o problema, se mantidas:

  1. Confusão entre regulação de preços e estímulo à inovação
    A CMED passa a se apresentar, na prática, como agente de fomento à inovação farmacêutica via política de preços. Isso é um desvio de função. A Lei 10.742/2003 vincula a regulação econômica à assistência farmacêutica e à competitividade, não à premiação de “novidades” tecnológicas. Fomentar inovação exige outros instrumentos, não a liberação de preços em um mercado já marcado por monopólios de patentes e assimetrias de poder.

  2. “Inovação incremental” como fachada para aumentos de preço
    Ao criar uma categoria específica e mais valorizada para inovações incrementais (nova dosagem, nova forma de administração, pequenas combinações), a proposta legitima o evergreening: a prática de estender monopólios com mudanças cosméticas, muitas vezes sem ganho terapêutico proporcional. Em vez de proteger o SUS, a resolução o obriga a pagar mais caro por versões “repaginadas” de medicamentos antigos.

  3. Patente como critério provisório de preço: prêmio indevido
    A ideia de permitir que o mero depósito de patente classifique um produto na categoria mais alta de preço é frontalmente incompatível com o sistema jurídico brasileiro. Transformar o pedido – ainda não examinado – em passaporte para preço máximo é antecipar um direito que pode nunca existir, inflando artificialmente o patamar de referência para negociações com o SUS.

  4. Mais discricionariedade, menos controle público
    Embora o discurso seja de “reduzir discricionariedade”, a proposta amplia o uso de preços provisórios e mecanismos flexíveis, sem contrapartida em termos de transparência, dados de custo ou participação social. Em um contexto em que a CMED já não monitora adequadamente os preços reais nem consegue reduzir tetos excessivos, abrir mais espaço para negociações opacas é ampliar o poder de pressão da indústria e enfraquecer a regulação.

Por sua vez, o PL 5.591/2020 (paralisado desde 2023, desde que o senador Ciro Nogueira (PP/PI) assumiu sua relatoria) caminharia na direção oposta. Se aprovado, o projeto de lei permitiria reajustes negativos nos preços dos fármacos, adequação à cesta de países de referência à realidade brasileira — evitando países sem sistema público ou sem regulação de preços, como os EUA, que permanece na cesta — e ampliação da transparência sobre custos de produção, pesquisa e desenvolvimento (P&D) e políticas de desconto. Esses elementos são essenciais para que a CMED deixe de operar sem transparência, baseando-se em informações fornecidas pela própria indústria, e possa, de fato, cumprir seu papel de reguladora.

As distorções de preço não são um detalhe técnico: elas se traduzem em receitas públicas drenadas para monopólios, tratamentos negados ou racionados, judicialização e famílias que gastam uma fatia desproporcional de sua renda em medicamentos. Enquanto o teto continuar muito acima da realidade e a regulação for desenhada para acomodar interesses privados, em vez de corrigir essa “brecha”, o Brasil seguirá pagando caro – e mal – pela saúde de sua população, comprometendo a sustentabilidade do SUS e o direito ao acesso universal a medicamentos essenciais.

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